DITADURA MILITAR NO BRASIL
O golpe e a construção da dependência
financeira brasileira pelos olhos de Fábio Antonio de Campos
Do IHU Online
Site da revista Caros Amigos –
03/04/2014
Passados 50 anos do golpe militar que depôs o ex-presidente João
Goulart, na madrugada do dia 1º de abril de 1964, pesquisadores de diferentes
áreas do conhecimento tentam compreender quais razões fizeram com que a
ditadura se mantivesse por mais de 20 anos no país. A economia, nesse sentido,
“é fundamental para entender o alcance e os limites da ditadura como
instrumento do capitalismo brasileiro”, diz, à IHU On-Line, o economista Fábio
de Campos, autor da tese de doutorado A arte da conquista: o capital
internacional no desenvolvimento capitalista brasileiro (1951-1992).
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o professor do
Instituto de Economia da Unicamp assinala que as multinacionais que atuavam no
Brasil à época apoiaram e financiaram o golpe, porque ele era “extremamente
necessário para dar continuidade à valorização capitalista das empresas
multinacionais com o mercado interno brasileiro”. Segundo ele, a ditadura
“permitiu a conexão dos interesses de valorização das filiais estrangeiras com
o sistema financeiro internacional. A reforma da legislação, além de retirar do
marco institucional as medidas que impediam as remessas ao exterior a partir de
reinvestimentos de lucro, criou novos instrumentos que liberalizavam o acesso
da filial estrangeira ao endividamento externo”.
Campos esclarece que a Lei de Remessas de Lucro, como outras
propostas do ex-presidente Jango, entre elas a estatização do setor energético
e a negociação da dívida externa, bem como “qualquer política que fosse um
pouco mais discricionária em relação à entrada e saída de capitais estrangeiros
(investimentos, empréstimos, remessas, repatriações, juros, transferências
diversas), afetava a valorização capitalista que sustentava os interesses do
complexo multinacional”.
Crítico das interpretações de que a ditadura gerou o “milagre
econômico” para o Brasil, Campos frisa que o “capital internacional, ao mesmo
tempo que permitiu o avanço da industrialização brasileira, constituindo-se no
eixo dinâmico dessa expansão, selou a aliança imperialista entre as burguesias
internacionais com suas correspondentes nativas que sempre se subordinaram a
essa articulação. Longe de isso criar as condições para autodeterminação do
desenvolvimento nacional, acabou por sacramentar nossa dependência externa e
subdesenvolvimento”. Essa aliança tem reflexos ainda hoje e pode ser percebida
no processo de desindustrialização e primarização da economia nacional.
Fábio Antonio de Campos é graduado em Ciências Econômicas pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, mestre em História
Econômica e doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de
Campinas - Unicamp.
Hoje continua, no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, a
programação do Ciclo de Estudos “50 anos do Golpe de 64. Impactos,
(des)caminhos, processos. A programação do evento está disponível aqui.
Confira a entrevista:
IHU On-Line - Quantas multinacionais havia no
Brasil antes do golpe de 64 e como elas atuavam?
A presença de empresas multinacionais na economia brasileira
data desde os tempos do Império, quando se fixaram nas áreas de utilidade
pública, transporte, finanças, infraestrutura e atividades ligadas à economia
cafeeira. No decorrer da primeira metade do século XX, novos investimentos
estrangeiros se destinaram aos setores energético, primários, de comunicações e
de representação comercial de indústrias manufatureiras. Mas foi na segunda
metade dos anos 1950 que tivemos um marco decisivo na internacionalização
brasileira, quando as empresas estrangeiras chegavam ao país para conquistar o
mercado interno e, com isso, se constituir estrategicamente nos setores de bens
de capital e de consumo duráveis, os mais dinâmicos na implantação e
desenvolvimento da indústria pesada brasileira. A origem desse capital foi
norte-americana e europeia, e os principais investimentos se destinaram aos setores
de transporte, química, metal-mecânica, materiais elétricos, seguidos pelos
setores de consultorias, comércio e farmacêuticos.
Mais que uma questão quantitativa que permitiu a economia
brasileira crescer a um ritmo de “50 anos em 5”, em Juscelino Kubitschek – JK,
e depois intensamente na ditadura militar, o que se consolidou nessa época com
o capital internacional foi um novo nexo imperialista que articulou de forma
subordinada o Estado brasileiro e os sócios privados internos à estratégia de
conquista das grandes corporações. Nesse momento de Guerra Fria, tal
articulação era extremamente necessária para dirimir os riscos de valorização
capitalista diante da ameaça soviética em espaços periféricos como a América
Latina. Junto com a internacionalização produtiva dessa fase que alavancava a
industrialização brasileira, estava internalizando também um modo de vida
genuinamente fordista e funcional à dominação imperialista. Uma questão
complexa, portanto, que ultrapassa em muito a linha de argumentação economicista
do período.
O então presidente João Goulart
tinha alguma proposta em relação à atuação das empresas multinacionais no
Brasil?
João Goulart sempre foi cauteloso nessa matéria porque sabia que
qualquer intervenção mais nacionalista intensificava as contradições seculares
de nossa dependência externa. No entanto, estas nasceram da nossa formação
histórica, convertendo em antagonismos abertos que necessitavam ser enfrentados
dentro do contexto da “revolução brasileira”. Demandas históricas de controle
ao capital internacional passaram a ser bandeiras de sindicados, movimentos
sociais organizados, intelectuais, estudantes e os partidos progressistas. A
pressão nacional-popular cresceu tanto que a “Lei de Remessas de Lucro” foi
aprovada no Congresso em 1962, sendo que Goulart só a sancionou em janeiro de
1964, já na antessala do Golpe. Portanto, a iniciativa de controlar o capital
internacional foi resultado de uma conscientização popular que vinha de longo
prazo. Tal como a campanha do “Petróleo é Nosso”, Goulart seria pressionado
pela movimentação popular.
Em contrapartida, isso aumentaria a apreensão do Governo
norte-americano, das empresas multinacionais aqui instaladas e dos setores
estatais e de empresas privadas nacionais que formavam uma associação de
interesses que tinha na dependência externa a realização de seus negócios. Como
observo em minha tese de doutorado, a história se acelerou naquela quadra, e as
condições para uma revolução brasileira emergiram dentro da polarização entre
um “complexo multinacional” versus forças nacional-populares.
Qual foi a relação das empresas
multinacionais com o golpe de 1964? Quais empresas financiaram o golpe?
A relação mais evidente foi o financiamento do IPES [instituto
de Pesquisas e Estudos Sociais] e IBAD [Instituto Brasileiro de Ação
Democrática] — que eram órgãos de conexão política do Governo norte-americano
—, empresas multinacionais e as burguesias brasileiras. Buscavam na verdade
intervir por meio da conspiração contra os interesses que colocariam em risco a
valorização capitalista desse complexo multinacional. Os trabalhos de Dreifuss
apresentam de forma pioneira os atores que financiaram tais órgãos. No entanto,
é necessária uma mediação mais profunda para entender o estágio de
desenvolvimento capitalista brasileiro conectado com a fase imperialista do
pós-IIGM – II Guerra Mundial. Diante da conjuntura da Guerra Fria, a
viabilidade da realização dos investimentos estrangeiros mediante a conquista
do mercado interno exigia parcerias nacionais sólidas, de modo a sancionar uma
política econômica favorável à mobilidade do capital internacional,
principalmente para realizar seus lucros extraídos com exploração do trabalho
brasileiro em moeda de origem (divisas fortes). Essa valorização externa,
geralmente em dólares, alavancava negócios internos dentro de um poderoso arco
de alianças.
Qual era o interesse dessas
empresas em que houvesse um golpe militar no Brasil?
Fábio Antonio de Campos - Qualquer política que fosse um pouco
mais discricionária em relação à entrada e saída de capitais estrangeiros
(investimentos, empréstimos, remessas, repatriações, juros, transferências
diversas) afetava a valorização capitalista que sustentava os interesses do
complexo multinacional. O capitalismo dependente brasileiro, quando passou a
ser questionado por forças populares, cujas classes subalternas passaram a ter
alguma voz, dilatando de forma inédita a democracia que sempre fora restrita e
dominada por uma burguesia ultraelitista, fez com que o risco dos negócios
aumentasse. Do ponto de vista concreto, é possível observar na “Lei de Remessas
de Lucro”, ao lado de outras questões importantes como a estatização do setor
energético e a negociação da dívida externa, como se manifestava essa
correlação de forças.
Dentre várias atribuições, a lei propunha criar um código
inédito de seleção de investimentos e uma sistemática regulação das remessas de
lucros, royalties, transferências tecnológicas, juros, etc. Em seu dispositivo
mais polêmico estava o limite de remessas de lucro em 10% apenas do capital
inicial, ou seja, só podia remeter a partir do que de fato entrou, e não de uma
base maior em que se adicionavam os reinvestimentos de lucro. Sem falar que, em
caso de crise cambial, previa-se paralisação das remessas e outras medidas de
controle na conta capital e de serviços do balanço de pagamentos. Na história
econômica brasileira, toda vez que se tentou algo semelhante, como durante o
período Vargas, por exemplo, tais medidas não duraram mais do que um ano. Essa
legislação, a despeito de seu elevado grau de tecnicidades, que atrapalham a
compreensão, revela o sentido político dos poderes do capital internacional que
estão em jogo, e também como eles se articulavam para obstruir qualquer
instrumento que inviabilizasse seus interesses. A partir do momento que no
terreno da democracia esses interesses foram sendo vencidos, como no caso da
aprovação da Lei de Remessas de Lucro em 1962, a conspiração e o Golpe seriam
extremamente necessários para dar continuidade à valorização capitalista das
empresas multinacionais com o mercado interno brasileiro.
Qual foi a política econômica
implementada durante o golpe militar? O que mudou em relação à política
econômica anterior?
Fábio Antonio de Campos - O Programa de Ação Econômica do
Governo - PAEG e as reformas financeiras que nasceram logo após o Golpe foram
mudanças essenciais. Isso porque de um lado as políticas de oferta ampliaram as
condições para o financiamento da economia, sendo que as políticas de demanda
criaram, por outro lado, uma intensa restrição via cortes de gasto público e
arrocho salarial que penalizou boa parte das forças populares que estavam
lutando contra o complexo multinacional antes de 1964. Essa política econômica,
ao mesmo tempo que criava as condições para aprofundar a desigualdade social
brasileira, restabelecia, por meio do financiamento às grandes empresas e às
famílias da classe média alta para cima, as condições vitais para o crescimento
econômico a partir de uma estrutura industrial montada na época de Kubitschek.
Tais medidas que aprofundaram nosso subdesenvolvimento só tiveram êxito porque,
com o Golpe de 1964 e a ditadura, o nexo imperialista foi renovado. Além de
destituir da Lei de Remessas de Lucro seus dispositivos mais discricionários em
relação ao capital internacional, já em agosto de 1964 (Lei 4.390), foram
criadas novas medidas que facilitariam o acesso ao mercado internacional de
crédito.
Como, depois do golpe, a
política econômica beneficiou as multinacionais?
Além da política econômica mais geral que beneficiava tanto as
condições de financiamento da empresa multinacional quanto restabelecia a
potencialidade do mercado interno por meio de incentivo ao consumo das classes
altas, a ditadura permitiu a conexão dos interesses de valorização das filiais
estrangeiras com o sistema financeiro internacional. A reforma da legislação,
além de retirar do marco institucional as medidas que impediam as remessas ao
exterior a partir de reinvestimentos de lucro, criou novos instrumentos que
liberalizavam o acesso da filial estrangeira ao endividamento externo. Na
medida em que as matrizes intermediavam no Euromercado esses empréstimos para
suas filiais no Brasil, tornavam-se suas credoras, e todo pagamento pelo
serviço dessa dívida poderia ser superfaturado remetendo lucros disfarçados em
juros. Essa foi uma nova fase do endividamento externo brasileiro, cujas
empresas multinacionais foram agentes fundamentais desse processo. Essa
liquidez internacional foi drenada pelo complexo multinacional no final dos
anos 1960, internalizando crédito externo bem acima das necessidades de
financiamento industrial para importação de bens de capital. Desse modo, o endividamento
externo assumiu um caráter eminentemente financeiro, haja vista que as reservas
cambiais que iam se avolumando deveriam ser esterilizadas por meio de emissão
de títulos da dívida pública ante o impacto inflacionário que isso causava na
economia.
A oferta de títulos públicos com taxas de juros cada vez mais
convidativas para o mercado criava um negócio interno extremante lucrativo para
o complexo multinacional, originando no futuro a “ciranda financeira”. Assim, a
corporação multinacional ganhava tanto no Euromercado, permitindo que suas
filiais se endividassem para remeter lucros disfarçados, como credoras
internamente, ao lado do grande capital privado nacional, na rolagem de títulos
da dívida pública. A chamada modernização do sistema financeiro pela ditadura
garantiu essa facilidade, dentre outras, para o complexo multinacional.
A política econômica do período
do golpe favoreceu os brasileiros?
A política econômica pós-Golpe favoreceu a minoria da população
brasileira, isto é, os brasileiros da classe média alta para cima. A burguesia
e seus aliados usufruíram de novas fronteiras de investimentos e de variados
negócios que nasceram nesse período.
De que maneira o capital
internacional influenciou na formação econômica do Brasil? Qual foi a relação do
capital internacional com o desenvolvimento capitalista brasileiro entre 1951 e
1992?
Ao conquistar o mercado interno brasileiro, impondo o ritmo e o
compasso da implantação e desenvolvimento das forças produtivas, o capital
internacional, ao mesmo tempo que permitiu o avanço da industrialização
brasileira, constituindo-se no eixo dinâmico dessa expansão, selou a aliança
imperialista entre as burguesias internacionais com suas correspondentes
nativas que sempre se subordinaram a essa articulação. Longe de isso criar as
condições para autodeterminação do desenvolvimento nacional, acabou por sacramentar
nossa dependência externa e subdesenvolvimento. Se antes essa articulação
permitia um certo desenvolvimento capitalista, em função de que os
investimentos se orientavam por um regime central de acumulação, cuja
necessidade era de integrar o mercado interno por rígidas fronteiras adensando
as cadeias produtivas, hoje, com a mundialização financeira, a articulação deve
ser global.
O Brasil como o elo fraco no modo de produção capitalista, deve
se adaptar apresentando uma política econômica liberal que garanta a mobilidade
do capital internacional e, com isso, sofrer desnacionalização, privatização,
desindustrialização e primarização da economia. A despeito das particularidades
da época neoliberal que vivemos, a continuidade dessa dependência foi resultado
de um processo histórico que só a partir do período colonial podemos entender
em sua totalidade.
Qual era a situação econômica
do Brasil no período pós-golpe? Alguns especialistas comentam que o Brasil
viveu uma situação de milagre econômico durante a Ditadura, mas, com a
reabertura, constatou-se que o déficit externo era altíssimo.
A economia é fundamental para entender o alcance e os limites da
ditadura como instrumento do capitalismo brasileiro. A ditadura serviu para
garantir a expansão do desenvolvimento capitalista brasileiro definido a partir
de JK, ou seja, a industrialização pesada dinamizada pelo capital internacional
em proveito dos diferenciais do mercado interno, estabelecidos pela elevada
concentração de renda que garantia a valorização à custa da superexploração do
trabalho. À medida que se avançava na industrialização intensificando a
dependência externa e o subdesenvolvimento, os limites estruturais que se
impunham (financiamento e liberalização cambial), exigiam reformas institucionais
que aperfeiçoassem o modelo econômico funcional ao complexo multinacional.
O Golpe de 1964 e a ditadura tiveram essa função, ou seja,
viabilizar um tipo de indústria que recolocava nossos dilemas de formação
histórica numa situação ainda mais dramática. Os problemas que surgem desse
período, como desaceleração do crescimento, redução na taxa de investimento,
aumento da desigualdade, desemprego e estatização da dívida externa só podem
ser compreendidos dentro da “contrarrevolução brasileira”. Na essência, ela
significou o divórcio dos meios estruturais que tinham, na utopia de
desenvolvimento nacional, os fins. O antagonismo que se abriu nos anos 1950,
acirrando em forma de inúmeros conflitos e lutas na segunda metade dos anos
1960, foi enfrentado com uma rota desenvolvimentista antinacional,
antidemocrática e antissocial.
Enquanto a ditadura serviu para viabilizar os interesses do
complexo multinacional, que, aliás, tinham na industrialização seu eixo de
valorização capitalista, ela cumpriu seu papel, mas quando a própria
articulação imperialista entre a economia brasileira e o padrão mundial de
acumulação teve que ser realinhada em favor do capital internacional, ela
perdeu sua função.
Ainda hoje o capital
internacional exerce influência no desenvolvimento capitalista brasileiro? Em
que medida? O que diferencia o período analisado com os dias de hoje?
O Estado, na ditadura, foi instrumentalizado para atender os
fins do capital internacional e seus sócios internos em um determinado padrão
mundial de acumulação, e era assim que sua face intervencionista se ajustava às
necessidades impostas pelas classes dominantes. Seu raio de manobra foi
delimitado por essa dimensão, permitindo apresentar certa legitimidade por meio
da ideologia desenvolvimentista, um aparente nacionalismo e o crescimento
econômico puxado pela indústria.
Hoje, a intervenção estatal é para garantir a viabilidade dos
negócios externos e internos que compõem outro arco de interesses do complexo
multinacional, sob uma ideologia neoliberal, cujo aumento do poder do capital
internacional na economia brasileira sanciona tanto a secular dependência
externa quanto o subdesenvolvimento.
Deseja acrescentar algo?
Fábio Antonio de Campos - Apenas convidar os leitores para que
revisitem a formação econômica brasileira, relendo autores brasileiros
clássicos, de modo a extraírem as determinações profundas do significado do
capital internacional em nossa história. Naquele difícil contexto do pré-Golpe,
o pensamento social brasileiro estava armado para discutir essas questões com
enorme fôlego. Atualmente, diante de uma crise estrutural que enfrentamos no
capitalismo, se faz urgente estudar nossas particularidades históricas e a
posição periférica que o país ocupa em um mundo cujas corporações
multinacionais dominam a reprodução material e cultural da sociedade
contemporânea.