Emerson Elias Merhy
Túlio Batista Franco
Toda
atividade humana é um ato produtivo, modifica alguma coisa e produz algo Novo.
Os homens e mulheres, durante toda a sua história, através dos tempos,
estiveram ligados, de um modo ou outro, a atos produtivos, mudando a natureza.
Quando eles tiram um fruto de
uma árvore, ou caçam um animal, estão fazendo um ato produtivo e transformando
a natureza.
O fruto fora da árvore ou o
animal caçado só existem, agora, pelo ato produtivo desses homens e mulheres.
Isso é uma transformação da natureza pelo trabalho humano.
Homens e mulheres vivem em
sociedade, sempre em coletivos, juntos. Os seus trabalhos também se realizam em
conjunto; são atividades organizadas uma com as outras.
O trabalho de um se organiza
junto ao do outro. E, o modo como o trabalho se Organiza e para que ele serve é
importante para entendermos a sociedade que vivemos.
Ao trabalharmos, todos nós,
modificamos a natureza e nos modificamos. O ato do trabalho funciona como uma escola:
mexe com a nossa forma de pensar e de agir no mundo. Formamo-nos, basicamente,
no trabalho.
Há autores, como Karl Marx, que
dizem que o trabalho é a essência da humanidade dos homens, ou como Paulo
Freire, que afirmam que a cultura é dada pela forma como trabalhamos o mundo,
para que possa fazer sentido para nós.
Quando caçávamos animais, estávamos dizendo
que os animais estavam aí para serem nossos alimentos, dávamos este sentido de
existência para eles.
Hoje, é assim também. Quando tiramos árvores
para fazer madeira, estamos dizendo que as árvores são importantes por serem
fontes de matéria-prima: o carvão para fazer fogo, a madeira para fazer casa ou
móveis, entre outros.
Mas, ainda bem, que estes sentidos não são
fixos. Variam conforme a sociedade, as necessidades e os interesses que nós
construímos em cada época. Interesses que são muito variados e que, muitas
vezes, brigam entre si.
Por exemplo, muitos de nós defendem que
árvores, hoje, não são fonte de madeira, mas seres vivos importantes que
contribuem de modo fundamental para manter a vida em geral, na Terra.
As sociedades e as formas de organização do
trabalho, portanto, têm história. Variam no tempo, modificam-se assim como nós.
A sociedade em que vivemos, hoje, a
capitalista, existe de alguns séculos para cá. Antes dela, outras formas de
organização social e de trabalho existiram, como, por exemplo, as sociedades de
senhores e escravos, as dos reis e dos servos, entre outras.
O modo como o trabalho é realizado e o que se
faz com seus produtos variam conforme a sociedade que estamos analisando.
Nas sociedades de caça e coleta, o trabalho é
propriedade de cada um, e o produto do trabalho pertence a quem o faz. Nas
sociedades de senhores e escravos, o trabalho do escravo pertence ao senhor.
Dizemos que o trabalho é produtor de ‘valores
de uso’ e de ‘valores de troca’.
Conforme a necessidade que procura
satisfazer, o trabalho produz um produto que carrega um certo ‘valor de uso’,
por exemplo, a caça serve para alimentar satisfazendo esta necessidade; por
outro lado, se caço para trocar por uma fruta, a utilidade dele agora é de ser
trocado por outro produto que outro trabalhador produziu. Agora, o que aparece
é o seu ‘valor de troca’.
Nas sociedades, o modo como estes dois
componentes se comportam varia.
Nas sociedades capitalistas, o produto do
trabalho do trabalhador e da trabalhadora é do patrão ou da empresa que o
emprega. Ele só recebe um salário por trabalhar e não pelos produtos que
produz.
A riqueza da sociedade, se medida pela
quantidade de trabalho e de produtos que o trabalho produz, é desigualmente
distribuída.
Quem trabalha, como regra, é quem menos
recebe da riqueza produzida.
Assim, o trabalho do trabalhador serve para
produzir produtos que tenham ‘valores de troca’ para o patrão.
Há sociedades modernas, como as socialistas,
que defendem que a riqueza é de toda a sociedade e que a sua distribuição deve
ser feita de acordo com o trabalho e a necessidade de cada um.
O
trabalho e alguns de seus detalhes nos microprocessos.
O objeto do trabalho – o animal a ser caçado,
a planta a ser colhida, o aço a ser trabalhado – vai adquirir sentido – ser
alimento, virar automóvel – pela ação intencional do trabalhador, através de
seu trabalho com as suas ferramentas, seus meios de trabalhar e o modo como
organiza os seus usos.
Entretanto, um trabalho não é igual ao outro.
De acordo com o que produz, um trabalho difere do outro.
Por exemplo, para produzir carro tem de se
fazer de um certo modo; para produzir saúde, tem de se produzir de outro.
Cada produção de um produto específico exige
técnicas distintas, matéria-prima diferente, modos específicos de organizar o
trabalho e trabalhadores próprios para aquela produção. Cada trabalho tem como
seu objeto coisas distintas.
Todo processo de trabalho combina trabalho em
ato e consumo de produtos feitos em trabalhos anteriores.
Na produção de um carro, exigem-se placas de
aço. Para o trabalhador fazer em ato o carro necessita que o aço esteja já
feito. Este aço é produto de trabalho de uma outra produção feita antes pelo
trabalhador de uma siderúrgica.
Assim, o trabalho de fazer carro combina um
trabalho em ato do trabalhador, que está fabricando o carro, e um trabalho
feito antes por outro trabalhador, em outro tipo de fábrica.
Chamamos o trabalho feito em ato de ‘trabalho
vivo em ato’, e o trabalho feito antes, que só chega através do seu produto – o
aço – chamamos de ‘trabalho morto’.
O trabalho vivo em ato nos convida a olhar
para duas dimensões:
Uma, é a da atividade como construtora de
produtos, de sua realização através da produção de bens, de diferentes tipos, e
que está ligada à realização de uma finalidade para o produto (para que ele
serve, que necessidade satisfaz, que ‘valor de uso’ ele tem?);
A outra dimensão é a que se vincula ao
produtor do ato, o trabalhador, e à sua relação com seu ato produtivo e os
produtos que realiza, bem como com suas relações com os outros trabalhadores e
com os possíveis usuários de seus produtos.
Detalhar estas duas dimensões é fundamental
para entendermos o que é o trabalho como prática social e prática técnica.
Como ato produtivo de coisas e de pessoas.
Como produtor de bens, o trabalhador está
amarrado a uma cadeia material dura e simbólica, pois o ‘valor de uso’ do
produto é dado pelo ‘valor referente simbólico’ que carrega, construído pelos
vários atores sociais em suas relações.
Já o ‘valor de troca’ de um produto está
amarrado à forma como funciona uma sociedade, que é historicamente fabricada
pelos homens, como a capitalista em que vivemos, hoje.
Se para a produção de carro o ‘valor
referente simbólico’ é servir para transportar ou até para se exibir com uma
máquina especial (para quem deseja não um carro mas uma Ferrari), para a
produção da saúde o ‘referente simbólico’ é ser cuidado ou vender procedimentos
para ganhar dinheiro. Depende de quem está em cena, seu lugar social, seu lugar
no processo produtivo, seus valores culturais, entre várias outras coisas.
Por isso, advogamos que nas sociedades de
direito à saúde, como é a brasileira, de acordo com sua constituição de 1988, o
‘trabalho em saúde’ deve pautar-se pelo ‘referente simbólico’: ato de cuidar da
vida, em geral, e do outro, como se isso fosse de fato a alma da produção da
saúde.
E, assim, tomar como seu objeto central o
mundo das necessidades de saúde dos usuários individuais e coletivos, expressos
como demandas pelas ações de cuidado. Em última instância, a finalidade que
advogamos para as práticas de saúde é a de visar à produção social da vida e
defendê-la.