terça-feira, 31 de março de 2015

Poesia da Rua

por Eliane Brum revista Época
Ele subia a rua em passos descalços, a sujeira da cidade tinha se plantado no solo dos seus pés e criado raízes escuras. A calça pertencia a um corpo maior, a camisa a braços mais curtos. A barba e o cabelo eram seus e eram livres. Ele subia a rua, mas seu rosto me dizia que poderia estar descendo. Não parecia importante para onde estava indo. O importante era o que segurava com firmeza entre as mãos encardidas: uma embalagem amassada de alumínio com arroz. Talvez tivesse mais do que arroz, mas no ângulo de onde eu o observava não podia ter certeza. Eu me perguntava se ele procurava um lugar para comer seu almoço tardio quando, de repente, ele freou os pés. Vi seu olhar se habitar em uma face que se tornava outra. Era um homem, agora, parado no meio da calçada, subitamente presente. Perplexa com a repentina mudança, segui o seu olhar. Diante dele, uma moça bonita saía de uma agência bancária com uma amiga. Era para ela que ele olhava. A beleza dela o havia despertado. Estacionado no meio da calçada, ele não era apenas um homem, mas um homem tocado por um encantamento. E talvez não tantas mulheres assim tenham recebido alguma vez um olhar como aquele. Seu corpo fez então pequenos movimentos hesitantes, o que ele iria fazer?
Só existia o tempo de uma respiração antes de ela passar por ele sem vê-lo. Ele estendeu os braços e ofereceu sua pobre marmita.
Nenhum traço de vulgaridade, nada no seu gesto era barato. Era apenas tudo o que ele tinha. Pude ouvir a sua voz: “Você quer?”.
Meio assustada, meio constrangida, ela disse que não, obrigada, e saiu dando risadinhas com a amiga.
Ele apagou o olhar e começou a descer a rua, sem lembrar que antes estava subindo. 

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