sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Bernie Sanders: é hora de nova rebeldia global

por Bernie Sanders no Outras palavras

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Às vésperas do Fórum de Davos, ex-candidato rebelde à presidência dos EUA propõe um movimento articulado para enfrentar, em todo o mundo, os poderosos, os bilionários e a desigualdade estrutural
Por Bernie Sanders | Tradução: Mauro Lopes
Eis onde estamos como planeta em 2018: depois de todas as guerras, revoluções e grandes encontros  internacionais nos últimos 100 anos, vivemos em um mundo onde um pequeno punhado de indivíduos incrivelmente ricos exercem níveis desproporcionais de controle sobre a vida econômica e política da comunidade global.
Difícil de compreender, o fato é que as seis pessoas mais ricas da Terra agora possuem mais riqueza do que a metade mais empobrecidada população mundial — 3,7 bilhões de pessoas. Além disso, o top 1% tem agora mais dinheiro do que os 99% de baixo. Enquanto os bilionários exibem sua opulência, quase uma em cada sete pessoas luta para sobreviver com menos de US$ 1,25 [algo como R$ 4] por dia e – horrivelmente – cerca de 29 mil crianças morrem diariamente de causas totalmente evitáveis, como diarreia, malária e pneumonia.
Ao mesmo tempo, em todo o mundo, elites corruptas, oligarcas e monarquias anacrônicas gastam bilhões nas mais absurdas extravagâncias. O Sultão do Brunei possui cerca de 500 Rolls-Royces e vive em um dos maiores palácios do mundo, um prédio com 1.788 quartos, avaliado em US$ 350 milhões. No Oriente Médio, que possui cinco dos 10 monarcas mais ricos do mundo, a jovem realeza circula pelo jet set ao redor do mundo, enquanto a região sofre a maior taxa de desemprego entre os jovens no mundo e pelo menos 29 milhões de crianças vivem na pobreza, sem acesso a habitação digna, água potável ou alimentos nutritivos. Além disso, enquanto centenas de milhões de pessoas vivem em condições de vida indignas, os comerciantes de armas do mundo enriquecem cada vez mais, com os gastos governamentais de trilhões de dólares em armas.
Nos Estados Unidos, Jeff Bezos — fundador da Amazon, e atualmente a pessoa mais rica do mundo — tem um patrimônio líquido de mais de US$ 100 bilhões. Ele possui pelo menos quatro mansões que, em conjunto, valem várias dezenas de milhões de dólares. Como se isso não bastasse, está gastando US$ 42 milhões na construção de um relógio dentro de uma montanha no Texas, que supostamente funcionará por 10.000 anos. Mas, nos armazéns e escritórios da Amazon em todo o país, seus funcionários usualmente trabalham em jornadas longas e extenuantes e ganham salários tão baixos que precisam crucialmente do Medicaid, de cupons de alimentos e subsídios públicos para habitação, pagos pelos contribuintes dos EUA.
Não só isso: neste momento de riqueza concentrada e desigualdade de renda, pessoas em todo o mundo estão perdendo a fé na democracia. Eles percebem cada vez mais que a economia global foi manipuladapara favorecer os que estão no topo à custa de todos os demais — e estão revoltados.

Milhões de pessoas estão trabalhando mais horas por salários mais baixos do que há 40 anos, tanto nos Estados Unidos quanto em muitos outros países. Elas olham à frente e sentem-se indefesas diante de poucos poderosos que compram eleições e uma elite política e econômica que se torna mais rica, enquanto futuro de seus próprios filhos torna-se cada dia mais incerto.
Em meio a toda essa disparidade econômica, o mundo está testemunhando um aumento alarmante do autoritarismo e do extremismo de direita — que alimenta, explora e amplifica os ressentimentos dos que ficaram para trás e inflamam o ódio étnico e racial.
Agora, mais do que nunca, aqueles que acreditamos na democracia e em governos progressistas devemos mobilizar as pessoas de baixa renda e trabalhadoras em todo o mundo para uma agenda que atenda suas necessidades. Em vez de ódio e divisão, devemos oferecer uma mensagem de esperança e solidariedade. Devemos desenvolver um movimento internacional que rejeite a ganância e a ideologia da classe bilionária e conduza-nos a um mundo de justiça econômica, social e ambiental. Isso será uma luta fácil? Certamente não. Mas é uma luta que não podemos evitar. Os riscos ao futuro são altos demais.
Como o Papa Francisco observou corretamente em um discurso no Vaticano em 2013: “Criamos novos ídolos; a adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma nova e impiedosa imagem no fetichismo do dinheiro e na ditadura da economia sem rosto nem propósito verdadeiramente humanos.” Ele continuou: “Hoje, tudo está sob as leis da competição e da sobrevivência dos mais aptos enquanto os poderosos se alimentam dos sem poder. Como consequência, milhões de pessoas encontram-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem possibilidades, sem meios de escapar”.
Um novo movimento progressista internacional deve comprometer-se a enfrentar a desigualdade estrutural tanto entre as nações como em seu interior. Tal movimento deve superar o “culto do dinheiro” e a “sobrevivência dos mais aptos”, como advertiu o Papa. Deve apoiar políticas nacionais e internacionais destinadas a aumentar o nível de vida das pessoas pobres e da classe trabalhadora — desde o pleno emprego e salário digno até o ensino superior e saúde universais e acordos de comércio justo. Além disso, devemos controlar o poder corporativo e interromper a destruição ambiental do nosso planeta que tem resultado nas mudanças climáticas.
Este é apenas um exemplo do que precisamos fazer: apenas alguns anos atrás, a Rede de Justiça Fiscal (Tax Justice Network) estimou que as pessoas mais ricas e as maiores corporações em todo o mundo esconderam entre US$ 21 trilhões e US$ 32 trilhões em paraísos fiscais, para evitar o pagamento de sua justa contribuição em impostos. Se trabalharmos juntos para eliminar o abuso tributário offshore, a nova receita que será gerada poderá pôr fim à fome global, criar centenas de milhões de novos empregos e reduzir substancialmente a concentração de renda e a desigualdade. Tais recursos poderão ser usados para promover de forma acelerada uma agricultura sustentável e para acelerar a transição de nosso sistema de energia dos combustíveis fósseis e para as fontes de energia renováveis.
Rejeitar a ganância de Wall Street, o poder das gigantescas corporações multinacionais e a influência da classe dos bilionários globais não é apenas a coisa certa a fazer — é um imperativo geopolítico estratégico. Pesquisa realizada pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas mostrou que a percepção dos cidadãos sobre a desigualdade, a corrupção e a exclusão estão entre os indicadores mais consistentes para definir se as comunidades apoiarão o extremismo de direita e os grupos violentos. Quando as pessoas sentem que as cartas estão  empilhadas na mesa contra si e não veem caminho para o recurso legítimo, tornam-se mais propensas a recorrer a soluções prejudiciais a elas próprias e que apenas exacerbam o problema.
Este é um momento crucial na história do mundo. Com a explosão da tecnologia avançada e os novos paradigmas que ela permitiu, agora temos a capacidade de aumentar substancialmente a riqueza global de forma justa. Os meios estão à disposição para eliminar a pobreza, aumentar a expectativa de vida e criar um sistema de energia global barato e não poluente.

Isto é o que podemos fazer se tivermos a coragem de nos unir e confrontar os poderosos que querem cada vez mais para si mesmos. Isto é o que devemos fazer pelo bem de nossos filhos, netos e o futuro do nosso planeta.

Bernie Sanders

Senador nos EUA pelo Estado de Vermont. Filiado ao Partido Democrata desde 2015, foi o político independente com mais tempo de mandato na história do Congresso dos Estados Unidos. Concorreu às eleições primárias que definiram o candidato democrata à presidência dos Estados Unidos no pleito de 2016, sendo derrotado por Hillary Clinton -sua plataforma de inspiração socialista foi a grande novidade que quase derrotou a máquina partidária democrata.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Do “livre” mercado às grandes ditaduras

por ROBERT KUTTNER

no Outras Palavras

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Sai, nos EUA, livro sobre Karl Polanyi – o pensador que mostrou como a desregulação das economias levaria à desigualdade brutal e, por fim, ao fascismo
Por Robert Kuttner | Tradução: Mauro Lopes | Imagem: Cena de “Os Deuses Malditos”, peça teatral adaptada a partir do filme homônimo, de Lucchino Visconti

Resenha do livro:
Karl Polanyi: A Life on the Left, de Gareth Dale
Imprensa da Universidade de Columbia, 381 páginas, 27 dólares
Que era esplendorosa estaríamos supostamente vivendo, com a única superpotência restante espalhando o capitalismo e a democracia liberal em todo o mundo. Em vez disso, a democracia e o capitalismo parecem cada vez mais incompatíveis. O capitalismo global escapou dos limites de uma economia mista pós-guerra, que reconciliou o dinamismo com a segurança através da regulamentação do sistema financeiro, do empoderamento do trabalho, do estado do bem-estar social e de elementos de uma propriedade pública. A riqueza eliminou a cidadania, produzindo maior concentração de renda e poder, bem como a perda de fé na democracia. O resultado é uma economia de extrema desigualdade e instabilidade, organizada não para muitos, mas para poucos.
Karl Polanyi
Karl Polanyi


Não surpreendentemente, muitos reagiram. Para decepção daqueles que esperavam na esquerda democrática disposição para limitar a ação dos mercados, a reação é principalmente dos populistas de direita. E por “populista” entenda-se a natureza dessa reação cuja retórica, princípios e práticas nacionalistas tangenciam o neofascismo. Um aumento do fluxo de migrantes, outra característica da globalização, agravou a raiva de pessoas atingidas pelas crises econômicas  que querem Fazer a América Grande Novamente (assim como a França, a Noruega, a Hungria, a Finlândia …) . Isso ocorre não apenas em países fracamente democráticos como a Polônia e a Turquia, mas nas democracias estabelecidas — Grã-Bretanha, EUA, França, e mesmo a Escandinávia social-democrata.
Já vivemos esta situação antes. Durante o período entre as duas guerras mundiais, os liberais do “livre” mercado que governam a Grã-Bretanha, a França e os EUA tentaram restaurar o sistema do laissez-faire de antes da Primeira Guerra Mundial. Ressuscitaram o padrão-ouro e colocaram como prioridade não a recuparação econômica,mas o pagamento das dívidas de guerra e reparações. Foi um tempo de “livre” comércio e especulação desenfreada, sem controle sobre capital privado. O resultado foi uma década de insegurança econômica que terminou em depressão, enfraquecimento da democracia parlamentar ereação fascista. Até as eleições alemãs de julho de 1932, quando os nazistas se tornaram o maior partido no Reichstag, a coalizão governamental anterior a Hitler estava praticando a austeridade econômica recomendada pelos credores da Alemanha.
O grande profeta de como as forças do mercado levaram ao extremo de destruir a democracia e uma economia em funcionamento não foi Karl Marx, mas Karl Polanyi. Marx esperava que a crise do capitalismo acabasse numa rebelião global dos trabalhadores que levaria até o comunismo. Polanyi, com quase um século mais de história para avaliar, indicou que a maior probabilidade era o advento do fascismo.
Como Polanyi demonstrou em sua obra-prima, The Great Transformation (A Grande Transformação – Editora Campus, Rio, 2ª ed, 2000), de 1944, quando os mercados se tornam “desembarcados” de suas sociedades e criam deslocamentos sociais severos, as pessoas acabam por se revoltar. Polanyi viu a catástrofe da Primeira Guerra Mundial, o período entre as guerras, a Grande Depressão, o fascismo e a Segunda Guerra Mundial, como a culminação lógica das forças do mercado que esmagam a sociedade. Tratava-se, para ele do “esforço utópico do liberalismo econômico para criar um sistema de mercado autorregulado” — algo que começou na Inglaterra do século XIX. Esta foi uma escolha deliberada, ele insistiu, e não a reversão a um estado econômico natural. A sociedade de mercado, Polanyi demonstrou insistentemente, só pode existir devido a uma ação deliberada do governo que define direitos de propriedade, termos de trabalho, comércio e finanças. “O laissez faire“, escreveu ele enfaticamente, “foi planejado”.
Polanyi acreditava que a única via política capaz de moderar a influência destrutiva do capital organizado e sua ideologia do ultra mercado era por meio de movimentos trabalhistas altamente mobilizados, astutos e sofisticados. Ele concluiu isso não a partir da teoria econômica marxista, mas de uma observação aguda da experiência mais bem sucedida de um socialismo municipal na Europa entreguerras: a “Viena Vermelha” (Red Viena), onde trabalhou como jornalista econômico na década de 1920. Por um tempo no pós-Segunda Guerra Mundial, todo o Ocidente teve uma forma igualitária de capitalismo construída sobre a força do Estado democrático e sustentada por fortes movimentos trabalhistas; mas, desde a era de Thatcher e Reagan, esse poder de contenção foi esmagado, com resultados previsíveis.
Em A Grande Transformação, Polanyi enfatizou que os imperativos essenciais do liberalismo clássico do século XIX eram 1) o “livre” comércio, 2) a ideia de que o trabalho devia “encontrar seu preço no mercado” e 3) a aplicação do padrão-ouro. Os equivalentes de hoje são estranhamente semelhantes. Temos um impulso cada vez mais intenso para o comércio desregulado, para destruir os restos do capitalismo com algum nível de gestão e regulação; e o desmantelamento do que resta das salvaguardas do mercado de trabalho para aumentar os lucros das empresas multinacionais. No lugar do padrão-ouro, cuja função do século XIX era a de forçar as nações a priorizar o “dinheiro seguro” e os interesses dos detentores de títulos antes do verdadeiro bem-estar econômico, temos políticas de “austeridade” aplicadas pela Comissão Europeia, pelo Fundo Monetário Internacional e a chanceler alemã, Angela Merkel, com os bancos centrais endurecendo o crédito aos primeiros sinais de inflação.
Esta trindade obscena de políticas econômicas que Polanyi identificou não está funcionando mais agora do que na década de 1920. São fracassos retumbantes , na economia, na política social e na política. A análise histórica de Polanyi, em ambos os escritos anteriores e em The Great Transformation, foi confirmada três vezes, primeiro pelos eventos que culminaram na Segunda Guerra Mundial, depois pela contenção temporária do laissez-faire com a prosperidade democrática durante o boom do pós-guerra e agora novamente pela restauração do liberalismo econômico primário e a reação neofascista a ele.
Karl Polanyi: Uma vida à Esquerda -uma biografia intelectual
Karl Polanyi: Uma vida à Esquerda -uma biografia intelectual
A biografia intelectual escrita por Gareth Dale, Karl Polanyi: A Life on the Left [Karl Polanyi: Uma vida à Esquerda — Columbia University Press, 2013], fez um fino trabalho de mergulhar no homem, seu trabalho e a configuração política e intelectual em que ele se desenvolveu. Esta não é a primeira biografia de Polanyi, mas é a mais abrangente. Dale, cientista político que ensina na Brunel University em Londres, também escreveu um livro anterior, Karl Polanyi: The Limits of the Market (2010), sobre seu pensamento econômico.
Polanyi nasceu em 1886 em Viena, em uma ilustre família judaica. Seu pai, Mihály Pollacsek, emigrou da região dos Cárpatos do Império Habsburgo e formou-se engenheiro na Suíça. Ele era empregado do vigoroso sistema ferroviário do império. No final da década de 1880, Mihály mudou a família para Budapeste, de acordo com o Arquivo Polanyi. Embora tenha mantido seu sobrenome, ele adaptou o dos filhos para ao magiar (húngaro) Polanyi em 1904 — o mesmo ano em que Karl iniciou estudos na Universidade de Budapeste. A mãe de Karl, Cecile, a filha bem educada de um rabino de Vilna (Lituânia), era uma feminista pioneira. Ela fundou um colégio de mulheres em 1912, escreveu para periódicos de língua alemã em Budapeste e Berlim e presidiu um dos salões literários de Budapeste.
Em casa, o alemão e o húngaro eram falados (juntamente com o francês “à mesa”); e o inglês foi aprendido, conta Dale. As cinco crianças Polanyi também estudaram grego e latim. No quarto de século antes da Primeira Guerra Mundial, Budapeste era um oásis de tolerância liberal. Tal como em Viena, Berlim e Praga, uma grande proporção da elite profissional e cultural era de judeus assimilados. Em meados da década de 1890, Dale observa: “a fé judaica recebeu os mesmos privilégios que as denominações cristãs, e os representantes judeus receberam assentos na câmara alta do parlamento”.
Com base em entrevistas, correspondências e textos publicados, Dale evoca a era vividamente. O círculo de Polanyi em Budapeste, conhecido como A Grande Geração, incluiu ativistas e teóricos sociais, como seu mentor, Oscar JasziKarl Mannheim; o marxista Georg Lukács; o irmão mais novo de Karl e seu sparring ideológico, o libertário Michael Polanyi; os físicos Leo Szilard e Edward Teller; o matemático John von Neumann; e os compositores Béla Bartók e Zoltán Kodály, entre muitos outros. Foi nesta estufa que Polanyi desenvolveu-se, frequentando o ginásio Minta, um dos melhores da cidade e a seguir a Universidade de Budapeste. Ele foi expulso em 1907, depois de uma confusão em que antissemitas interromperam uma palestra de um professor esquerdista popular, Gyula Pikler. Terminou sua graduação em Direito em 1908 na Universidade Provincial de Kolozsvár (hoje Cluj, na Romênia). Lá, foi um dos fundadores do jornal de esquerda humanista Círculo Galilei e depois integrou o conselho editorial do periódico.
Polanyi tornou-se um dos principais membros do partido político de Jaszi, o Radical, e foi nomeado seu secretário-geral em 1918. Ele foi atraído pelo socialismo cristão de Robert Owen e Richard Tawney e o socialismo comunitário de G.D.H. Cole. Ele contemplou uma fusão do marxismo e do cristianismo. Polanyi talvez seja melhor classificado como um social-democrata de esquerda — um cético, ao longo da vida, com a possibilidade de uma sociedade capitalista tolerar um sistema econômico híbrido.
Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, Polanyi alistou-se  como oficial de cavalaria. Quando voltou para casa no final de 1917, sofrendo de desnutrição, depressão e tifo, Budapeste estava num conflito caótico entre a esquerda e a direita. Em 1918, o governo húngaro firmou uma paz separada com os Aliados, rompendo com Viena e imaginando criar uma república liberal. Os acontecimentos nas ruas ultrapassaram a disputa parlamentar e o líder comunista Béla Kunproclamou o que acabou por ser uma República soviética húngara de curta duração.
Polanyi partiu para Viena, tanto para recuperar a saúde como para sair da linha de frente política. Lá, encontrou sua vocação como jornalista de economia de alto nível e o amor de sua vida, Ilona Duczynska, uma polonesa radical de esquerda. Sua filha, Kari, nascida em 1923, recorda, como um pré-adolescente, que fazia um clipping recortando artigos de jornais em três línguas diferentes para o seu pai. Com 94 anos, ela continua a co-dirigir o Arquivo Polanyi em Montreal.
Polanyi foi contratado em 1924 para escrever sobre política internacional naquele que pode ser considerado o equivalente da Europa Central ao The Economist, o semanário Österreichische Volkswirt. Ele continuou sua busca por um socialismo viável, envolvendo-se com outros intelectuais de esquerda e polemizando com a direita, especialmente com os argumentos do teórico do livre mercado, Ludwig von Mises. Nos debates, publicados em detalhes, Polanyi mostrava como uma economia socialista poderia ser capaz de praticar preços eficientes. Mises insistia que não era. Polanyi argumentava que uma forma descentralizada de socialismo liderada pelos trabalhadores poderia praticar preços com uma boa precisão. Com o tempo ele concluiu, diz Dale, que estes argumentos técnicos abstrusos haviam sido um desperdício de seu tempo.[1]
Uma resposta prática ao debate com Mises estava se desenrolando ao vivo na Viena Vermelha. Trabalhadores mobilizados mantiveram um governo socialista municipal no poder por quase 16 anos depois da I Guerra Mundial. O governo fornecia gás, água e eletricidade, e construía casas e prédios para os trabalhadores, financiando-se por impostos pagos pelos ricos — incluindo um imposto para os funcionários públicos. Havia subsídios familiares para pais e seguro desemprego municipal para os sindicatos. Nada disso prejudicou a eficiência da economia privada na Áustria, que era ameaçada pelas políticas infelizes de “austeridade” econômica criticadas por Polanyi. Depois de 1927, o desemprego aumentou implacavelmente e os salários diminuíram, o que ajudou a levar ao poder em 1932-1933 um governo austrofascista.
Para Polanyi, a Viena Vermelha foi tão importante por sua política quanto por sua economia. A política perversa da Inglaterra de Dickens refletiu a fraqueza política de sua classe trabalhadora, enquanto a Viena Vermelha era um emblema da força de sua classe trabalhadora. “Enquanto [a reforma das leis sociais dos ingleses] causou um verdadeiro desastre para as pessoas comuns”, escreveu ele, “Viena alcançou um dos triunfos mais espetaculares da história ocidental”. Mas, como Polanyi ponderou, uma ilha de socialismo municipal não poderia sobreviver à maior turbulência do mercado e ao fascismo crescente.
Em 1933, com os fascistas assumindo o governo, Polanyi deixou Viena e foi para Londres. Lá, com a ajuda de Cole e Tawney, ele encontrou trabalho em um programa de extensão patrocinado pela Universidade de Oxford, conhecido como Associação Educacional dos Trabalhadores. Ele ensinou, entre outros temas, a história industrial inglesa. Sua pesquisa original para essas palestras formou os primeiros rascunhos de A Grande Transformação.
Seu mentor, Oscar Jaszi, também estava agora no exílio e ensinava em Oberlin. Para complementar o seu reduzido pagamento como adjunto, Polanyi conseguiu se contratado para conferências em faculdades nos Estados Unidos. Ele encontrou a América de Roosevelt um contraponto esperançoso à Europa. Depois que a guerra explodiu, uma dessas viagens de conferência evoluiu para uma nomeação por três anos no Bennington College, onde completou seu livro.
A Grande Transformação - a obra-prima de Polianyi
A Grande Transformação – a obra-prima de Polianyi
O timing para a publicação de A Grande Transformação foi auspicioso. O ano de 1944 testemunhou o Acordo de Bretton Woods, o apelo de Roosevelt por uma Declaração de Direitos Econômicos e o plano épico de Lord Beverage, Pleno Emprego numa Sociedade Livre. O que estas iniciativas tinham em comum com o trabalho de Polanyi era a convicção de que um mercado excessivamente livre nunca mais deveria levar à miséria humana, que termina no fascismo.
No entanto, o livro de Polanyi foi inicialmente recebido com um silêncio retumbante. Isto, penso eu, foi o resultado de dois fatores.
Primeiro, Polanyi não pertencia a nenhuma disciplina acadêmica e era essencialmente um autodidata. Dale escreve que quando finalmente lhe foi oferecido um trabalho como professor de História Econômica em Columbia, em 1947, “os sociólogos viram-no como um economista, enquanto os economistas pensavam o contrário”. Os meados do século XX, nos Estados Unidos, foram um período em que a economia política, o arcabouço institucional, a história do pensamento econômico e a história econômica entraram em um período de eclipse, em favor de uma visão formalista. E o pensamento de Polanyi não era uma hipótese que poderia ser testada.
Segundo e mais importante, os adversários ideológicos de Polanyi gozavam de prestígio e eram promovidos, enquanto ele contava apenas o poder de suas ideias. Mises, como Polanyi, não tinha credenciais acadêmicas. Mas ele conduziu um influente seminário privado a partir de seu cargo como secretário da Câmara de Comércio da Áustria. O seminário desenvolveu a escola de economia ultraliberal austríaca. O primeiro aluno de Mises foi Friedrich Hayek. Como teórico do laissez-faire financiado por empresários, Mises antecipou a Fundação Heritage em meio século.
Hayek afirmou em The Road to Serfdom [O Caminho da Servidão, livro que lhe deu o Nobel de Economia em 1974] que os esforços bem-intencionados do Estado para controlar os mercados acabariam em despotismo. Mas não há nenhum caso de social-democracia que tenha derivado em ditadura. A história deu razão a Polanyi, demonstrando que um mercado livre sem regras é que leva a uma ruptura com a democracia. Hayek acabou com uma cadeira na London School of Economics, que foi fundada originalmente pelos socialistas fabianos; a “Escola austríaca” foi reconhecida como uma escola de economia ultraliberal; e Hayek depois ganhou o Prêmio Nobel de Economia. O Caminho da Servidão, também publicado em 1944, foi um best-seller, publicado em capítulos no Reader’s DigestA Grande Transformaçãode Polanyi vendeu apenas 1.701 cópias em 1944 e 1945.
Quando A Grande Transformação apareceu em 1944, a resenha no The New York Times foi seca. O resenhista, John Chamberlain, escreveu: “Este ensaio maravilhosamente escrito reavalia 150 anos de história e apresenta um sutil apelo por um novo feudalismo, uma nova escravidão, um novo status econômico que vai amarrar os homens aos seus lugares de residência e seus empregos”. Não à toa, esta opinião soa como Hayek: o mesmo Chamberlain acabara de escrever o prefácio efusivo para O Caminho da Servidão. É o que se poder chamar de economia política de influência.
No entanto, o livro de Polanyi recusou-se a desaparecer. Em 1982, seus conceitos foram a peça central de um impactante artigo do estudioso de relações internacionais John Gerard Ruggie, que denominou a ordem econômica do pós-guerra de 1944 de “liberalismo incorporado”. O sistema de Bretton Woods, escreveu Ruggie, reconciliou o estado com o mercado por “re-incorporar” o liberalismo econômico na sociedade por meio de políticas democráticas”[2]. O sociólogo dinamarquês Gøsta Esping-Andersen, importante historiador da social-democracia, usou o conceito polanyiano de ” desmercantilização” em um livro importante, The Three Worlds of Welfare Capitalism [Os três mundos do capitalismo do bem-estar social -1990], para descrever como os social-democratas continham e complementavam o mercado.[3]
Outros estudiosos que valorizaram as ideias de Polanyi foram os historiadores políticos Ira KatznelsonJacob Hacker e Richard Valelly, o falecido sociólogo Daniel Bell, e os economistas Joseph StiglitzDani Rodrik e Herman Daly. Por outro lado há pensadores que parecem essencialmente polanyianos em sua preocupação com os mercados que invadem os reinos não mercadológicos, como Michael WalzerJohn Kenneth GalbraithAlbert Hirschman e a premiada com o Prêmio Nobel Elinor Ostrom. Este é o preço que se paga por ser, na auto-descrição de Hirschman, um intruso.
Exilado três vezes — de Budapeste para Viena, de Viena para Londres, e mais tarde para Nova York — Polanyi teve que se mudar mais uma vez quando as autoridades dos EUA não concederam a sua mulher Ilona um visto, alegando que ela havia sido do Partido Comunista na década de 1920. Eles mudaram-se para  um subúrbio de Toronto, de onde Polanyi foi para Columbia, até sua aposentadoria em meados da década de 1950.
Embora seus entusiastas tendam a se concentrar apenas em A Grande Transformação, o livro de Dale é precioso para a avaliação sobre Polanyi depois de 1944. Ele viveu por mais 20 anos, trabalhando no que era conhecido como sistemas econômicos primitivos, o que lhe deu mais bases para demonstrar que o mercado livre não é uma condição natural, e que os mercados de fato não têm que predominar sobre o resto da sociedade. Ao contrário, muitas culturas ancestrais misturaram as formas de intercâmbio de mercado com relação econômicas e comerciais não mercadológicas. Ele estudou o tráfico de escravos do Daomé e a economia de Atenas na Antiguidade, os quais “demonstraram que elementos de redistribuição, reciprocidade e troca poderiam ser efetivamente fundidos em ‘um todo orgânico’ “. Dale escreve: “Para Polanyi, a Atenas democrática foi na verdade uma precursora, na Antiguidade, da Viena vermelha”.  Atenas, é claro, estava longe de ser socialista, mas naquela economia pré-capitalista estavam mescladas formas de geração de renda mercadológicas e não mercadológicas.
Dale também aborda os pontos de vista de Polanyi sobre a escalada da Guerra Fria e sobre a economia mista do pós-guerra, que muitos agora veem como uma era dourada. Os Trinta Gloriosos [assim são conhecidos os 30 anos de forte crescimento na economia do pós-guerra, de 1946 a 1975] que combinavam o capitalismo igualitário e a democracia restaurada, foram  sentidos por Polanyi como uma afirmação. Mas ele, tendo vivido duas guerras, a destruição da Viena socialista, a perda de familiares durante o nazismo, quatro exílios e longas separações de Ilona, ​​não foi tão facilmente convencido. Enquanto admirava Roosevelt, ele considerava o governo trabalhista britânico de 1945 como um exemplo acabado de estado de bem-estar num sistema ainda capitalista.
Meio século depois, essa preocupação mostrou-se acertada. Outros viram o sistema de Bretton Woods como uma maneira elegante de reiniciar o comércio, criando condições para cada nação-membro administrar suas economias de pleno emprego; mas Polanyi considerou o sistema como uma extensão da influência do capital. Isso também pode ter sido profético. Na década de 1980, o FMI e o Banco Mundial foram transformados em defensores da austeridade, o oposto do que fora planejado por seu arquiteto, John Maynard Keynes. Ele culpou, pela Guerra Fria, principalmente a ação dos Aliados. Louvou a visão de Henry Wallace [vice-presidente dos EUA sob Roosevelt], de que o Ocidente poderia ter conseguido uma acomodação com Stalin.
Dale não poupou críticas a Polanyi sobre o que chamou de seu ponto cego em relação à União Soviética. Em vários momentos das décadas de 1920 e 1930, ele observa, Polanyi deu sua aprovação a Stalin, mesmo culpando o pacto Molotov-Ribbentrop de 1940 pelo o anti-sovietismo da Casa Branca. Ele estava muito otimista quanto às intenções dos soviéticos no período imediato do pós-guerra. Como membro do Conselho de Emigrados Húngaros em Londres, ele discutiu com os outros líderes se o Exército Vermelho deveria ser entendido  como um precursor do socialismo democrático. A libertação soviética da Europa Oriental, insistiu Polanyi, traria “uma forma de governo representativo baseado em partidos políticos”.
Comprovado o erro de sua tese, Polanyi aplaudiu a abortada revolução húngara de 1956. Mesmo depois de a rebelião ter sido esmagada por tanques soviéticos, ele encontrou razões para a esperança no comunismo goulash ligeiramente reformista que se seguiu. Isso era ingênuo, mas não totalmente equivocado. Embora Polanyi não fosse marxista, havia uma abertura suficiente na Hungria a ponto de em 1963, um ano antes de sua morte e bem antes da queda Muro de Berlim, ele ter sido convidado para conferências na Universidade de Budapeste, sua primeira visita a seu país em quatro décadas.
Karl Polianyi e a mulher, , Ilona Duczynska
Karl Polianyi e a mulher, Ilona Duczynska, matemática, anarquista e luxemburguista
No centenário de nascimento de Polanyi, em 1986, Kari Polanyi-Levittorganizou um simpósio em  homenagem a seu pai em Budapeste. O volume da conferência é um excelente companheiro à biografia de Dale[4]. Os 25 artigos curtos são escritos por uma mistura de escritores com base no Ocidente e vários que moravam no que ainda era a Hungria comunista — onde Polanyi era amplamente lido. A escrita é surpreendentemente exploratória e não dogmática. Mesmo assim, quando chegou sua vez da falar, Polanyi-Levitt pediu: “Se me for permitido mais um pedido à Academia Húngara das Ciências … este é que A Grande Transformação seja disponibilizada aos leitores húngaros em língua húngara”. Isso foi finalmente feito em 1990. Como muitos no Ocidente, o regime comunista em Budapeste não tinha certeza do que fazer com Polanyi.
Hoje, depois de um interlúdio democrático, a Hungria é um centro da autocracia ultra-nacionalista. Políticas equivocadas de licenciosidade financeira têm desempenhado sei papel habitual. Após o colapso financeiro de 2008, o desemprego húngaro aumentou constantemente, de menos de 8% antes do crash até quase 12% até o início de 2010. Na eleição de 2010, o Fidesz – Magyar Polgári Szövetség (União Cívica Húngara), de extrema direita, varreu o governo de esquerda, ganhando mais do que 2/3 dos assentos parlamentares, o que possibilitou a “democracia de controle” do primeiro-ministro Viktor Orbán. Foi mais um eco, de que Polanyi não precisava.
O que, afinal, devemos fazer com Karl Polanyi? E que lições ele pode oferecer para o momento presente? Como até mesmo os seus admiradores admitem, algumas de suas observações eram falhas. Alguns de seus seguidores, Fred Block e Margaret Somers, ressaltam que sua narrativa da Grã-Bretanha do final do século XVIII exagera na abrangência da proteção legal aos mais pobres. Seu famoso estudosobre a Lei dos Pobres ou  Lei Speenhamland, de 1795, cuja assistência pública protegeu os pobres das primeiras perturbações do capitalismo, exagerou na avaliação de sua aplicação na Inglaterra como um todo. No entanto, seu relato da reforma liberal da Lei dos Pobres na década de 1830 foi perfeito. A intenção e efeito foram expulsar as pessoas da rede de apoio e forçar os trabalhadores a aceitarem empregos por salários mais baixos.
Pode-se também argumentar que o fracasso da democracia liberal em conquistar a Europa Central no século XIX, o que abriu o caminho para o nacionalismo de direita, teve causas mais complexas do que a disseminação do liberalismo econômico. No entanto, Polanyi estava certo ao observar que foi a tentativa fracassada de universalizar o liberalismo de mercado após a Primeira Guerra Mundial que deixou as democracias fracas, divididas e incapazes de resistir ao fascismo, até o início da guerra. Neville Chamberlain é mais lembrado por sua capitulação para Hitler em Munique em 1938. Mas, no fosso da Grande Depressão, em abril de 1933, quando Hitler estava consolidando o poder em Berlim e Chamberlain era o chanceler conservador do Tesouro em Londres, ele afirmou : “Estamos livres desse medo que nos assola, o medo de que as coisas vão piorar. Nós devemos nossa liberdade ao fato de termos equilibrado nosso orçamento”. Tal foi a sabedoria convencional perversa, então e agora.
Um artigo recente de três cientistas políticos dinamarqueses no Journal of Democracy questiona se é razoável atribuir o surgimento do fascismo nas décadas de 1920 e 1930 às políticas liberais do laissez-faire e ao colapso econômico.[5] Eles relatam que as democracias bem estabelecidas do noroeste da Europa e das antigas colônias britânicas do Canadá, dos EUA, da Austrália e da Nova Zelândia “foram virtualmente imunes às crises persistentes do período entreguerras”, enquanto as democracias mais novas e mais frágeis da Europa do Sul, Central e Oriental sucumbiram. Na verdade, os fascistas assumiram brevemente o poder no noroeste da Europa apenas por invasão e ocupação. No entanto, essa observação faz de Polanyi uma voz ainda mais profética e ameaçadora sobre o nosso tempo. Hoje, em grande parte da Europa, os partidos de extrema direita são agora a segunda ou terceira maior força.
Em suma, Polanyi pode ter errado aqui e ali, mas conseguiu acertar no grande cenário. A democracia não pode sobreviver com um mercado excessivamente livre; e conter o mercado é tarefa da política. Ignorar isso é cortejar o fascismo. Polanyi escreveu que o fascismo resolveu o problema do mercado desenfreado destruindo a democracia.
Mas, ao contrário dos fascistas do período entreguerras, os líderes de extrema direita de hoje não se ocupam de conter as turbulências no mercado ou proporcionar empregos dignos através de obras públicas. O Brexit, um espasmo de raiva dos despossuídos, não fará nada positivo para a classe trabalhadora britânica; e o programa de Donald Trump é uma mescla de retórica nacionalista e uma aliança ainda mais profunda do governo com o capitalismo predatório. O descontentamento ainda pode ir para outro lugar. Assumindo o valor da democracia, pode haver uma mobilização combativa no espírito do socialismo viável de Polanyi. O pessimista Polanyi diria que o capitalismo ganhou e a democracia perdeu. O otimista nele procuraria uma renovação da política popular.
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[1] Tratei do conflito Mises-Hayek-Polanyi em Karl Polanyi Explains It All, no The American Prospect, maio-jun 2014
[2] John Gerard Ruggie, International Regimes, Transactions, and Change: Embedded Liberalism in the Postwar Economic OrderInternational Organization, Vol. 36, No. 2 (Spring 1982).
[3] Gøsta Esping-Andersen,The Three Worlds of Welfare Capitalism (Polity, 1990).
[4] The Life and Work of Karl Polanyi: A Celebration, edited by Kari Polanyi-Levitt (Montreal: Black Rose, 1990).
[5] Agnes Cornell, Jørgen Møller, Svend-Erik Skaaning, The Real Lessons of the Interwar Years, Journal of Democracy, Vol. 28, No. 3 (July 2017).

Robert Kuttner

Fundacor e co-editor do The American Prospect; professor na Brandeis’s Heller School. Seu livro mais recente é "Can democracy survive global capitalism?"
 - "Pode a democracia sobreviver ao capitalismo global? - dezembro 2017

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

"Dá para construir um país com essa matéria-prima?"

por José Gilbert Arruda Martins

Relendo o livro: "1822" de Laurentino Gomes, lembrei que tinha grifado a frase que uso como título desse breve texto. Ela nos pode nos remeter a pensamentos e reflexões diversas. vamos nos concentrar e tentar discorrer sobre que tipo de país construímos a partir de qual matéria-prima para chegarmos ao ponto que estamos em pleno início de século XXI.

O Brasil, país com dimensões territoriais enormes, sempre foi visto com desprezo pelas potencias estrangeiras. Ninguém nunca nos deu muita importância, a não ser na hora de explorar. Nossas elites, desde o início, quando ainda eram formadas por traficantes de escravos, fazendeiros, senhores de engenho, pecuaristas, charqueadores, comerciantes...(GOMES, 2010), nunca se importou de fato com o nacional, com a soberania, com os interesses nacionais.

Se olharmos o período pós-golpe 2016, fica bem claro esse fato. Entregamos o pré-sal, entregamos nossa valorosa mão de obra de mão beijada aos rentistas de todos os tipos.

Laurentino, logo no início da sua obra pergunta: "Dá para construir um país com essa matéria-prima? Em outras palavras, seria possível fazer um Brasil homogêneo, coerente e funcional com tantos escravos, pobres e analfabetos, tanto latifúndio e tanta rivalidade interna?"

Acredito que na visão das elites brasileiras de ontem e de hoje, a homogeneidade de fato aconteceu, os "senhores" da Casa Grande

Boaventura: A nova Tese Onze

por Boaventura de Sousa Santos

no Outras Palavras

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“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo. A questão é transformá-lo”, escreveu Karl Marx. Seria o caso de atualizar a frase, para livrá-la de certo viés eurocêntrico?
Por Boaventura de Sousa Santos | Imagens: Mural e Cartaz zapatistas
Karl Marx escreveu em 1845 as Teses sobre Feuerbach. Escrito logo depois dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, o texto constitui uma primeira formulação do seu propósito de construir uma filosofia materialista centrada na praxis transformadora, radicalmente distinta da que então dominava e de que era expoente máximo Ludwig Feuerbach.
Na célebre tese onze, a mais conhecida de todas, declara: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.” O termo filósofos é usado num sentido amplo, como referência aos produtores de conhecimento erudito, podendo incluir hoje todo o conhecimento humanista e científico considerado fundamental por contraposição ao conhecimento aplicado. No início do século XXI esta tese levanta dois problemas.
O primeiro é que não é verdade que os filósofos alguma vez se tenham dedicado a contemplar o mundo sem que a sua reflexão tenha tido algum impacto na transformação do mundo. E mesmo que alguma vez isso tenha ocorrido, deixou de ocorrer com a emergência do capitalismo ou, se quisermos um termo mais abrangente, com a emergência da modernidade ocidental, sobretudo a partir do século XVI. Os estudos sobre a sociologia do conhecimento dos últimos cinquenta anos foram concludentes em mostrar que as interpretações do mundo dominantes numa dada época são as que legitimam, possibilitam ou facilitam as transformações sociais levadas a cabo pelas classes ou grupos dominantes.

O melhor exemplo disso é a concepção cartesiana da dicotomia natureza-sociedade ou natureza-humanidade. Conceber a natureza e a sociedade (ou a humanidade) como duas entidades, duas substâncias na terminologia de Descartes, totalmente distintas e independentes uma da outra, tal como acontece com a dicotomia corpo-alma, e construir nessa base todo um sistema filosófico é uma inovação revolucionária. Choca com o senso comum, pois não imaginamos nenhuma atividade humana sem a participação de algum tipo de natureza, a começar mesmo pela capacidade e atividade de imaginar, dada a sua componente cerebral, neurológica. Aliás, se os seres humanos têm natureza, a natureza humana, será difícil imaginar que essa natureza não tenha nada a ver com a natureza não-humana. A concepção cartesiana tem obviamente muitos antecedentes, dos mais antigos do Velho Testamento (livro do Gênesis) até aos mais recentes do seu quase contemporâneo Francis Bacon, para quem a missão do homem é dominar a natureza. Mas foi Descartes que conferiu ao dualismo a consistência de todo um sistema filosófico.
O dualismo natureza-sociedade, nos termos do qual a humanidade é algo totalmente independente da natureza e esta é igualmente independente da sociedade, é de tal maneira constitutivo da nossa maneira de pensar o mundo e a nossa presença e inserção no mundo que pensar de modo alternativo é quase impossível, por mais que o senso comum nos reitere que nada do que somos, pensamos ou fazemos pode deixar de conter em si natureza. Por que então a prevalência e quase evidência, no plano científico e filosófico, da separação total entre natureza e sociedade? Está hoje demonstrado que esta separação, por mais absurda, foi uma condição necessária da expansão do capitalismo. Sem tal concepção não teria sido possível conferir legitimidade aos princípios de exploração e de apropriação sem fim que nortearam a empresa capitalista desde o início.
O dualismo continha um princípio de diferenciação hierárquica radical entre a superioridade da humanidade/sociedade e a inferioridade da natureza, uma diferenciação radical porque assente numa diferença constitutiva, ontológica, inscrita nos planos da criação divina. Isto permitiu que, por um lado, a natureza se transformasse num recurso natural incondicionalmente disponível para ser apropriado e explorado pelo homem para seu exclusivo benefício.
E, por outro lado, que tudo o que fosse considerado natureza pudesse ser apropriado nos mesmos termos. Ou seja, a natureza em sentido amplo abrangia seres que, por estarem tão próximos do mundo natural, não podiam ser considerados plenamente humanos. Assim se reconfigurou o racismo para significar a inferioridade natural da raça negra e, portanto, a “natural” conversão dos escravos em mercadorias. Esta foi a outra conversão de que o Padre Antônio Vieira nunca falou mas que está pressuposta em todas as outras de que falou brilhantemente nos seus sermões. A apropriação passou a ser o outro lado da super-exploração da força de trabalho.
O mesmo aconteceu com as mulheres ao se reconfigurar sua inferioridade “natural”, que vinha muito detrás, convertendo-a na condição da sua apropriação e super-exploração, neste caso consistindo nomeadamente na apropriação do trabalho não-pago das mulheres no cuidar da família. Este trabalho, apesar de tão produtivo quanto o outro, foi convencionalmente considerado reprodutivo para poder ser desvalorizado, uma convenção que o marxismo não enjeitou. A partir de então, a ideia de humanidade passou a coexistir necessariamente com a ideia de sub-humanidade, a sub-humanidade dos corpos racializados e sexualizados. Podemos, pois, concluir que a compreensão cartesiana do mundo estava envolvida até à medula na transformação capitalista, colonialista e patriarcal do mundo.
À luz disto, a tese onze sobre Feuerbach levanta um segundo problema. É que para enfrentar os gravíssimos problemas do mundo de hoje – dos chocantes níveis de desigualdade social à crise ambiental e ecológica, ao aquecimento global irreversível, desertificação, falta de água potável, desaparecimento de regiões costeiras, acontecimentos “naturais” extremos, etc. – não é possível imaginar uma prática transformadora que resolva estes problemas sem uma outra compreensão do mundo. Essa outra compreensão tem de resgatar a um novo nível o senso comum da mútua interdependência entre a humanidade/sociedade e a natureza, uma compreensão que parta da ideia de que, em vez de substâncias, há relações entre a natureza humana e todas as outras naturezas, que a natureza é inerente à humanidade e que o inverso é igualmente verdadeiro, que é um contrassenso pensar que a natureza nos pertence se não pensarmos que, reciprocamente, pertencemos à natureza.
Não vai ser fácil. Contra a nova compreensão e, portanto, nova transformação do mundo militam muitos interesses bem consolidados nas sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais em que vivemos. Como tenho insistido, a construção de uma nova compreensão do mundo resultará de um esforço coletivo e epocal, ou seja,  ocorrerá no bojo de uma transformação paradigmática da sociedade. A civilização capitalista, colonialista e patriarcal não tem futuro, e o seu presente dá de tal modo testemunho disso que ela só prevalece por via da violência, da repressão, das guerras declaradas e não declaradas, do estado de exceção permanente, da destruição sem precedentes do que se continua a designar como recurso natural e, portanto, disponível sem limites.
Minha contribuição pessoal nesse esforço coletivo tem consistido na formulação do que designo por epistemologias do sul. Na minha concepção, o sul não é um lugar geográfico, é uma metáfora para designar os conhecimentos construídos nas lutas dos oprimidos e excluídos contra as injustiças sistêmicas causadas pelo capitalismo, colonialismo e patriarcado, sendo que muitos dos que constituem o sul epistemológico viveram e vivem no sul geográfico. Estes conhecimentos nunca foram reconhecidos como contribuições para uma melhor compreensão do mundo por parte dos titulares do conhecimento erudito ou acadêmico, seja ele filosofia ou ciências sociais e humanas. Por isso, a exclusão desses grupos foi radical, uma exclusão abissal decorrente de uma linha abissal que passou a separar o mundo dos plenamente humanos, onde “só” é possível a exploração (a sociabilidade metropolitana), do mundo dos sub-humanos, populações descartáveis onde é possível a apropriação e a super-exploração (a sociabilidade colonial). Uma linha e uma divisão que prevalecem desde o século XVI até hoje.
As epistemologias do sul procuram resgatar os conhecimentos produzidos do outro lado da linha abissal, o lado colonial da exclusão, de modo a poder integrá-los em amplas ecologias de saberes onde poderão interagir com os conhecimentos científicos e filosóficos com vista a construir uma nova compreensão/transformação do mundo. Ora esses conhecimentos, até agora invisibilizados, ridicularizados, suprimidos, foram produzidos, tanto pelos trabalhadores que lutaram contra a exclusão não abissal (zona metropolitana), como pelas vastas populações de corpos racializados e sexualizados em resistência contra a exclusão abissal (zona colonial). Ao centrar-se particularmente nesta última zona, as epistemologias do sul dão especial atenção aos sub-humanos, precisamente àqueles e àquelas que foram considerados mais próximos da natureza. Ora os conhecimentos produzidos por esses grupos, em que pese a sua imensa diversidade, são estranhos ao dualismo cartesiano e, pelo contrário, concebem a natureza não-humana como profundamente implicada na vida social-humana, e vice-versa. Como dizem os povos indígenas das Américas, “a natureza não nos pertence, nós pertencemos à natureza”. Os camponeses de todo o mundo não pensam de modo muito diferente. E o mesmo acontece com grupos cada vez mais vastos de jovens ecologistas urbanos em todo o mundo.
Isto significa que os grupos sociais mais radicalmente excluídos pela sociedade capitalista, colonialista e patriarcal, muitos dos quais foram considerados resíduos do passado em vias de extinção ou de branqueamento, são os que, do ponto de vista das epistemologias do sul, estão a nos indicar uma saída com futuro, um futuro digno da humanidade e de todas as naturezas humanas e não-humanas que a compõem. Sendo parte de um esforço coletivo, as epistemologias do sul são um trabalho em curso e apenas embrionário.
No meu próprio caso, penso que até hoje não dei conta de toda a riqueza analítica e transformadora contida nas epistemologias do sul que tenho proposto. Tenho salientado que os três modos principais de dominação moderna –classe (capitalismo), raça (racismo) e sexo (patriarcado) – atuam articuladamente e que essa articulação varia com o contexto social, histórico e cultural. Mas não tenho dado atenção suficiente ao fato de este modo de dominação assentar-se na dualidade sociedade/natureza, e de tal modo que sem a superação desta dualidade nenhuma luta de libertação poderá ter êxito.
Em face disto, a nova tese onze devia ter uma formulação do tipo: “os filósofos, filósofas, cientistas sociais e humanistas devem colaborar com todos aqueles e aquelas que lutam contra a dominação no sentido de criar formas de compreensão do mundo que tornem possíveis práticas de transformação do mundo que libertem conjuntamente o mundo humano e o mundo não-humano”. É muito menos elegante que a tese onze original, mas talvez nos seja mais útil.

Boaventura de Sousa Santos

Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril, e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa - todos da Universidade de Coimbra. Sua trajetória recente é marcada pela proximidade com os movimentos organizadores e participantes do Fórum Social Mundial e pela participação na coordenação de uma obra coletiva de pesquisa denominada Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Professor Gilbert Publica Artigo em Livro

por José Gilbert Arruda Martins*

Tive a honra de ser convidado a publicar artigo no novo livro do Curso de Mestrado do Unieuro. Nosso texto está no capítulo 21 da obra intitulada: Direitos Humanos, Cidadania e Violência no Brasil: Estudos Interdisciplinares. Organizadores: Dra. Lídia de Oliveira Xavier, Dr. Carlos F. Domínguez Avila e Dr. Vicente Fonseca.

Foto: Ivana Martins


Como falar em Direitos Humanos num país que acaba de sofrer um rompimento institucional? Como um governo ilegítimo poderá tratar de assunto tão caro à sociedade humana? Essas são algumas questões que logo vêm ao pensamento ao iniciarmos a leitura de qualquer obra sobre Direitos Humanos. Não tem como hoje no Brasil, fazermos debate sobre tema tão importante, sem antes, durante e depois, refletir sobre a atual conjuntura política.

A filósofa e política alemã, de origem judaica, Hanna Arendt, uma vez afirmou: “A essência dos direitos humanos é o direito a ter direitos”. Pois bem, toda a arquitetura política e de poder pós-golpe 2016 é completamente alinhada com a retirada quase que completa de direitos. Segundo o que conseguimos acompanhar nos noticiários, mesmo da mídia conservadora, as pautas do governo e do Congresso na votação de projetos nos quais os direitos consagrados na Constituição Cidadão de 1988, estão sendo paulatinamente destruídos. Numa tentativa de dar resposta às perguntas feitas acima, ousamos dizer que a sociedade organizada brasileira tem a obrigação de tomar para si a responsabilidade em assumir o debate urgente e intransigente do assunto e lutar para que efetivamente, os Direitos Humanos sejam respeitados no país.

No Brasil pós-golpe, a sensação que muita gente da academia e do povo tem é a de que a violência e o desrespeito aos Direitos Humanos aumentaram violentamente. Os episódios de extrema violência perpetrados por agentes do estado, não foram poucos nos últimos doze meses. A mídia, mesmo a conservadora, tem relatado e divulgado, mesmo em doses homeopáticas, notícias avassaladoras de flagrantes desrespeitos aos direitos básicos do cidadão. Blogs progressistas e os grandes jornais internacionais têm replicado tais notícias pelo Brasil e pelo mundo.

A obra que analisaremos a seguir é um ótimo trabalho de professores e estudantes do curso de mestrado em Ciência Política do Unieuro. São vinte e um textos que tratam de temas diversos, mas, todos voltados de uma forma ou de outra, aos Direitos Humanos. Os autores/as tiveram a ousadia e atenção para, com o cuidado redobrado, tratar de temas que falam alto aos interesses da sociedade brasileira e mundial.

Onde entra então a obra Direitos Humanos, Cidadania e Violência no Brasil? A meu ver seus bons textos como especificamente: “Ditaduras e Qualidade da Democracia no Brasil e no Cone Sul”, podem ser replicados nas redes sociais e, fundamentalmente em salas de aula dos diversos cursos de graduação não apenas da instituição responsável pela obra mas, em todas as graduações do país no sentido de provocar o debate e a reflexão sobre a flagrante incongruência entre governos autoritários e direitos humanos. São como água e óleo, completamente impossível de misturar. É inconcebível que governos de cunho autoritários, frutos de golpes e acordos estranhos à democracia, mesmo a representativa, possam tratar de assuntos tão importantes como é a questão dos Direitos Humanos. Não enxergo como isso pode acontecer de fato.

Outro texto bastante interessante: “Uma discussão Teórica Sobre os Interesses das Elites Políticas Refletida na Bancada Ruralista no Congresso Nacional Brasileiro” Acredito, seja um dos que mais poderão colaborar. O texto foi muito feliz em iniciar a reflexão pensando sobre o modus operandi das elites políticas que atuam no Congresso Nacional. Os parlamentares tanto da Câmara Federal como do Senado, na sua grande maioria, combinaram com o atual governo, todas as ações de desmonte do Estado do Bem-Estar Social brasileiro nos últimos dose meses. A velocidade com que fazem as mudanças impressiona até os mais ansiosos defensores do grande capital. Pois bem, historicamente, as elites brasileiras deram provas mais que reais de seu completo descaso com os interesses nacionais e, consequentemente, com a questão dos direitos humanos. Para muitos estudiosos, entre eles o professor e pesquisador Jessé de Souza, autor da mais recente, surpreendente, forte, inovadora obra: A elite do atraso, O Brasil tem uma das mais atrasadas e indiferentes elites do mundo. Seu comportamento ao longo da história mostra com clareza. Foi assim, nos acordos que levaram à criação do Império, se repetiu no golpe que deu nascimento a República, continuou com os acordos do Movimento de 1930, 1954 e o rompimento de 1964 que pariu um dos momentos de maior desrespeito aos Direitos Humanos em nosso país. O texto em questão foi muito feliz em trazer à baila tal assunto. Na análise da forma de atuação das elites ou de seus lacaios no parlamento, os autores partiram da abordagem teórica, muito criticada, por sinal pelo teóricos ditos progressistas, “elitismo crítico e o elitismo democrático”. Mas conseguiram provocar no sentido de pensarmos que tipo de elite está representada num Congresso fortemente conservador como o nosso.

Três outros textos saltam aos olhos no debate sobre direitos humanos quando destacam a questão indígena, são eles: “Violências e Indígenas no Brasil: um estudo sobre resistência na América portuguesa”, “Constituição, Acesso a Direitos e Demarcação de Terras Indígenas no Brasil” e “Ensino Superior Brasileiro e Povos Indígenas” Se o desafio em debater direitos humanos é enorme por causa da presença de um governo ilegítimo, imaginem um governo com tais características, cuidando dos direitos de povos historicamente perseguidos e assassinados como os ameríndios brasileiros. Não é preciso ir muito a fundo para enxergar as atrocidades que continuam a acontecer contra esses povos. Desde a época da invasão europeia suas terras foram violentamente sendo invadidas e tomadas. Nas últimas décadas esse processo, por força do agronegócio, tem sido potencializado fazendo com que haja, inclusive, retrocessos absurdos na questão da demarcação de suas terras. Os textos são bons instrumentos de reflexão para estudiosos do tema e estudantes.

Como destacado, o livro coloca em evidência um conjunto importante de assuntos dentro do tema maior que são os Direitos Humanos. Para concluir nossas reflexões, importante se faz destacar um último artigo: “Cidadania e Transferência de Renda no Brasil: desvendando a percepção dos benefícios do Programa Bolsa Família em Santa Maria, no Distrito Federal”. Para quem não conhece, Santa Maria é uma cidade que fica há 26 quilômetros do Plano Piloto. É uma cidade com vida própria, no entanto, a grande maioria de seus habitantes adultos, tanto homens como mulheres, passam o dia trabalhando no centro da capital federal e retornam para dormir na cidade. Os autores do texto falaram de um assunto, para muito batido, mas na visão dos dois pesquisadores, essencial para o presente e o futuro dos direitos de cidadania brasileira. A pobreza extrema; as desigualdades sociais e regionais; a grande concentração de fluxos de renda e estoques de riqueza; as discriminações de raça, gênero e idade; a ausência de reformas estruturais, entre elas a agrária, tributária e política, entre outros problemas relevantes da realidade social, são fenômenos inaceitáveis que marcam a história brasileira. Acontecimentos construídos a partir de uma estrutura política que abraçou e abraça historicamente o autoritarismo e a exclusão econômica e social, desprezando de forma cabal a democracia e a cidadania. Com um olhar nessa realidade iníqua, que os autores trabalharam o texto. O Programa Bolsa Família, que hoje sofre com a diminuição de recursos, é um dos mais importantes instrumentos de diminuição da fome no país. A cidade de Santa Maria no Distrito Federal sente isso. As famílias pesquisadas demonstraram de forma cabal essa realidade importante.

O texto debatido logo acima, trás à luz não um programa de governo, mas, uma política de Estado. O Programa Bolsa Família, devido à sua grande abrangência e importância, acabou se transformando numa política que deve se tornar permanente, ou pelo menos, até acabarmos com a fome no Brasil. Infelizmente, o atual governo vem aos poucos reduzindo sua importância e, com a PEC dos gastos públicos, reduzindo os investimentos nessa área, a tendência para os próximos anos é o Bolsa Família diminuir e deixar de fazer o importante papel de ajuda no combate à fome no país.

Os autores destacam a cidade de Santa Maria-DF, mas poderia ser qualquer outra cidade pobre do país. O PBF tem, como destacado pelos pesquisadores, além de uma importância impar no combate à fome e o alastramento da miséria, o programa é, comprovadamente, um instrumento eficaz de distribuição de renda e de aumento do estágio civilizatório num país historicamente tão carente de humanidade e civilidade.

Para concluir podemos dizer que a obra referida pode, se bem usada, ser um instrumento de reafirmação do debate sobre Direitos Humanos nas escolas e na sociedade. Esse é o tema do presente e do futuro. Se o Brasil, mesmo com a elite que possui, pretende construir uma sociedade moderna, precisa urgentemente levar o debate sobre Direitos Humanos a sério. Infelizmente, não é o que observamos quando olhamos com mais atenção para o funcionamento dos governos, em todos os seus níveis. No que se refere ao papel, por exemplo, de policiamento, quesito onde a PM é sua maior responsável, o país passa a ser visto lá fora como atrasado, alguns chegam a defender, medieval.

*Mestre em Ciência Política