domingo, 29 de março de 2015

Diferenças culturais e o TDAH: por que as crianças francesas “não têm” Deficit de Atenção?

 no Literatortura

Distracted Student in Classroom
Essa semana foi marcada por muitas discussões quanto a repercussões o lançamento do novo manual diagnóstico psiquiátrico, o DSM-V, durante o 166o Encontro Anual da Associação Psiquiátrica Americana. Mesmo sendo feito por uma organização nacional dos EUA, seu conteúdo influencia fortemente a clínica psiquiátrica em todo o mundo, seja em diagnóstico e tratamento, seja na elaboração de políticas de saúde racionais, seja em estratégias de prevenção e quebra de estigma. E sempre que mudanças são propostas, a polêmica, que já existe num nível basal, se intensifica e explode em vários ambientes, de veículos de comunicação em massa a mesas de buteco: todos tem uma opinião pra dar, geralmente de forma apaixonada. A variação vai desde os mais radicais da anti-psiquiatria que acreditam que não deveria haver nenhum diagnóstico psiquiátrico, que medicações não devem ser tomadas e que a especialidade médica como um todo só trouxe retrocessos para o mundo; até os próprios psiquiatras, que lidam com doentes mentais diariamente e reconhecem suas dificuldades e pensam constantemente em formas de ajudá-los cada vez mais (e  são acusados de criar um “mercado” ilusório).
E daí vêm os argumentos: os “anti” dizem que estão querendo patologizar o normal, e o drama começa dizendo que viver é patológico, que ser humano é patológico… É muito mimimi e pouco informação verdadeira. Os “pró”, as pessoas mais envolvidas com o assunto, tentam explicar o fundamento do diagnóstico psiquiátrico: é necessário que as alterações de comportamento causem sofrimento para a pessoa e/ou disfunção em alguma área da vida, seja no trabalho, seja na família, seja em sua interação com a sociedade. Se isso não existir, uma avaliação psiquiátrica nem se inicia. Assim, se você tem algum comportamento estranho mas está tudo bem pra você, você até gosta, e isso não atrapalha em absolutamente nada de sua vida, eu posso dizer que psiquiatra nenhum vai poder te diagnosticar de nada.
Mas agora um ponto sensível nessa condição são as crianças. Durante o desenvolvimento, as crianças aprendem como perceber o mundo, como lidar com a realidade, como interagir com outras pessoas que existem independentemente dela e que têm seus próprios interesses e opiniões. Aprendem, em suma, como estar no mundo de maneira saudável. A partir daí temos vários momentos, como a fase do “por que?”, em que a criança explora o mundo e tenta significar as coisas de alguma forma; a fase do ciúme com o irmão mais novo, em que não se vê mais como alvo da atenção exclusiva dos pais e têm de lidar com sua agora forçada independência, e por aí vai. Agora como essa percepção ocorre não apenas da realidade externa, mas também da realidade interna, algumas situações podem ser problemáticas. Como uma criança pode se dizer triste, se ela não tem repertório de vivências e sensações o suficiente para caracterizar esse sentimento? Como ela poderia dizer que sente medo, se algumas vezes ela foi criada em um ambiente hostil e essa realidade (externa e interna) é a única que ela conhece? E por conta disso, por as crianças não conseguirem expressar esse sofrimento, geralmente por não entendê-lo ou, em casos mais graves, por não percebê-lo, podemos negar esse sofrimento real? Crianças estão imunes ao adoecimento mental?
E pra isso a única ferramenta que temos é considerar se existe alguma disfunção na vida da criança (que seria secundário a esse sofrimento oculto) é a nossa percepção dessa realidade. Nós, adultos, que já aprendemos a identificar sensações, que já temos uma noção mais elaborada da realidade, a partir de nossas experiências pessoais, vamos usar a nossa visão para avaliar se existe sofrimento naquela criança. É claro que isso talvez não seja o ideal, mas a  noção de urgência é diferente: uma criança com este tipo de sofrimento interno vai perceber e apreender a realidade, construindo seus pensamentos acerca da realidade de uma forma claramente desviada. E as consequências são para todo o restante de sua vida.
Outro aspecto é que a criança não vai sozinha procurar ajuda. Ela é trazida. Alguém, geralmente os pais, percebem que aquela criança é “esquisita, não se comporta como as outras”, e às vezes fica só por aí mesmo. Se essa “esquisitisse” é algo que está no olho dos pais e eles que estão tendo dificuldade em lidar com o filho da forma que ele é, se é apenas o jeito da criança e isso não é um problema para ela, ou se isso é de fato uma patologia com necessidade de intervenção são lados a ser pensados.
E o grande conflito dessa relação pais-crianças-psiquiatra alcança o ápice da discussão no TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). A prevalência (total de casos num dado momento) estimada global é de cerca de 3,5-4% nas crianças, mas com enormes variações regionais. E isso gerou grande discussão recentemente. Em relação às crianças em idade escolar, a prevalência é de 9% nos EUA e de 0,5% na França. É claro que existem alguns dados relevantes na hora de pensarmos sobre esses dados: a França tem uma classificação própria de diagnóstico em psiquiatria infantil, o CFTMEA, enquanto que os EUA usam o DSM, e sempre alterações nos critérios diagnósticos refletem em alterações no número de diagnósticos. Outra coisa é que países diferentes, com aspectos culturais diferentes, apresentam realidades diferentes para as crianças apreenderem. Mas apesar do mundo externo apresentar tais diferenças, o ser humano é o mesmo, e o processo de desenvolvimento mental irá ocorrer de forma independente da localização geográfica.
O TDAH é, como os outros diagnósticos psiquiátricos, uma construção social. Como a ciência ainda não avançou o suficiente para que possa ser falado em diagnóstico etiológico (avaliando a causa, seja cerebral ou até em nível genético), os diagnósticos são pensados através de como os sintomas se apresentam. Em relação a maioria dessas patologias da infância, como existe a dificuldade de ter acesso ao sintoma referido e só se consegue acessar o sintoma manifesto, a dificuldade de objetivização pode ser diferente. E uma outra questão é a particularidade dos sintomas do TDAH. Diminuição de atenção, percebida principalmente por dificuldades de interação interpessoal e problemas de aprendizado ou outros problemas escolares preocupam os pais. Se juntarmos a isso um comportamento impulsivo da criança e uma quase incapacidade de ficar parada e quieta por um momento, essa preocupação ganha uma proporção maior no ambiente familiar.
Uma coisa importante que deve ser ressaltada é que desatenção e aumento das atividades por uma simples empolgação ou “excesso de energia” são sensações normais para todas as pessoas. A patologia aqui aparece no momento em que esses comportamentos causam alguma repercussão negativa na vida da criança, vista de uma forma que, por sua intensidade, distoa do limite do aceitável naquele contexto. Várias crianças podem apresentar alguma desatenção (mas que a fundo pode ser apenas desinteresse), e alguma inquietação (que pode ser apenas a vontade de realizar alguma outra atividade), e que, mesmo isso não sendo excessivo, algumas famílias podem patologizar esse comportamento em busca da construção de um filho que se adeque melhor as expectativas dos pais. E com a proposta de um tratamento que melhoraria a atenção das crianças com TDAH, de forma a focarem melhor a atenção nas atividades e diminuir essa hiperatividade, fica evidente uma consequência (formalmente secundária) de um aumento da produtividade. É claro que essa criança vai conseguir aprender melhor os conteúdos ensinados na escola, suas notas vão subir, seu desempenho global vai melhorar, e tudo isso é muito positivo. Mas daí aparecem os pais das crianças que não tem um desempenho brilhante e têm traços leves de desatenção e querem que seus filhos sejam medicados. O problema  no estabelecimento de um diagnóstico nesses casos está na percepção dos pais sobre o problema que vem trazida junta com a criança, de forma a superestimar um problema que na realidade não é tão grave.
Essa percepção a partir do núcleo familiar a respeito do que é um aspecto normal da personalidade em desenvolvimento daquela criança e do que é algo de patológico que deve ser tratado varia de acordo com o próprio entendimento de determinado grupo social sobre a infância. E ao compararmos essa percepção entre a franceses e estadunidenses, podemos ver uma diferença grande. E eis aqui o porquê. Na França, o conceito de núcleo familiar é estruturalmente mais forte. É defendido lá que a disciplina e a imposição de limites é saudável e necessário para que ocorra uma apreensão da realidade da forma mais saudável e bem-estruturado possível. Em momentos em que a criança está encontrando seu lugar no mundo, se ver como uma pessoa igual às outras, de forma completa, sem ter uma visão egocêntrica de si são aspectos que são facilitados por esse ambiente criado pelos pais, no curso da educação. Existe uma preocupação maior em ajudar as crianças a lidar com seus problemas de uma forma a ajudar na conquista de certa autonomia. E lá paira uma visão geral de se evitar uso em excesso de medicações, sobretudo psiquiátricas, em crianças. Nos EUA as coisas tendem a ser diferentes. A estrutura familiar não costuma ser pensada de forma a ter  regras e limites, o que em suma significa um estabelecimento adqueado de papéis dos integrantes da família, a fim de se criar um ambiente propício para um desenvolvimento saudável. Outro aspecto é a cultura de resolutividade rápida dos problemas da forma mais cômoda possível. Assim, se uma criança apresenta baixo rendimento escolar, alguns pais pulam etapas na resolução do problema: eles não tentam entender, junto com a criança, se está acontecendo algum problema. Não tentam conversar com os professores para identificar no que eles podem ajudar, e caso seja um comportamento desviado (não digo aqui patológico), não é feita nenhuma tentativa de se alterar a educação que está sendo dada à criança. Eles algumas vezes levam a criança ao médico. E querem medicação.
O diagnóstico psiquiátrico tem, ao olhar da sociedade, um papel polêmico de querer ser controlador e rotulador. No fundo, isso se trata apenas de uma conclusão distorcida de premissas erradas, mas o clima hostil está presente. É claro que os critérios atuais não são uma versão final e imodificável do diagnóstico, e a busca por avanços para melhor identificação, de forma a se reconhecer quais são os doentes que precisam de ajuda e se evitar estabelecer um tratamento para quem não tem tal indicação, é uma grande prioridade dos psiquiatras. Enquanto essa evolução da ciência avança em seu próprio ritmo, as discussão acaloradas continuarão existindo. Barreiras ideológicas serão impostas e pessoas que precisam de ajuda terão dificuldade em ter acesso a um tratamento. Mas para isso talvez a evolução da ciência não seja por si só uma condição suficiente para se mudar essa situação. A evolução deve ser primariamente social. Quando não houver mais esse clima de preconceito e desconfiança, e a reflexão levar a um entendimento mais próximo do real, acredito que nesse ponto as coisas começarão a mudar.

Renato O. Rossi, 23 anos, médico "quase" psiquiatra, envolvido até o talo com a mais diversa gama de variação do sofrimento humano, sempre se apoiando na literatura não apenas como fuga em momentos de tensão, mas também como importante base teórica. Afinal, quem entende mais sobre a vida, o humano e suas ramificações do que aquele que a dedicou a entendê-los em sua forma mais completa e apaixonada que o escritor?

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