quarta-feira, 14 de junho de 2017

Democracia café-com-leite

no De Revés Um Blog de Flávio Siqueira

Quando eu tinha nove anos, meu pai me deu a camisa nove do Viola, aquela da Kalunga. Queria usá-la todos os dias. Queria ser jogador de futebol. E era. Eu era o Viola, meu irmão também. Ele e eu disputávamos a artilharia lá de casa, com as célebres traves que improvisávamos com as havaianas.
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Na rua era diferente. Ali os mais velhos jogavam sério e não tínhamos a menor chance. Só nos restava calar e assistir. Até que um dia o Gambá, um dos mais respeitados do bairro, demonstrando sua altivez, dá a ordem: “os meninos vão jogar!” Entramos em campo 🙂 devidamente trajados.
A emoção faz do meu primeiro toque uma tragédia porque a bola escapa e encosta na guia. Lateral. Essa seria a consequência natural do meu erro. Mas o time adversário abdica de seu direito. Fingimos que nada aconteceu e o jogo segue. Minutos depois a bola esbarra na canela do meu irmão e entra no gol do time dele. Pelas regras, outra tragédia. Gol contra.
Mas os dois times suspendem a partida para deliberar se o gol contra valeu ou não valeu. Assistimos aquilo parados, querendo fugir, com medo, mas torcendo pra que tudo se resolva. Queremos continuar jogando. E, mais uma vez, nosso salvador, Gambá, pega a bola e com ar de certeza diz: “não valeu, eles são café-com-leite!”
E foi assim durante algum tempo. Éramos café-com-leite convictos. O importante era a diversão. Aprendemos, inclusive, que quando o Gambá não estava, podíamos usar do mecanismo dizendo “deixa a gente jogar, a gente é café-com-leite”. Parecia a senha para entrar numa sociedade secreta. Sempre funcionava. Ainda que nossas jogadas não valessem, estávamos ali, sendo o Viola matador em nossa imaginação infantil.
Gênios! Quem inventou essa maravilha brasileira chamada de café-com-leite?
A velha política.
Lá pelo ano de 1898, um grande acordo, com os fazendeiros, com a lei eleitoral, com tudo, determinou que fazendeiros paulistas (os do café) e fazendeiros mineiros (os do leite) se revezassem na Presidência do Brasil. Eram os poderosos da época e tinham como lema político promover a estabilidade e a unidade nacional.
Era um mecanismo ousado: o governo federal não interferia nas questões locais e as elites políticas locais garantiam o apoio de suas bancadas parlamentares a quem fosse o presidente de turno. E o resto do país, que incluía o povo e também outros wannabes políticos, ficavam como eu e meu irmão com a camisa do Viola.
Passados mais de cem anos da política do café-com-leite e algumas décadas da minha fase de jogador de futebol, tenho a impressão que a inovação trazida pelos poderosos do século XIX ainda ocupa nossos corações e mentes. Até vejo com ternura aquele futebol jogado de mentira. Nosso amigo Gambá, até hoje o considero um grande brasileiro. Deixou-nos  jogar quando não podíamos.
Se tivessem levado nosso futebol a sério, hoje a família estaria torcendo e dando pontos para a gente no Cartola. A seleção teria ganhado a Copa de 2014. E eu estaria postando fotos no Instagram ao invés de estar escrevendo esse texto inspirado no Gilmar Mendes, no TSE e nas tenebrosas campanhas eleitorais da velha política, tentando adivinhar quando os meninos e as meninas deixarão de ser café-com-leite no futebol e na política.

Imagem: https://www.google.com.br/search?q=imagem+pol%C3%ADtica+do+caf%C3%A9+com+leite&rlz=2C1SAVU_enBR0538BR0538&tbm=isch&imgil=3UI7vaOCxL2AwM%253A%253BU1Lij9jaGUdxQM%253Bhttp%25253A%25252F%25252Fportaldoprofessor.mec.gov.br%25252FfichaTecnicaAula.html%25253Faula%2525253D32388&source=iu&pf=m&fir=3UI7vaOCxL2AwM%253A%252CU1Lij9jaGUdxQM%252C_&usg=__KuJWivyajyOjwkqCVNaUSvkwFRc%3D&biw=1280&bih=638&ved=0ahUKEwjeqv-4lr7UAhVLipAKHcorATAQyjcIUw&ei=jpxBWd6rKMuUwgTK14SAAw#imgrc=3UI7vaOCxL2AwM:

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