Mudanças nas seleções de acesso ao Ensino Superior colocam em discussão os critérios para avaliar os candidatos a uma vaga nas universidades
por Larissa Roso
Os quase 40 mil inscritos para o vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que começa na manhã deste domingo, estão participando de um concurso singular, com potencial para mudar o futuro do maior e mais disputado processo seletivo acadêmico do Estado. Pela primeira vez, a instituição está reservando parte de suas vagas — 30% do total de 5.641 — para o ingresso com a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), via Sistema de Seleção Unificada (Sisu).
Por meio de um ranking, o Sisu distribui os candidatos mais bem colocados pelos cursos com vagas disponíveis em instituições públicas de todo o país. No primeiro semestre de 2014, de acordo com o Ministério da Educação, 54 das 59 universidades federais brasileiras permitiram a entrada de alunos pelo Sisu, utilizando o sistema de forma total ou parcial (dados mais atuais devem ser divulgados ainda este mês). No Rio Grande do Sul, quatro entidades públicas já usam a prova do governo federal como modo único de admissão: Universidade Federal de Rio Grande (Furg), Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e Universidade Federal de Pelotas (UFPel). A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) realizou em dezembro o último vestibular no formato tradicional. A partir de agora, fará uma transição até a implementação total do ingresso pelo Sisu, em 2017. É o mundo acadêmico em acelerada metamorfose.
Com 8,7 milhões de inscritos no ano passado, o Enem, detentor de um histórico de falhas e polêmicas — cadernos de questões vazados nas vésperas, quadrilhas comercializadoras de vagas em ação durante o teste, correções malfeitas —, é uma prova única aplicada em todo o território nacional que permite grande mobilidade aos candidatos. Um aluno de Bagé pode almejar cursar Medicina no Rio de Janeiro, no Pará e em Pernambuco sem ter de se deslocar a outras regiões e enfrentar exames diferentes em cada destino.
Métodos de avaliação na ponta dos debates
Professores e especialistas abraçam uma ou outra dessas vantagens e fragilidades do Enem ao prever o futuro do vestibular. Professor titular de Psicologia da Educação da UFRGS, Fernando Becker vê com apreensão a troca da individualidade das instituições por uma avaliação padrão, igual, para alunos de uma nação com tamanha diversidade. Com uma logística complexa, o Enem generaliza questões que antes podiam explorar a cultura local do candidato — a matemática, destaca Becker, é igual para o jovem gaúcho ou amazonense, mas o enredo que envolve o cálculo terá de abdicar da regionalidade. O vestibular da UFRGS, avalia o professor, é melhor do que o Enem.
— O vestibular que conhecemos está seriamente comprometido. Se a universidade tem por função garantir um ensino de qualidade e o sistema de pesquisa, o que estamos vendo é que o vestibular não está mais selecionando os melhores, como fazia antes, mas atendendo a vários outros critérios, muito por definição de políticas públicas. Para onde vai isso, eu não sei, mas é extremamente preocupante — lamenta Becker.
Em um universo onde existem muito mais aspirantes a uma faculdade do que assentos livres para acomodá-los, não se pode abdicar de um método de seleção. Para Mozart Neves Ramos, professor e ex-reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e diretor do Instituto Ayrton Senna, o Enem é uma ferramenta melhor por buscar uma visão mais interdisciplinar dos conteúdos, dispensando boa parte da decoreba exigida no vestibular. Não tira a autonomia das instituições porque permite que cada unidade escolha se quer ou não aderir. Para Ramos, o grande mérito do Enem é o de ter incitado uma necessária reformulação da rede de ensino.
— Não tenho dúvida de que o Enem é melhor do que o vestibular. Pode induzir a mudança no Ensino Médio. O livro didático ainda está se ajustando. A formação do professor precisa mudar, com uma visão muito mais interdisciplinar. O primeiro ano das universidades também precisa se adequar. A maioria fez pouco ou nada para receber esses novos alunos, ainda está com aquele formato de avaliação do passado. Devemos mudar a escola de Ensino Médio e a universidade e diversificar a oferta de cursos tecnológicos — recomenda Ramos.
UFRGS em fase de testes
Com o concurso deste ano destinando 1.645 vagas para entrada por meio do Sisu, a UFRGS dá início a um teste. O resultado dessa experiência com uma nova porta de ingresso além das provas do vestibular tradicional apontará o rumo que a universidade deverá seguir nos próximos anos. Depois da matrícula dos calouros, da recepção aos novatos de outros Estados e dos primeiros meses de adaptação desses alunos é que a universidade poderá avaliar de forma adequada o saldo desta primeira vez. Só então será tomada a decisão sobre os próximos vestibulares: se haverá uma fatia maior ou menor de vagas para o Sisu ou, até mesmo, se essa modalidade de admissão continuará valendo.
Para Rui Vicente Oppermann, vice-reitor e atualmente no exercício da reitoria, um dos mais importantes fatores a serem observados é o do choque cultural que os estudantes dos mais distintos pontos do Brasil poderão sentir ao se transferir para o Rio Grande do Sul.
— Teremos que administrar. Alguém que venha de uma região quente do país para o nosso inverno, por exemplo. Não é só o frio, mas uma sociedade adaptada ao frio tem um estilo de viver mais recluso. Quem estiver acostumado ao verão e ainda longe de casa pode ter dificuldades — diz Oppermann.
Estudantes de baixa renda aprovados pelo Sisu terão o direito de usufruir dos mesmos benefícios oferecidos aos demais estudantes sem condições de se manter sozinhos na cidade para conduzir os estudos, como verba para moradia e locomoção, além de refeições gratuitas.
— Estamos prontos para receber esses alunos. No sentido material, com os auxílios e as bolsas, e pelo lado pessoal, acolhendo-os de forma calorosa e afetiva — garante o vice-reitor.
Entre as entidades particulares gaúchas, a Unisinos é uma das que já permite que os interessados em seus cursos de graduação aproveitem o escore da prova nacional de mais de uma forma. O candidato opta por utilizar, total ou parcialmente, ou não a nota do Enem. É possível, por exemplo, não fazer as provas e concorrer só com a nota ou prestar o concurso tradicional e aproveitar a nota do Enem para melhorar o desempenho final.
— A imensa maioria ainda prefere o vestibular. Há uma tendência de adesão maior ao Sisu, mas é muito imprevisível ainda. Um dia pode ser, mas não há nada concreto ou previsto sobre eliminar totalmente o vestibular. Quem vai dizer isso é o número de candidatos — comenta Martha de Andrade Silva, professora e integrante do comitê do vestibular da Unisinos.
PUCRS está atenta às possibilidades
A Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) não utiliza, em nenhuma medida, o Enem. Hoje em dia, o aluno que almeja uma vaga pode tentar vestibular, processo seletivo complementar (oferta de vagas que sobraram do concurso), transferência entre instituições e ingresso para diplomado. Segundo Mágda Cunha, pró-reitora acadêmica, a universidade está atenta às mudanças no cenário acadêmico e analisando novas possibilidades.
— No momento, nenhum estudo elimina o vestibular, mas estudamos possibilidades complementares e diferenciadas. Os processos e as carreiras são cada vez mais diversos, e a avaliação das competências para ingresso também deverá ser na mesma medida — afirma Mágda.
O ENEM
— O Enem é realizado uma vez por ano, com quatro provas objetivas de 45 questões cada uma distribuídas em dois dias, além de uma redação.
— Os testes englobam as áreas de ciências humanas, ciências da natureza, linguagens e matemática.
— O Enem permite ao candidato a participação em diferentes programas de acesso ao ensino: Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que oferece vagas em instituições
públicas de Ensino Superior; Sistema de Seleção Unificada da Educação Profissional e Tecnológica (Sisutec), que permite acesso gratuito a cursos técnicos; Programa Universidade para Todos (Prouni), que concede bolsas parciais e integrais em instituições superiores privadas; Ciência sem Fronteiras, que dá bolsas para intercâmbio; benefício do Fundo de Financiamento
Estudantil (Fies).
— Em 2014, 8,7 milhões de pessoas se inscreveram para os testes, o que representou um aumento de 21,6% em relação ao ano anterior.
O SISU
— Gerenciado pelo MEC, o Sisu possibilita que instituições públicas de Ensino Superior de todo o país ofereçam vagas para os estudantes que realizam o Enem.
— O candidato faz a prova e depois escolhe o curso que deseja cursar. São selecionados os mais bem classificados dentro do número de vagas ofertadas. O processo seletivo é aberto duas vezes por ano.
— No Brasil, 54 das 59 universidades federais abriram vagas pelo Sisu para o ingresso de estudantes no primeiro semestre de 2014.
NO RIO GRANDE DO SUL
Adesão
O número de vagas oferecidas pelas universidades públicas gaúchas por meio do Sisu foi de 10.229 no primeiro semestre de 2014, conforme dados do MEC.
Seleção unicamente pelo Sisu
— Furg, Unipampa, UFCSPA e UFPel.
Seleção parcial via Sisu
— Uergs: utiliza o Sisu como forma de ingresso na maioria de seus cursos de graduação.
— UFSM: atualmente, um pequeno número de vagas é destinado ao ingresso via Sisu. Realizou-se em dezembro o último vestibular nos moldes tradicionais. A partir de agora e até 2016, ocorrerá um processo de transição para adoção gradativa do Sisu, estando ainda disponível o processo seletivo seriado (provas de avaliação anuais para estudantes das três séries do Ensino Médio). A partir de 2017, o ingresso de novos alunos ocorrerá apenas pelo sistema do governo federal.
— UFRGS: 30% das vagas do concurso vestibular de 2015 estão reservadas para o ingresso via Sisu — do total de 5.641 vagas, portanto, 1.645 são exclusivas para o acesso com a nota obtida no Enem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário