Em 20 de junho de 2013, no Rio de Janeiro, muitos
gritavam “sem partido” e “sem vandalismo” na avenida.
Quando, no final da
marcha, a aglomeração começou a aumentar na frente da prefeitura, as
barreiras policiais se abateram sobre a manifestação, com chuva de balas de
borracha, cortinas de gás lacrimogêneo, explosões e muita violência. Num
espetáculo triste, a polícia reprimiu 1 milhão de pessoas indiscriminadamente. Aqueles que, momentos antes, entoavam o hino nacional e
hostilizavam as bandeiras partidárias, agora recuavam unidos na
resistência,
gritando “fora Cabral” e “não vai ter Copa”. Manifestantes passaram a organizar linhas de defesa e levantar uma barricada para conter os caveirões.
Nos dias seguintes, sem qualquer pesquisa sobre o
que ocorreu naquela noite de drástica plenitude, pipocaram artigos e
comentários recheados de adjetivações definitivas. “Hipnose fascista”, disse
um; “levante niilista”, outro; falou-se ainda que ela estaria infiltrada de
“gangues mascaradas”, era manipulada pela “extrema direita” ou então seriam todos “coxinhas e seus estranhos amigos”.
Meses depois, uma intelectual no
pináculo acadêmico emitiria a sentença: “violência fascista” e não “revolucionária”,1 mobilizando o velho argumento
conservador, que remonta a Edmund Burke, que alerta para o caráter
instintivo, anárquico e perigoso da multidão.
Essas foram avaliações da
esquerda partidária sobre as jornadas de junho de 2013.
Diante de uma mobilização de norte a sul que
tinha, entre outras pautas, a melhoria dos serviços públicos, a mobilidade
urbana, maior transparência nas contas e gastos dos governos, a reforma das
polícias, a democratização da mídia e os direitos LGBT.
Diante da
qualificação de grupos como o OcupaCâmara (Rio), o Tarifa Zero BH e o Movimento Passe Livre,2 que questionaram o grande
negócio dos transportes; a campanha Cadê o Amarildo, que resgatou a favela, o
racismo e a brutalidade policial da periferia da percepção;3 o
Comitê dos Atingidos pela Copa (Copac) de Belo Horizonte, que conectou uma
rede diversificada de comunidades e coletivos autônomos pelo direito à
cidade;4 os advogados ativistas – e fotógrafos, e
socorristas, e tantos profissionais anônimos que
trabalharam de graça nas
manifestações, para garantir os direitos que o Estado deveria proteger, mas
estava violando.5 Sem falar na miríade de assembleias
horizontais (como a Popular de Maranhão ou a do Largo, no Rio), “ocupas” de
casas legislativas (como de Santa Maria – RS), plataformas comuns (como a
Belém Livre), bem como uma cauda longa de mídias alternativas e um estilo de
midiativismo via internet que, pela primeira vez, ganhou escala para disputar
a comunicação com os peixes grandes.6 Isso é apenas a
ponta do iceberg.
Diante desse, um dos maiores acontecimentos da
história das lutas pela democracia no Brasil, a esquerda partidária se
recolheu na própria zona de conforto. No lugar onde se aninhou, seja na
situação, seja na oposição – nos dois casos num estado de identidade, ancorado na esfera representativa, tendo aprendido as regras, os pactos, os
macetes, em suma, aprendeu a conservar o território. Quanta diferença em
relação aos tempos, por exemplo, de uma prefeitura que, com Luiza Erundina
(PT), em São Paulo, pensava uma
política de tarifa zero para o transporte
coletivo. Quando, com Olívio Dutra (PT), em Porto Alegre, pensava no
orçamento participativo como o primeiro passo para deslacrar a caixa-preta
dos negócios da cidade: obras, ônibus, coleta de lixo. Quando a legalização
do aborto era pauta estrutural, já que afeta diretamente 50% da população e
envolve nada menos do que o direito da mulher sobre si mesma. Tempos quando
os militantes do partido não pareciam aspirantes a gestor público, na fila de
espera por cargos de onde olharão
por cima, com escopo gerencial, as
contradições e caldeamentos da sociedade. Tempos quando os militantes de
partido, com efeito, tomavam partido nos conflitos sociais
(de classe, gênero, raça, sexualidade etc.) e atuavam imediatamente com
as partes – em vez de desligar-se delas em nome das “grandes
sínteses” da nova gestão, do desenvolvimento nacional, da obsessão pela
governabilidade.
Mas ser de esquerda no Brasil hoje não é ser
nostálgico. As jornadas de junho – e também os rolezinhos e fluxos de rua, e
um protagonismo cada vez maior das favelas e periferias – mostraram que o
novo mundo se impõe sem esperar, arrancando-nos da zona de conforto e forçando-nos a
pensar. Depois de junho, por alguns meses, os governantes tiveram medo dos governados. Nos gabinetes, o sorriso largo e o bom humor deram lugar à
intranquilidade.
Isso é bom. Thomas Jefferson, que não era nenhum Black Bloc,
já dizia que toda democracia precisa de uma rebeliãozinha de vez em quando,
para regenerar as instituições.7
No projetado caminho da prosperidade embutida na
ideia de uma “nova classe média”, a esquerda se chocou com um continente
desconhecido, que finalmente chacoalhou os cálculos e certezas. Mas encarou
mal a “descoberta”. Ora reagiu chamando todos de “índios”, tratando-os como
inaptos de pensamento, política e estratégia e, portanto, ideologicamente
vazios, desorganizados e facilmente manipuláveis pela direita. Ora lhes deu
as costas, decepcionando-se por não encontrar as Índias como previsto nos
mapas.
Contudo, o fato é que o continente já está povoado de uma rede de
multiplicidades em franca produção de pensamento, política e estratégia, de
uma classe selvagem sem nome.8 Que pode,
inclusive, reconhecer a relevância das (cada vez mais) rarefeitas respostas institucionais da esquerda para, conforme o caso, acionar seus mandatos e
partidos como tática, sem ceder a autonomia.9
Mover-se à esquerda hoje no Brasil significa
desativar um sistema imunológico impermeável e todos os reflexos quase
pavlovianos diante da alteridade, para se deixar afetar por movimentos de
novo tipo e pela reinvenção dos existentes, dessa rede cuja determinação em resistir, transformar as relações de poder e construir alternativas ficou
provada em junho do ano passado. Significa optar pela inconveniência de sair do lugar e, na incerteza
de uma história em aberto, redescobrir-se nas lutas
de seu tempo.
Bruno Cava
Mestre em Filosofia do Direito
1 Marilena Chauí, em entrevista a Juvenal Savian
Filho. Disponível em:
http://revistacult.uol.com.br/home/
2013/08/pela-responsabilidade-intelectual-e-politica/
2 Eliana Judesnaider et al., Vinte
centavos: a luta contra o aumento, Veneta, São Paulo, 2013.
3 Giuseppe Cocco, Bruno Cava e
Eduardo Baker, “A luta pela paz”, Le Monde Diplomatique Brasil,
jan. 2014.
4 Natacha Rena, Paula Berquó e Fernanda
Chagas, “Biopolíticas espaciais gentrificadoras e as resistências
estéticas
biopotentes”. Disponível em: ; e Rudá Ricci e Patrick Arley, Nas
ruas: a outra política que emergiu
em junho de 2013, Letramento, Belo
Horizonte,
2014. http://uninomade.net/wp-content/files_mf/111404140911Biopol%C3%ADticas%20espaciais%20gentrificadoras%20e%20as%
20resist%C3%AAncias%20est%C3%A9ticas%20biopotentes%20-%20Natacha%20Rena%20e%20Paula%20Berqu%C3%B3%20e%20Fernanda%20Chagas.pdf
5 Bruno Cava, A multidão foi ao deserto: as
manifestações no Brasil em 2013, Annablume, São Paulo, 2013.
6 Bernardo Gutiérrez, “Os protestos do Brasil
dialogam com as revoltas globais”. Disponível em: ; e Fábio Malini e
Henrique Antoun, A internet e a rua: ciberativismo e mobilização nas
redes sociais, Sulina,
2013. http://www.cartacapital.com.br/politica/os-protestos-do-brasil-dialogam-com-as-revoltas-globais-4371.html
7 Michael Hardt, “Thomas Jefferson ou a
transição da democracia”. Disponível
em: http://uninomade.net/wp-content/files_mf/110810120745Thomas%20Jefferson%20ou%20a%20transicao%20da%20
democracia%20-%20Michael%20Hardt.pdf
8 Hugo Albuquerque, “A ascensão selvagem da
classe sem
nome”. http://descurvo.blogspot.com.br/2012/09/a-ascensao-selvagem-da-classe-sem-nome.htm
9 Pablo Ortellado, “Os protestos de junho entre o processo e o
resultado”. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/os-protestos-de-junho-entre-o-processo-e-o-resultado-7745.html
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