Daniel Munduruku
CONSELHO PERMANENTE DA OEA/Ser.K/XVI
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS GT/DADIN/doc.100/02
6
novembro 2002
COMISSÃO DE ASSUNTOS JURÍDICOS E
POLÍTICOS Original: português
Grupo de Trabalho Encarregado
de Elaborar o
Projeto de Declaração Americana
sobre os Direitos
dos Povos
Indígenas
APRESENTAÇÃO SERGIO LEITÃO
Sessão do
Grupo de Trabalho sobre o Quinto Capítulo do Projeto de Declaração
com especial
ênfase nas
“Formas
tradicionais de propriedade e sobrevivência cultural. Direito a terras e
territórios”
(Washington, D.C. – Salão Libertador Simón Bolívar
7 e 8 de novembro de 2002)
Sergio Leitão
A Constituição
de 1988 trouxe uma série de inovações no tratamento da questão indígena,
indicando novos parâmetros para a relação do Estado e da sociedade brasileira
para com os índios. De lá para cá, houve
um avanço significativo na proteção e reconhecimento dos direitos dos povos
indígenas no país. Porém, há ainda uma
série de pendências que reclamam providências, cuja solução é motivo de intenso
debate entre os atores da chamada cena indigenista.
As discussões
atuais revelam perplexidades relacionadas a um conjunto de temas cujo
receituário às vezes não encontra uma base mínima de consenso e dificulta as
discussões sobre o necessário rearranjo da estrutura normativa que deve reger
as relações entre povos indígenas, Estado e sociedade envolvente. Analisar os avanços, mapear e detalhar o conteúdo
dos impasses só é possível levando-se em conta as mudanças ocorridas desde
então, considerando necessariamente a Constituição Federal (CF) como marco
divisor para a avaliação da situação dos índios nos dias de hoje.
A Constituição de 1988 e os novos mecanismos de
proteção
Os constituintes de 1988
consagraram, pela primeira vez em nossa história, um capítulo específico à
proteção dos direitos indígenas. Os
direitos dos índios foram fixados no Capítulo VIII do texto constitucional, que
ainda dedica ao tema outros dispositivos esparsos. A Constituição afastou definitivamente a
perspectiva assimilacionista, assegurando aos índios o direito à diferença e
não fazendo nenhuma menção ao instituto da tutela. Dessa forma, reconheceu-lhes direitos
permanentes e coletivos, dentre os quais:
·
reconhecimento de sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições;
·
direitos originários e imprescritíveis sobre as terras
que tradicionalmente ocupam, consideradas inalienáveis e indisponíveis;
·
posse permanente sobre essas terras;
·
usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e
dos lagos nelas existentes;
·
uso de suas línguas maternas e dos processos próprios
de aprendizagem;
·
proteção e valorização das manifestações culturais
indígenas, que passam a integrar o patrimônio cultural brasileiro.
A Constituição inovou
também ao reconhecer a capacidade processual dos índios, suas comunidades e
organizações para a defesa dos seus próprios direitos e interesses, atribuindo
ao Ministério Público o dever de garanti-los e de intervir em todos os
processos judiciais que digam respeito a tais direitos e interesses, fixando,
por fim, a competência da Justiça Federal para julgar as disputas sobre
direitos indígenas.
O advento da
nova Carta propiciou o debate sobre a necessidade de reformulação do Estatuto
do Índio de 1973, que tem suas bases assentadas sobre a noção da tutela e da
assimilação dos índios à comunhão nacional.
Não bastasse, era preciso regulamentar temas que, presentes no texto
constitucional, reclamavam detalhamento em leis específicas para que pudessem
ser plenamente executados. A proteção
aos recursos hídricos existentes em terras indígenas e o estabelecimento de
salvaguardas para os índios no caso de realização de atividades minerárias em
seus territórios são bons exemplos disso.
Um novo estatuto
Visando
produzir uma nova lei que pudesse substituir o antigo Estatuto do Índio, em
1991 foram apresentados ao Congresso Nacional três projetos de leis analisados
no âmbito de uma Comissão Especial criada pela Câmara dos Deputados, que, em
1994, aprovou um texto substitutivo que pretendia conciliar o conteúdo dos
diversos projetos, adotando um perfil avançado no tratamento de temas como
capacidade civil dos índios, proteção aos conhecimentos tradicionais e
demarcação de terras.
Porém, desde
1995, a análise do substitutivo aos projetos está bloqueada na Câmara dos
Deputados em razão de um pedido elaborado em nome do primeiro governo Fernando
Henrique Cardoso (FHC). O pedido do novo
governo, que se preparava para tomar posse naquele momento, tinha como
justificativa a necessidade de formação de um juízo sobre projetos polêmicos
antes da sua eventual aprovação por quaisquer das Casas do Congresso.
Passados quase
oito anos, porém, esse juízo não se fez, ou se se fez, não foi suficiente para
garantir o empenho do Governo na aprovação de uma nova lei. Tentativas para alterar o quadro de
estagnação governamental foram feitas na gestão dos ex-Ministros da Justiça
José Carlos Dias e José Gregori, bem como dos ex-Presidentes da Funai Márcio
Santilli e Carlos Frederico Marés, que realizaram inúmeras discussões sobre o
tema com as mais diferentes áreas do governo federal.
Em 2000, o
Governo apresentou ao relator do substitutivo que estava parado na Câmara dos
Deputados uma proposta alternativa àquele texto, que permitiria o desbloqueio
da sua tramitação. A proposta
alternativa do Executivo resultava das discussões havidas, durante a gestão
Carlos Marés, entre o Ministério da Justiça e a Casa Civil da Presidência da
República, mediadas pela Assessoria Especial do Presidente da República, com a
participação e consulta a diversos outros órgãos federais.
Tais
discussões, marcadas por debates acirrados e por divergências profundas entre
instâncias governamentais, geraram um texto que preserva os avanços do substitutivo
aprovado pela Comissão Especial da Câmara em 1994, embora não conseguisse
solucionar as divisões existentes no âmbito do governo acerca do tratamento
conceitual a ser dado ao indivíduo, comunidades e povos indígenas. Neste sentido, a proposta fez uma opção
tímida, limitando-se a falar em índios e comunidades.
De qualquer
maneira, a apresentação da proposta alternativa do Governo reacendeu as
discussões sobre o tema, gerando um amplo debate no âmbito das organizações
indígenas e de apoio, que, a bem da verdade, ao longo desses oito anos, jamais
deixaram de cobrar do governo e do Congresso a aprovação de uma nova lei. Registre-se que ao longo desse período as
organizações indígenas desenvolveram uma enorme capacidade de intervenção nos
debates sobre a revisão do Estatuto e que a sua participação tem sido
fundamental para aperfeiçoar o conteúdo das propostas elaboradas. Em que pese esses esforços, porém, não se
logrou alterar a situação, sendo provável que a discussão e aprovação de um
novo Estatuto fique para o Governo e Legislatura que se iniciam em 2003.
Tutela
Nas discussões
do novo Estatuto um dos temas centrais é o da capacidade civil dos índios e as
conseqüências da alteração do atual sistema tutelar. O texto do substitutivo aprovado em 1994,
como o da proposta alternativa apresentada pelo Executivo em 2000, propõe o fim
da tutela e da conceituação dos índios como relativamente incapazes, sem
descurar da necessidade de um tratamento diferenciado em razão das suas
peculiaridades culturais, estabelecendo inúmeros mecanismos de proteção no que
diz respeito às relações com particulares e Estado.
Porém, as
propostas de substituição do instituto da tutela têm sido duramente combatidas
por setores encastelados na estrutura da Funai, sob o argumento de que um órgão
criado para exercer a função tutelar ficaria condenado ao desaparecimento com o
fim do instituto. Isso, apesar do texto,
seja do substitutivo ou da proposta alternativa do Executivo, aumentar enormemente
as competências do órgão indigenista, dando-lhe possibilidades concretas para o
seu reaparelhamento, inclusive com a realização de concursos para a contratação
de quadros qualificados, montagem de uma nova estrutura de fiscalização etc.
Tais setores
da Funai, sob o argumento da ameaça de extinção do órgão e conseqüente abandono
da proteção dos povos indígenas por parte do Estado, acabam mobilizando índios
que, por conta dos seus vínculos orgânicos e de dependência com a estrutura de
clientelismo patrocinada com os recursos do próprio orçamento da Funai, se
constituem em tropa de choque permanentemente utilizada para agredir quem quer
que queira debater o tema com seriedade, o que, aliás, ocorreu repetidas vezes
durante os anos de 2000 e 2001.
Parece claro
que, o que mobiliza tais setores da Funai é o temor de que, com o fim da tutela
e a fixação de parâmetros mais objetivos para disciplinar o relacionamento do
Estado com os povos indígenas, delimitando-se o campo de discricionariedade
onde podem atuar os agentes públicos, se esteja inviabilizando não a atuação da
Funai ou de qualquer outra estrutura do poder público voltada para atender os
índios, mas sim um modo de agir personificado, que se abriga na estrutura do
Estado sob o manto da tutela. Esse modo
de agir sempre teve a tutela como passaporte obrigatório a lhe franquear de
modo permanente a participação em todo e qualquer assunto que dissesse respeito
aos índios. Com as mudanças pretendidas,
haverá espaço para que os índios possam ter controle sobre o seu destino, sem
que o Estado - personificado em seus agentes - seja uma força onipresente e
onipotente.
Por conta
disso é que a Funai, em 2001, encaminhou por meio da sua Presidência ao
Ministério da Justiça (MJ) a proposta de que o texto do novo Estatuto
estabelecesse, dentre outras coisas, que a participação dos seus agentes seria
obrigatória em todo e qualquer assunto que estivesse relacionado aos direitos
coletivos dos povos indígenas. O MJ teve
o bom senso de rejeitar a idéia.
Avanços legislativos
Convenção 169
No contexto da
questão indígena no Brasil pós-88, alguns avanços legislativos precisam ser
mencionados, em que pese a não aprovação de uma lei que substitua o Estatuto do
Índio. Em junho de 2002, o Congresso
Nacional finalmente ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), após anos de tramitação.
A Convenção foi o primeiro instrumento internacional a tratar dignamente
dos direitos coletivos dos povos indígenas, estabelecendo padrões mínimos a
serem seguidos pelos Estados e afastando o princípio da assimilação e da
aculturação no que diz respeito a esses povos.
A ratificação
se deu em parte pela retirada da discreta oposição que lhe fazia o Governo,
receoso das conseqüências que o conceito de povos indígenas adotado pela
Convenção pudesse vir a ter no plano interno e externo. Contribuiu para que isso ocorresse o fato de
que o Itamaraty, durante as discussões preparatórias para a Conferência sobre o
Racismo, ocorrida na África do Sul em 2001, passou a se manifestar em favor da
adoção do conceito de povos. A mudança
de posição do Itamaraty neste tema, e conseqüentemente do Governo como um todo,
deveu-se à atuação decisiva da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do
Ministério da Justiça, quando chefiada pelo Embaixador Gilberto Sabóia.
Obviamente que
contou também o fato de que a ratificação atenuaria o saldo negativo do governo
Fernando Henrique no que diz respeito à aprovação de leis sobre direitos
indígenas. O Brasil foi um dos últimos
países da América a ratificar a Convenção.
Infelizmente,
a aceitação do termo povos indígenas não significa que a agenda de contenciosos
com o Itamaraty tenha sido exaurida. Nas
negociações sobre diversos documentos em discussão em fóruns internacionais –
como as declarações de direitos dos povos indígenas em pauta na Organização das
Nações Unidas (ONU) e na Organização dos Estados Americanos (OEA), o Itamaraty
continua a se manifestar contrariamente a alguns dos pontos reivindicados por
organizações indígenas no Brasil e no exterior.
Novo Código Civil
Em 2001,
ocorreu a aprovação pelo Congresso Nacional do novo Código Civil, que também
ofereceu um tratamento mais positivo aos índios, estabelecendo que o tema da
sua capacidade para a prática dos atos da vida civil deve ser matéria de lei
específica. Ou seja, o novo Código Civil
extirpou de seu texto a menção à relativa capacidade dos índios fixada pelo
antigo Código Civil, de 1916. O novo
Código tampouco fala em tutela e, de quebra, varre de seu vocabulário o ultrapassado
termo silvícola.
Interessante
registrar que a discussão do novo Código não atraiu a atenção que normalmente
recai sobre a tramitação do projeto de revisão do Estatuto do Índio, o qual
desperta interesses os mais variados, desde a bancada de deputados e senadores
da Amazônia, passando por indigenistas (autênticos ou não), até organizações
indígenas, de apoio etc. Por conta
disso, não faltou quem ao final lamentasse a oportunidade perdida de reafirmar
a continuidade do instituto da tutela, preocupado com o fato de que um dos seus
maiores pilares de sustentação tivesse ruído sem qualquer oposição.
Conclusão
Em que pese o
fato de não termos ainda um novo Estatuto que adeqüe a legislação
infraconstitucional aos avanços da Constituição de 88, e que isso gere um
descompasso na elaboração e execução das políticas públicas relativas aos
índios, é inegável que a fotografia da cena indigenista em nosso país foi
alterada para melhor e acrescida de novos ingredientes. No plano legislativo, algumas mudanças significativas
se fizeram sentir, em especial o fim da relativa incapacidade dos índios no
âmbito do Código Civil.
No Executivo,
merece destaque a mudança do Governo quanto a aceitação do conceito de povos
indígenas, o avanço no reconhecimento dos direitos territoriais e o aumento do
número de terras demarcadas. Não
obstante, persistem de forma preocupante as objeções à aprovação de um texto
avançado que possa regular as relações do Estado e da sociedade com os povos
indígenas, garantindo a esses as ferramentas necessárias para o exercício das
suas vontades e elaboração dos seus projetos de futuro.
Bibliografia:
§
|
Anais do “Seminário Bases para uma Nova Política Indigenista”,
organizado pelo Departamento de Antropologia do Museu Nacional, junho de 1999;
§
“Povos Indígenas no Brasil – 1996/2000”, editor geral
Carlos Alberto Ricardo, Instituto Socioambiental, 2001;
§
“Os Antropólogos e a Lei”, Márcio Santilli, 2001.
§
“Defendendo Direitos Socioambientais – a Experiência
do Instituto Socioambiental na Defesa dos Direitos dos Povos e do Meio
Ambiente”, Ana Valéria Araújo, texto produzido para publicação da Fundação
Ford, fevereiro de 2002;
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