Em tempos de Copa do Mundo e de vitórias como a da Costa Rica
sobre a Itália, a matéria sobre a Guatemala logo abaixo acaba chegando num
momento importante para reflexão.
A imaginação corre solta, ou quase, quando lemos um texto
desse, o que fazer para que nós latinos americanos, brancos e negros,
trabalhadores e trabalhadoras, índios e índias, enxerguemos a situação do
continente frente aos interesses dos Estados Unidos da América e das elites
daqui?
Qual o percentual de jovens do Brasil que conhecem os heróis
do Povo?
Zumbi é conhecido de que forma?
Os livros trazem imagens de um negro grande, forte, bonito,
seguido de um pequeno texto, muitas vezes romântico, sobre o papel da maior e
mais importante figura da história do nosso Povo. E só.
Nenhuma análise, nenhuma explicação porquê ele lutou, por
exemplo.
A Guatemala, como o Brasil e o restante da América latina, tem
dificuldade de cultuar seus homens e mulheres que lutaram pela maioria.
Exemplo é o que acontece na Guatemala com Jacobo Arbenz.
As escolas, principalmente as públicas, daqui e da Guatemala, e
de toda a América latina, precisam trabalhar a História Real, trazer à tona, à superfície,
fatos históricos que possam ajudar a fortalecer a luta do Povo pela construção
de uma sociedade diferente.
Por José Gilbert Arruda Martins (Professor)
GOLPE DE ESTADO EMBLEMÁTICO DO
INTERVENCIONISMO DOS EUA
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A Guatemala esqueceu Jacobo Arbenz?
(Retirado do site do Le Monde Diplomatic Brasil dia 21/06/2014)
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Para os revolucionários
latino-americanos, o golpe que derrubou o presidente Jacobo Arbenz em junho
de 1954 ilustra a recusa de Washington em tolerar as mais modestas reformas
em seu “quintal”. Presente durante o putsch, Che Guevara recordaria o
episódio na Revolução Cubana... Mas do que se lembra a população do país?
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por Michael Faujour
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O cemitério da capital da Guatemala
localiza-se entre dois abscessos de miséria. Em meio a um mosaico de estelas
em tons pastel – azul, amarelo, verde –, imponentes sepulturas abrigam os
restos mortais de incontáveis oligarcas e ditadores. O lugar também é a
última morada de um homem associado à esperança de ruptura na história
sangrenta deste pequeno país da América Central: Jacobo Arbenz Guzmán, segundo
presidente de uma “Primavera Guatemalteca” que durante dez anos trabalhou
para virar a página da pobreza e do feudalismo (ver boxe). Um
descanso eterno bem vigiado, no entanto: a 20 metros, uma placa comemorativa
saúda o “mártir anticomunista” Carlos Castillo Armas, que no dia 27 de junho
de 1954 liderou o golpe de Estado que derrubou Arbenz, forçando-o ao exílio.
Foi preciso esperar 24 anos após sua
morte para que as cinzas do ex-presidente fossem repatriadas, por iniciativa
da Universidade de San Carlos (Usac), e uma homenagem oficial lhe fosse
oferecida. Estudantes projetaram o mausoléu: uma pirâmide de três faces,
simbolizando as três maiores realizações de sua presidência (a estrada do
Atlântico, a reforma elétrica e a reforma agrária). Em 19 de outubro de 1995,
puxado por cavalos, o caixão percorreu a cidade.1À sua
passagem, centenas de pessoas aproximaram-se. Em seguida, ignorando o
protocolo, dezenas de cidadãos entraram no Palácio Nacional. Alguns tomaram a
urna para carregar em seus ombros o “soldado do povo” e conduzi-lo até a sala
de recepção preparada para o velório.
Memória contra memória
As organizações estudantis, de onde
partiu a operação, ficaram surpresas com esse aparente fervor, que não haviam
previsto. Mas a historiadora Betzabé Alonzo Santizo minimiza sua amplitude.
Segundo ela, a situação explica-se sobretudo pela curiosidade dos transeuntes...
Membro ativo da Comissão do Centenário do Nascimento de Arbenz, formada em
outubro de 2012, a historiadora faz um balanço amargo das comemorações que
ajudou a organizar. Teria a memória do ex-presidente caído no esquecimento e
na indiferença para a maioria dos cidadãos? Nossas tentativas de sondar,
aleatoriamente, o conhecimento dos guatemaltecos sobre Arbenz, nas ruas da
capital e da cidade de Quetzaltenango, parecem confirmar essa hipótese. Mas
não a explicam.
“Aqui”, indica o jornalista Manuel
Vela Castañeda, “a lembrança de Arbenz incomoda.” À direita, é claro, mas
também à esquerda. “Nenhuma guerrilha usou seu nome para batizar uma frente
de operações militares.” Essa constatação converge com a do
ex-secretário-geral da presidência de Arbenz: Jaime Díaz Rozzotto acredita
que o presidente deposto gozou do “raro privilégio de unir contra si [...] a
direita ultramontana (fascismo contemporâneo), a direita liberal, a
transnacional United Fruit Company, o Departamento de Estado norte-americano,
o bipartidarismo yankee, o reformismo latino-americano (radicais,
passando pela democracia cristã ou o equivalente à social-democracia
europeia) e até o foquismo guerrilheiro (partidários dos focos
revolucionários rurais)”.2
Com apenas dois deputados no Congresso,
de 58, a União Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG-Maiz) continua
sendo o principal partido de esquerda do país.3 Em
suas instalações figuram um grande mural revolucionário, imagens do
ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez, de Ernesto “Che” Guevara, de Raúl e
Fidel Castro, e um poema em memória do comandante Rolando Morán.4 Mas
nem a menor evocação de Arbenz... Para Héctor Muila, ex-guerrilheiro e
secretário-geral do partido de 2004 a 2013, o erro do ex-presidente foi
deixar-se influenciar pelo Partido Comunista e recusar-se a armar o povo para
“defender a Revolução”, em 1954. Essa avaliação é semelhante à de Ernesto “Che”
Guevara, que esteve na Guatemala durante o golpe de Estado e tirou do
episódio suas próprias conclusões estratégicas.
Em meio aos visitantes do domingo,
famílias de falecidos e vendedores de lanche que povoam os corredores do
cemitério, Betzabé explica essa falta de interesse pela história da esquerda
guatemalteca: décadas de caça aos “comunistas” teriam forçado ao exílio
aqueles que carregavam essa memória, “sem poder transmiti-la”. “É o que
explica, em parte, que a esquerda seja quase inexistente aqui”, diz. “Muitos
deixaram o país; outros, também numerosos, morreram durante o conflito
armado”, o mais longo e sangrento da América Central (1960-1996).
No nível universitário, a pesquisa
memorial só tomou alguma envergadura no final dos anos 2000, seguindo “duas
interpretações claramente opostas”, observa Castañeda. Uma, mais favorável ao
ex-presidente, desenvolve-se na Usac, onde permanece confinada. A outra,
claramente hostil, vem da Universidade Francisco Marroquín (UFM), lar do
neoliberalismo guatemalteco, de temível vigor.5 Seu campusé
habitado pelos pensadores liberais. Ali encontramos a Praça Adam Smith, a
biblioteca Ludwig von Mises, a sala Carl Menger e os auditórios Friedrich
Hayek e Milton Friedman. Uma escultura de Atlas homenageia a romancista
libertária Ayn Rand.
A respeito do golpe de Estado de
1954, dois autores da Marroquín se destacam: Carlos Sabino, com La
historia silenciada, publicado em 2008, e Ramiro Ordoñez Jonama, cujoUn
sueño de primavera foi publicado em 2012.6 Os
trabalhos ressaltam a violência e a corrupção que teriam marcado a década
revolucionária, como se tais características fossem intrinsecamente ligadas
ao projeto político de Arbenz. Essa visão da história apaga a propaganda
anticomunista da Igreja e da imprensa, a oposição da oligarquia, da Central
Intelligence Agency (CIA) e das ditaduras da região e as conspirações
militares... Inclinados a denunciar a história “oficial” e “dominante” da
Usac, esses historiadores ignoram a força da UFM. Desde sua fundação, em
1971, essa universidade forneceu a elite neoliberal do país. E conta com
importantes conexões na imprensa e no mundo político.
Uma nova situação se estabeleceu a
partir de 2011, quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos (OEA) participou da elaboração de um
acordo entre o Estado guatemalteco e a família do ex-presidente. Esta exigiu,
além de indenizações pela espoliação de seus bens após o golpe, diversas
ações para reabilitar a memória de Arbenz, entre elas o perdão oficial do
Estado.
O presidente Álvaro Colom, sobrinho
de um mártir do conflito armado, rebatizou a estrada do Atlântico com o nome
de seu criador, assim como uma sala do Museu Nacional de História. Uma série
de selos postais foi estampada com sua efígie. Mas essas medidas ainda são
pouco em comparação com o grande número de locais públicos e bustos
homenageando Jorge Ubico (1931-1944) e Justo Rufino Barrios (1873-1885), dois
caudilhos racistas que serviram amplamente aos interesses da oligarquia.
Teoricamente, os jovens guatemaltecos
conhecem Arbenz no penúltimo e, principalmente, no último ano do ensino
fundamental. O período é aprofundado no primeiro ano do colégio. A consulta
de vários livros didáticos7 revela um tratamento
honesto e, na maioria das vezes, bastante completo da década revolucionária.
Eles explicam, por exemplo, os antecedentes que levaram ao golpe de Estado,
as ações e os desafios do período revolucionário (na escala do país, da
América Central e do mundo). Também tratam do papel dos Estados Unidos em
muitas deposições de governantes e guerras civis na região. O problema: essas
obras não têm nada de oficial, pois não há um livro comum para todos os
estudantes da República. Na maioria das vezes, eles simplesmente não têm
livro.
É por isso que o acordo amigável com
a família inclui a “revisão” do currículo nacional (Currículo Nacional Base)
e prevê a distribuição de um documento de Orientación Curricularaos
professores do ensino médio público, com o objetivo de ajudá-los a recuperar
a memória de Arbenz. Mas é difícil medir o impacto disso: apenas quatro em
cada dez crianças concluíram o ensino fundamental em 2010, segundo a Unicef.8 A
questão do conteúdo dos livros didáticos parece, assim, de menor importância.
De acordo com o intelectual septuagenário
José Antonio Móbil, há duas Guatemalas: a da cidade e a do campo. Uma fratura
particularmente demarcada na questão da memória e da política: “A população
rural sabe mais sobre Arbenz que a urbana”, garante. “A população da cidade
esqueceu tudo.” Esse fenômeno pode ser explicado pela sobrevivência de uma
história transmitida oralmente, de geração em geração, nas áreas submetidas à
reforma agrária. Parece que esse tipo de coisa não se esquece...
Um fato que passou relativamente
despercebido na atualidade sugere que a memória Arbenz não está morta. Em
agosto de 2012, uma operação foi montada, na zona 5 da capital, para remover
uma ocupação ilegal com mais de cem famílias que levava o nome do
ex-presidente.9 Seu nome continua, portanto, a
simbolizar um ideal de justiça social. Como resume Herbert Loarca Moreira,
professor de Economia em Quetzaltenango, “é uma referência histórica que vem
lembrar que ‘isso’ é possível”.
BOX
A Primavera Guatemalteca
No dia 20 de outubro de 1944, jovens
militares guatemaltecos, portando as aspirações das classes média e alta da
capital, puseram fim a doze anos de uma ditadura feroz. A “Revolução de
Outubro”, termo que se refere, por extensão, à década que se seguiu,
assinala, segundo o historiador Sergio Tischler Visquerra, “o fim do
Estado-finca”,1 ou seja, um Estado a serviço dos
interesses privados de latifundiários e empresas estrangeiras, incluindo a
United Fruit Company (UFC).
A junta revolucionária e depois a
presidência de Juan José Arévalo, que começou em 15 de março de 1945,
lançaram um vasto processo de institucionalização e democratização, com duas
contribuições fundamentais. Em 1947, o código do trabalho aboliu a servidão
regulamentada pela lei desde o final do século XIX. Em 1949, o Instituto
Guatemalteco do Seguro Social passou a garantir serviços gratuitos aos
cidadãos.
Jacobo Arbenz Guzmán chegou ao poder
em 1951. Seu objetivo era “modernizar” a Guatemala. Ele queria primeiro
colocar “o país no caminho do capitalismo” e em seguida transformar “uma
nação dependente de economia semicolonial em um país economicamente
independente”.2 Para a Guatemala da época, era muito.
O projeto implicava a proteção e expansão do mercado interno, o
estabelecimento de uma economia mista, a industrialização, o lançamento de
grandes projetos e a luta contra os monopólios norte-americanos. A criação de
uma “Estrada do Atlântico” aboliu o monopólio do frete, detido pela empresa
ferroviária International Railways of Central America, pertencente à UFC. Mas
o projeto prioritário de Arbenz continuava sendo a reforma agrária, que
deveria ajudar a desenvolver o mercado interno. O Decreto n. 900 de 1952
lançou oficialmente suas bases. O Estado desapropriou as terras não
exploradas pelo preço fraudulentamente declarado ao fisco – normalmente
inferior ao preço real – e as distribuiu em usufruto vitalício. Um projeto
como esse logo despertou a preocupação da CIA e da UFC... (M.F.)
Michael Faujour
Michael Faujour é jornalista na
Guatemala.
Ilustração: Paulo Lobato
1 Por razões simbólicas, as
cinzas foram colocadas em um caixão para a cerimônia de repatriação.
2 El presidente Arbenz
Guzmán: “la gloriosa victoria” y la lección de Guatemala[O presidente
Arbenz Guzmán: “a gloriosa vitória” e a lição da Guatemala], Centro de
Estudios Urbanos y Regionales, Universidade de San Carlos, n.2, Guatemala,
abr. 1995.
3 Ler Grégory Lassalle,
“Guatemala, le pays où la droite est reine” [Guatemala, o país onde a direita
reina], Le Monde Diplomatique, 28 out. 2011.
4 Amigo íntimo de Che, Rolando
Morán (1929-1998) foi um dos fundadores da URNG e um dos principais
personagens da guerrilha. Após os Acordos de Paz de 1996, recebeu, assim como
o presidente e oligarca Alvaro Arzú, o Prêmio pela Paz da Unesco.
5 Cf. Quentin Delpech, “Des
usages improbables de l’économie” [Usos improváveis da economia], Actes
de la Recherche en Sciences Sociales, Seuil, Paris, set. 2010.
6 Carlos Sabino, La
historia silenciada (1944-1989), vol. I: Revolución y liberación[A
história silenciada (1944-1989), vol. I: Revolução e libertação], Fondo de la
Cultura Económica de España, Cidade da Guatemala, 2008; e Ramiro Ordoñez
Jonama, Un sueño de primavera [Um sonho de primavera],
Artgrafic, Cidade da Guatemala, 2012.
7 Editoras McGraw-Hill (Estados
Unidos), Santillana Guatemala, Grupo Editorial Norma (Colômbia), Edessa
(Guatemala), Banco de Susaeta Ediciones (Guatemala), Consucultura
(Guatemala).
8 Relatório anual, 2010.
9 “Habitantes del asentamiento ‘Jacobo Arbenz Guzmán’ se enfrentan a policías” [Habitantes do assentamento “Jacobo Arbenz Guzmán” enfrentam policiais], El Periódico, Guatemala, 16 ago. 2012.
BOX
1 Sergio Tischler Visquerra, Guatemala 1944: crisis y revolución, ocaso y quiebre de una forma estatal [Guatemala, 1944: crise e revolução, ocaso e ruptura de uma forma estatal], Universidade de San Carlos de Guatemala, de 1998.
2
Discurso de posse, 15 mar. 1951.
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03 de Junho de 2014
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Palavras chave: Guatemala, Dolpe, Jacobo, Arbenz, 1954, América latina, Washington, EUA, ditadura, CIA,América Central,
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