quinta-feira, 7 de novembro de 2024

O gigante com pés de petróleo

 Por Rui Abreu


1 - O gigante com pés de petróleo

             Num final de século dezanove iluminado por Thomas Edison e acelerado por Karl Benz, o futuro previa-se entusiasmado por novas descobertas e invenções. O capitalismo, empurrado pelo motor de combustão, prometia um crescimento ímpar, trazendo novos cenários económicos e sociais com novos setores a centralizar a economia, novas camadas sociais e pessoas a ascenderem a posições de poder. Haveria de ser um filho de um vendedor de banha da cobra que iria destacar-se na indústria que marcou todo o desenvolvimento mundial através da recém descoberta fonte energética.

            Em 1870, em Cleveland, Ohio, era formada a mais importante e poderosa empresa do mundo na viragem do século. John D. Rockefeller registou a Standard Oil Company após adquirir das mais diversas formas (muitas ilegais) quase todas as empresas de exploração e distribuição de petróleo e gás do ainda jovem país, os Estados Unidos da América. Com um domínio de cerca de 90% da produção e distribuição de petróleo, gás e seus derivados, a Standard Oil posicionava-se ao lado de outros titãs energéticos mundiais. A par do consórcio anglo persa que operava no Irão e hoje subsiste como BP e do consórcio franco neerlandês que explorava no Mar Cáspio e em solo birmanês (atual Myanmar) e que conhecemos como Shell, marcaram todo o desenvolvimento industrial e comercial do mundo.

            O início do século vinte brindava Rockefeller com a distinção do primeiro bilionário da história. Famílias como Nobel, Rothschild, Família Real Holandesa e Família Real Inglesa acompanhavam o bilionário nessa ascensão de riqueza e poder global, em torno dos recursos que estariam no centro de toda a geopolítica do século vinte. Ocupações foram feitas, acordos assinados, guerras começadas por causa desses recursos e guerras ganhas por quem os detinha. O mapamundo foi redesenhado de acordo com esses conflitos, refletindo as riquezas geoestacionárias presentes no subsolo e o domínio das potências sobre elas. ISRAEL É PARTO DESSA DISPUTA GLOBAL.

            Os impérios, em rota de colisão, fervilhavam internamente com os movimentos operários a surgirem, questionando a ordem do brutal capitalismo nascida na revolução industrial e que dariam origem a partidos socialistas e comunistas, organizando assim a luta de classes. Os E.U.A. saíram quase intocados dos dois conflitos mundiais que as potências tinham deflagrado, não sofrendo em seu território batalhas ou bombardeamentos (com a exceção do episódio de Pearl Harbor1). Os combustíveis fósseis tiveram um papel fundamental na motivação desses conflitos e também na sua resolução. Não foi um acaso que E.U.A. e U.R.S.S., que detinham em seus territórios vastas reservas e fortes indústrias de exploração, refinação e distribuição de petróleo e gás, foram os grandes vencedores da segunda Grande Guerra e se estabeleceram como os polos políticos, económicos e militares do mundo.

            No pós Segunda Grande Guerra emergem assim duas superpotências detentoras de poderosas indústrias de petróleo e gás, as quais não foram alheias à vitória no maior conflito armado da história e na afirmação de seu poder no mundo. Médio Oriente, África e América do Sul tornavam-se nas décadas seguintes palco de disputa entre o bloco capitalista e o bloco socialista a cada nova descoberta de jazidas petrolíferas e cada novo campo de gás. De regimes antagónicos, as superpotências e seus blocos alimentaram suas economias com a mesma matriz fóssil, contribuindo decisivamente para a emissão desmesurada de gases de efeito estufa que tanto contribuíram para as alterações climáticas. Estas vieram para ficar e, como sabido há décadas, para determinar nossos futuros.

            Os E.U.A. haveriam de suplantar seu rival na disputa pela hegemonia global e impor o seu modelo de produção ao mundo. A formidável máquina de guerra estadounidense garantia presença permanente das corporações norte americanas nos países detentores de petróleo e gás.      As invasões do Iraque de 1990 e 2003 promovidas pela família presidencial Bush são prova da dependência imperialista dos recursos energéticos fosseis. Também o apoio incondicional ao regime sionista israelita ao nível do genocídio faz parte do modelo de domínio do Médio Oriente, região historicamente com as maiores reservas de hidrocarbonetos.

            O império procura controlar a exploração, a refinação (objeto maior no domínio do circuito económico do petróleo, sendo a fase onde o produto recebe maior valor acrescentado e que estabelece o preço a que circulará comercialmente o barril) e a distribuição. É nessa procura que se enquadram as sanções de 2018 feitas por Trump à Venezuela após os acordos de cooperação assinados entre o governo Maduro e o governo Chinês que previam investimento na capacidade de refinação venezuelana. Além de tentar impedir que a economia chinesa desembarque na América Latina e acesse mais às suas riquezas, os E.U.A. lutam para manter o primeiro lugar do ranking de países com maior capacidade de refino no mundo (cerca de 18 milhões de barris/dia), garantindo deliberação sobre os preços globais.

            Os Estados Unidos são o maior produtor do mundo de petróleo, com cerca de 19% da produção mundial, o maior refinador com cerca de 18% do refino global e o maior consumidor  com cerca de 20% do consumo mundial2.

           

2 – Riqueza para uns, problema para todos

 

            Despertos pela ciência para o novo e determinante problema das alterações climáticas, governos do mundo inteiro assinam acordos e prometem fazer a transição energética, sempre quando a economia permitir, sempre quando o lucro deixar. Uma visão liderada pelo império norte americano de exploração até ao fim (não do planeta e nem sequer dos recursos, mas sim da habitabilidade) tomou conta do mundo, criando um caminho de extinção em massa cada vez menos evitável.

            Desde a assinatura em 1997 do protocolo de Kyoto, Japão, que os países mais industrializados criaram metas de redução de emissão de gases de efeito estufa. As modestas metas de redução variavam entre 6% e 8% para países como Japão, E.U.A., Reino Unido e Bélgica enquanto outros países ainda tinham margem para aumentar a emissão em 10% como a Islândia e 8% como a Austrália. Os então chamados países em vias de desenvolvimento como o Brasil, China e Índia não tinham metas determinadas, cabendo a cada governo estabelecer medidas de controlo do problema. Passadas quase três décadas e muitos acordos depois, e todas as metas não cumpridas, o planeta bate recordes de temperatura pelo 14º mês consecutivo e a realidade climática excede todos os modelos matemáticos criados.

            O acordo de Paris de 2015 estabeleceu metas mais ambiciosas mas ainda desajustadas com a realidade. A promessa de redução de 50% das emissões até 2030 tinha um pecado original: os 50% eram relativos às emissões de 1990 que eram significativamente menores às emissões à data do acordo. Mesmo assim, ninguém chegará perto de cumprir as metas definidas em 2015, metas essas muito insuficientes perante a realidade climática atual e a avaliação da ciência.

            O tão temido aumento da temperatura média do planeta de 1,5º Celsius acima dos níveis pré industriais que sufoca os oceanos e descongela o permafrost3 que estava previsto para os próximas séculos (ou milénios) está chegando muito mais cedo e com ele as catástrofes naturais sucedem-se pelo globo inteiro. Cheias, secas, incêndios e tempestades tornaram-se visitas frequentes do jornal da noite. Realmente perigosa é a situação do permafrost siberiano que descongela rapidamente e retém calculadas 2 bilhões de toneladas de metano, que entrando em contato com a atmosfera desequilibraria o clima muito além da extinção humana.

            Em 2023 o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) no seu Relatório (anual) sobre a Lacuna de Emissões, que identifica a distância entre a previsão de emissões e os compromissos políticos atuais dos países de redução de emissões, calculando onde  deveriam estar essas emissões para cumprir a meta de aquecimento inferior ou igual a 1,5º Celcius, alerta que se não houver medidas mais efetivas o aumento de temperatura será de 2,5º Celsius a 2,9º Celsius, o que representará a falência biológica do planeta.

            A situação não se compagina mais com a divisão mundial de emissões prevista em Kyoto: reduções até 8%, alguns países tinham metas de aumento e outros não tinham metas. Como infelizmente os países pouco industrializados não poderão sustentar seu desenvolvimento económico nos combustíveis fósseis, será justo serem os últimos países a poderem fazê-lo, colocando a pressão da descarbonização econômica nas potências mundiais. O G20 é responsável por 80% das emissões globais, destacando-se pela ordem de maiores emissores a China, E.U.A., U.E. e Índia. Sendo certo que só num mundo edílico esse plano global seria estabelecido, cabe a cada país descarbonizar a sua economia o mais rapidamente possível e elevar o tema na agenda política mundial, responsabilizando e exigindo dos governos dos países com maiores emissões políticas efetivas de descarbonização.

           

3 – Transição de esquerda

 

            O capitalismo na sua versão verde abre novos campos de negócio assentes num velho modelo de exploração. Procurando manter o modelo de concentração das mega corporações na produção de energias limpas, são usadas para tal as empresas petrolíferas, transformando-as em empresas de energia. A concentração da produção de energia em grandes pólos corporativos tem sido o instrumento de controlo do capital em relação ao acesso dos povos às fontes energéticas e de domínio geopolítico imperialista. Na lógica exploratória dos hidrocarbonetos é mais assimilável que haja grandes pólos produtivos atendendo que o petróleo e gás têm localização definida no território. Na era das energias alternativas, as fontes naturais energéticas encontram-se à nossa volta, em todos os lados, devendo ser estimulada a produção local, podendo e devendo ser eliminado parte significativa do desperdício energético da distribuição. A defesa de comunidades energéticas, cooperativas de produção de energia limpa e domicílios energeticamente autónomos é uma exigência de uma política de transição mais justa, democrática e eficiente.

             No plano global, de nada adiantará as políticas de compensação financeira sobre danos ambientais dos maiores emissores assim como se revelam ineficazes os mercados de carbono, solução mercantilista que o capitalismo (com o império à cabeça) criou para lucrar com a emergência climática. Só a reposição ambiental e redução drástica de emissões pode ajudar a amenizar o problema. O metano e o carbono revelam-se pouco sensíveis a negociações e, ao contrário de todas as outras transições motivadas pelas lutas sociais, esta transição tem prazo de validade, não havendo espaço para dúvidas pseudocientíficas nem para o jogo do empurra entre países na responsabilização do processo.

            A esquerda brasileira (e mundial também) parece não querer sair do estado de negacionismo climático, recorrendo-se de reservas petrolíferas para avaliar o potencial de desenvolvimento económico de países, não acreditando que não dá para repetir os marcos de desenvolvimento das potências mundiais e que se for explorada um ínfima parte dessas reservas haverá uma cobrança brutal sobre a biosfera.

            O “cloroquinismo” climático tem de ser derrotado para que se abra uma nova frente da luta de classes. Só a esquerda pode defender a vida da classe trabalhadora perante as intempéries, com planos de deslocação massiva de parte da população que vive nas regiões de risco, só a esquerda pode apresentar proposta de descentralização econômica que acompanhe a solução urbanística, só a esquerda pode apresentar caminho para a qualificação económica e de emprego em torno da transição energética, só a esquerda pode democratizar o acesso às novas energias, só a esquerda pode questionar o atual modelo energético submisso aos E.U.A..

            A luta por uma transição energética que proteja vida dos povos, democrática e justa também é uma luta anti imperialista.

 

 

           

 

 

1 Base militar estado unidense situada no Havaí que sofreu um ataque da força aérea japonesa em 7 de dezembro de 1941 e catapultou os E.U.A. para a Segunda Grande Guerra.

 

2 Dados de 2022

 

3 Parte do solo terrestre que cobre 25% do hemisfério norte que está congelado há dezenas de milhar de anos, consequência da última era glacial. Encontra-se atualmente a descongelar a velocidade elevada devido ao aquecimento global.

 

 

Fontes:

 

. https://www.unep.org/pt-br/resources/relatorio-sobre-lacuna-de-emissoes-2023

 

 

. https://www.gov.br/anp/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/anuario-estatistico/arquivos-anuario-estatistico-2023/secao-1/secao-1.pdf

 

 

 

 

 


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