quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Direitos Humanos - Judiciário vingativo e moroso impede políticas de desencarceramento

no Rede Brasil Atual

Em estudo sobre o cumprimento de indultos do Dia das Mães para mulheres que não cometeram crimes graves, Pastoral Carcerária identificou que o Judiciário atua contra o Direito e decreto presidencial.

mulher presa
Milhares de mulheres, mesmo atendendo a todos as exigências, mesmo com ordem assinada pela presidência, não conseguiram o indulto

São Paulo – Ao lançar nesta quarta-feira (29) o relatório Em Defesa do Desencarceramento de Mulheres: Pesquisa sobre o impacto concreto do indulto do dia das mães de 2017, a Pastoral Carceráriaafirma que o benefício atingiu apenas 3 mil de 14 mil presas. "O abismo entre os números é alarmante”, afirma o documento.
Por meio da análise de dados coletados em diferentes esferas, foi possível encontrar os fatores causadores da discrepância. “A falta de identificação de casos por parte dos atores responsáveis, o baixo número de requerimentos de indulto realizados pelas Defensorias Públicas e as altas taxas de pedidos rejeitados pelos juízes responsáveis.” A atuação das Defensorias, por exemplo, ficou muito abaixo do esperado pela Pastoral, com apenas 513 pedidos naquele ano. Por sua vez, os juízes responsáveis pelas concessões rejeitaram 76,5% dos pedidos.
“Uma vez que os requisitos previstos no Decreto são bastantes claros e aos magistrados cabe apenas declarar a concessão presidencial, é de se estranhar margem tão grande de rejeição frente aos casos já identificados por outros autores. Esses dados sugerem que o Judiciário atravessa a atribuição da presidência”, afirma o relatório, ao lembrar que o indulto de dia das mães de 2017 foi regido por um decreto presidencial de 12 de abril de 2017, que determinou as condições para a efetivação dos indultos. Isso significa que milhares de mulheres, mesmo atendendo a todos as exigências, mesmo com ordem assinada pela presidência, não conseguiram o indulto por impedimento da Justiça.
Os esforços para que essas mulheres, que não cometeram crimes graves, consigam o indulto, é importante para ressocializar, além de funcionar como uma política pública de enfrentamento ao encarceramento em massa visto no país. “No lugar de ampliar e construir presídios, impõe-se a construção de um programa voltado à redução da população prisional e de suas mazelas”, afirma a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, assinada pelo Executivo em 2014.
Diante dessa estratégia, a Pastoral lamenta a postura do Judiciário. “A partir da constatação das prisões lotadas, das humilhações profundas e das interpretações judiciais vingativas, juntando com a morosidade judicial, nasceu (…) a necessidade de ações concretas para verificar se o indulto e outros direitos concedidos estava sendo de fato garantido.”
“Para que ferramentas como o indulto possam ser delineadas e efetivamente de acordo com as necessidades reais da população prisional, é preciso analisar como sua aplicação tem se dado na prática (…) Atrás de cada um dos números apresentados neste relatório, estão as dores, vidas e esperanças de tantas mulheres, famílias, filhos e filhas, pessoas que enxergam no indulto a possibilidade de uma vida fora do cárcere”, completa o estudo.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Índios: a trágica Educação “ofertada” pelo Estado

no Outras Palavras

Imagem: autor desconhecido

Há mais de 2 mil escolas indígenas no Brasil. Baseadas em pedagogias brancas, colonizam, domesticam e destroem uma forma de transmissão de saberes com a qual muito teríamos a aprender
Por Angela Pappiani | Fotos: Helio Nobre/ikore
Não consegui controlar o sentimento. Fiquei com pena das crianças, pequenas ainda, os menores com 3 ou 4 anos, naquele cercado de folhas de babaçu, no meio do pátio da aldeia. Os dias de julho no cerrado brasileiro são secos, 40 graus, derretendo os miolos e abaixo dos 10 graus nas madrugadas, com um sereno fino que deixa tudo molhado e gelado. Os meninos, com calçãozinho vermelho e sem camisetas, dormiam sobre esteiras trançadas de palha, com o céu estrelado sobre a cabeça. O fogo, no centro do círculo, era para aquecer. Mas eu, com blusa de lã e enrolada no cobertor, tiritava de frio. As mães e irmãs levavam comida e água algumas poucas vezes ao dia. E eles resistiam, firmes, levando a sério seu papel importante na cerimônia que se repete apenas a cada 15 anos, o Wai’a.
Essa é apenas uma das muitas provas de resistência por que passam os meninos do povo Xavante. Enfrentam privações, fome, sede, frio, calor, cansaço físico, medo, pressão psicológica. São treinados assim, em longas e duras provas para se tornarem adultos fortes e resistentes, guerreiros conhecedores do território, das estratégias de sobrevivência.
Exatamente o oposto do que nós, os warazu – os não indígenas, fazemos com nossos filhos. Muitas crianças nas cidades e campos, vivem realidades de privações que ainda incluem violência física, ausência de amor e amparo. Mas, de modo geral, tentamos proteger nossos filhos de qualquer adversidade, poupá-los de desconfortos e contrariedades, cercá-los de bens materiais e facilidades que, a nosso ver, melhoram a vida e criam oportunidades.
TEXTO-MEIO
Nas aldeias que conheci, mesmo nos lugares mais precários, onde se luta todo dia por um punhado de comida, pelo direito à água e a um pedaço de chão sob os pés, não falta amor e acompanhamento no processo de transformação das crianças em gente grande. Uma caminhada coletiva, com mães, pais, tios, primos, avós, todos juntos, participando da formação daqueles seres tão importantes, tão desejados, que sabem de suas origens e da missão que terão pela frente: guardar o seu lugar sagrado no mundo, mesmo que o lugar já não exista fisicamente.
As cerimônias que marcam a passagem do tempo são muitas: para receber o bebê que chega ao mundo, para lhe dar nome, para apresentá-lo aos espíritos e ancestrais, para proteger os dentes que nascem, para celebrar a primeira menstruação, para marcar a passagem ao mundo adulto, para formar os guerreiros e guerreiras. E cada povo tem seu jeito de lidar com essas passagens, de marcar cada um desses tempos: com cantos, danças, adornos, comidas especiais, grandes festas que reúnem várias aldeias. As provas e obstáculos estão presentes em cada uma delas.
Os bebês engatinham pelo chão de terra, se aproximam das fogueiras, brincam com formigas, dividem a refeição com o papagaio ou o macaco de estimação. Fazem parte, estão no mundo para conhecer todas as coisas, sentirem os limites e os perigos na pele e aprenderem as lições que só essa vivência permite.
Na aldeia Yanomami do Demini, duas meninas brincavam de fazer uma pequena fogueira, imitando a mãe que cozinhava ao lado. As duas tinham mais ou menos 3 e 5 anos de idade. Um desentendimento entre as duas virou briga. A menor veio chorando até a mãe, reclamando da irmã. A mãe pegou o facão, desses grandes, usados para tudo, e entregou à menina que saiu correndo atrás da outra. Eu, que presenciava a cena, fiquei gelada. A menor correu atrás da irmã, gritando, com raiva, arrastando o facão pesado por um tempo e desistiu. A outra riu, se aproximou, e as duas voltaram a brincar. A mãe continuava nos seus afazeres, tranquila. Eu perguntei sobre os riscos do que havia acontecido. Ela, generosa e paciente, me explicou: a menor se sentira poderosa com o facão na mão, ela era mais fraca e lenta que a outra, nunca a alcançaria nem teria forças para erguer o facão e machucar a irmã, que, no esforço, sua raiva havia se aplacado rápido e cada uma tivera sua lição. Sabedoria Yanomami para lidar com os filhos.
Nos anos de convivência com tantas aldeias, nunca vi uma dessas crianças machucada com gravidade, nenhum acidente fatal. As crianças nas aldeias aprendem os limites do seu ambiente, convivem com o rio, com o fogo, com a chuva, com a enchente, sobem em árvore, andam descalças na mata. Escapam das cobras, das onças, dos marimbondos porque os avós contam histórias que as preparam e rezam para protegê-las. O que mata as crianças nas aldeias é o sarampo, a pneumonia, a malária, a diarreia, a subnutrição, o agrotóxico na água e no ar, os acidentes dos caminhões precários. Causas externas, violência que envolve os territórios e vai se banalizando.
E as crianças nas aldeias trabalham, porque o trabalho é o que mantém a vida, que promove o desenvolvimento, o aprendizado, a noção do coletivo. Crianças participam de todas as tarefas da casa, carregam os irmãos menores, vão para a roça com as mães, pegam lenha e água, pescam, caçam, trançam esteiras e balaios, fazem adornos e panelas. E isso as faz membros de um povo, parte fundamental do coletivo, lhes dá um lugar, as ensina sobre matemática, geografia, história, ciência, economia, medicina, arquitetura. Quanto conhecimento é passado nas brincadeiras, nos momentos de compartilhar o trabalho e as histórias! O experimentar constrói noções fundamentais, aguça a curiosidade, faz pensar, exercita a memória, as habilidades. Nas brincadeiras, crianças imitam os adultos com criatividade e muita alegria.
Aos poucos, as escolas formais foram chegando às aldeias. Em algumas, era reivindicação do povo indígena; em outras, imposição do sistema. Mas, de qualquer forma, o que desejavam era o que prevê a Constituição: “uma educação escolar específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária”. Direito conquistado com muita luta e que, como outros direitos, ficou só no papel. O ministério da Educação tem a responsabilidade de construir as políticas públicas para a educação e a execução nas áreas indígenas fica a cargo dos governos estaduais e municipais, onde o preconceito e os conflitos são mais presentes. Se a questão da educação escolar já é complicada a nível nacional a coisa complica ainda mais diante da diversidade de povos indígenas e realidades em cada região do país.
Até meados do século 20, o modelo de escola que existia em algumas áreas indígenas era o da missão religiosa que retirava crianças do convívio da família e as confinava em internatos onde eram proibidas de falar seu idioma e praticar sua cultura. Ali recebiam formação religiosa e aprendiam um ofício que as capacitava para se “integrarem ao mundo”, como cidadãos produtivos. Sofriam abusos físicos e psicológicos. Crianças eram entregues a famílias de brancos, muitas vezes de militares, para que fossem criadas distantes de seus territórios, de suas raízes. O plano do Estado era de acabar definitivamente com os povos indígenas, com sua diversidade cultural, construindo uma única nação, com uma única língua e cultura. O plano falhou. Felizmente os povos indígenas foram mais fortes, organizados e resistentes do que se podia imaginar. Independente das perdas irreparáveis que sofreram, conseguiram se erguer e buscar novas estratégias de sobrevivência diante da nação que seguia seu plano de desenvolvimento.
Até que outro modelo de escola chegou, dessa vez dentro das aldeias, com prédios de alvenaria, caixas fechadas e quentes que isolam as crianças da natureza, que moldam seus corpos livres ao formato da cadeira, que introduzem outra noção de tempo, o tempo parado, imóvel, sem família, sem brincadeira, sem questionamento, sem aprendizado. O tempo de olhar a nuca do companheiro, sem poder falar, ouvindo um professor, que muitas vezes nem fala o seu idioma, repetir fórmulas e conceitos totalmente alienígenas.
Durante muito tempo, algumas aldeias resistiram à entrada das escolas. Tinham medo da influência de fora, da presença dos professores não indígenas. As mães chegavam a impedir que os filhos fossem para aula. Mas aos poucos, essas comunidades resistentes foram vencidas. Muitas delas conseguiram interferir no esquema que chegava pronto, de fora, construindo materiais próprios, na sua língua, formando professores, apesar de todas as dificuldades. Mesmo essas experiências inovadoras sofrem com as regras e burocracias, com papeis a serem preenchidos, documentos e exigências do sistema que muitas vezes são impossíveis de serem cumpridas.
Em comunidades menos preparadas para enfrentar as mudanças provocadas pela escola, o que se vê são professores exercendo seu poder como os novos donos do conhecimento, confrontando os anciãos e a tradição, a merenda escolar distribuindo achocolatados e bolachas recheadas, crianças afastadas das práticas tradicionais e de suas raízes, sem conseguirem se apropriar dos novos instrumentos. E como consequência da influência da escola e de uma nova maneira de enxergar o mundo, temos crianças e jovens perdidos, sem se enquadrarem no mundo dos brancos e distantes da cultura de seu povo, com aspirações materiais que não podem alcançar e sem perspectivas dentro das aldeias.

As comunidades mais tradicionais e fortalecidas conseguem conviver com a escola mantendo os rituais, as reclusões das crianças e jovens, o tempo do aprendizado em família. Nessas aldeias, professores buscam a formação oferecida pelo Estado ao mesmo tempo que adaptam esse conhecimento de fora às necessidades e aspirações da comunidade. São criativos na construção de materiais próprios na língua indígena, usando os recursos e tecnologias para fortalecer sua forma de estar no mundo e a luta pelos direitos.
Difícil imaginar o que vem pela frente em tempos de tanto retrocesso e desrespeito aos povos tradicionais enquanto o Mercado se torna o grande senhor de tudo e todos. Podemos fazer nossa parte, apoiando os povos indígenas, contribuindo para reflexões, questionamentos e ações que transformem essa realidade.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Argentina: nada será como antes

no Outras Palavras


Uma semana depois, balanço da jornada que quase levou à aprovação do direito ao aborto indica: lutas feministas tornaram-se mais fortes que nunca, espalham-se pelo continente e desafiam promiscuidade entre religião e Estado
Por Fernanda Paixão e Antônio Ferreira, do Coletivo Passarinho
Na madrugada da quinta-feira 9 de agosto, depois de mais de 17 horas de pronunciamentos, o Senado argentino vetou o projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez (IVA). A longa jornada de mobilização nas imediações do Congresso desde as primeiras horas do dia 8 de Aborto, ou “8A”, como se intitulou a data histórica, terminava com o rechaço decidido por 24 senadores e 14 senadoras. Nas ruas, o lado dos lenços azuis “pró-vida”, à direita do edifício do Congresso, não economizou fogos de artifício e cartazes alçados com os dizeres “Cristo venceu”. O lema “Que seja lei”, difundido nos últimos meses por toda Argentina junto com a maré verde pró-aborto legal, ao final da noite deu lugar com força ao “Será lei”. Talvez não hoje, mas amanhã, como ressaltaram em seus discursos senadores que votaram pelo “sim”, como Pino Solanas e a ex-presidenta Cristina Kirchner. O projeto, que já foi apresentado ao Congresso Nacional sete vezes, agora espera o início das sessões legislativas de 2019 para ser apresentado novamente.
Na manhã seguinte, em contraste com um 8 de agosto coberto de chuva, abriu-se um dia estranhamente ensolarado. O aborto seguia na clandestinidade, deixando em jogo a vida, a saúde e a autonomia das mulheres de todo um país. Porém, aquela jornada épica de quase 2 milhões de pessoas que passaram todo o dia sob uma incessante chuva e sensação térmica de 2ºC, mostrou com clareza que alguma coisa estava fora da velha ordem. O país foi tomado pelos lenços verdes, símbolo da Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito. Até o mais reacionário dos senadores antidireitos e pró-aborto clandestino pôde sentir que este rio que tudo arrasta não vai parar.
Foto de Vivian Ribeiro, do Coletivo Passarinho
A maré verde
Tanto nesse 8A quanto na vigília daquele 13 de junho, quando o projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados, os arredores à esquerda do Congresso se transformaram em um espaço e contexto de sororidade, onde milhares de mulheres desconhecidas encontravam algo em comum, profundamente familiar. O microcosmos da avenida Callao, entre a avenida Corrientes e a rua Sarmiento, estava repleto de tendas de diversas organizações, como o Nenhuma a Menos, a Assembleia Popular Feminista (APF) e a Não Tão Diferentes, organização de mulheres em situação de rua.
TEXTO-MEIO
O movimento de mulheres conseguiu enraizar socialmente o tema da legalização do aborto. Levou o assunto para a rua, escolas, hospitais e, sobretudo, para dentro das famílias. Furou o bloqueio da mídia hegemônica e conseguiu pautar o debate. Desmantelou a separação entre o público e o privado, que sempre se prestou para reforçar o machismo, politizando a sala de jantar. Fez irromper uma identidade feminista forte, descentralizada, que alimentou as ações cotidianas com alegria e energia desmedidas. Daí a pujança do 8A e a convicção desse verso tão cantado em coro feminino: “Abaixo o patriarcado, que vai cair, que vai cair”.
A luta pela legalização do aborto na Argentina é a ponta de um iceberg que tem por debaixo décadas de organização feminista. A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal foi gestada nos Encontros Nacionais de Mulheres de Rosário e Mendoza e lançada oficialmente em 28 de maio de 2005, no Dia Internacional de Ação pela Saúde das Mulheres. De lá pra cá, o movimento foi incansável no debate científico-universitário e nas discussões sobre políticas públicas para mulheres. Construiu um mote claro: “Educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar e aborto legal para não morrer”.
Assim, a questão do aborto legal entrou na agenda dos direitos humanos e da democracia, e foi incorporada por diversas outras organizações denominadas “socorristas”, que cumprem um importante papel de dar assistência a mulheres que desejam realizar um aborto, enquanto a lei não sai.
“O compartilhamento de experiências é necessário entre as mulheres que vivenciam uma gravidez indesejada. As equipes de saúde que prestam informações relevantes a quem opta por realizar um aborto são criminalizadas”, afirma Yamila, integrante da Assembleia Popular Feminista, destacando o papel do Protocolo ILE (Protocolo para a Atenção Integral das Pessoas com Direito a Interrupção Legal da Gravidez), que foi base para determinar o reconhecimento do aborto por lei no Brasil: casos de estupro, risco de vida da mãe e anencefalia do feto.
Foto de Nuria Alvarez, do Coletivo Passarinho
Um novo cenário
A grande maré verde contou com a ocupação de escolas por estudantes secundaristas para exigir a aprovação do projeto, como ocorreu na Escola Superior de Educação Artística Rogelio Yrurtia, na cidade de Buenos Aires. No colégio Católico Instituto Padre Márquez os alunos foram obrigados a colar cartazes “pró-vida” e a resposta foi uma chuva de lenços verdes. Professores encurralados ou encorajados pela audácia das jovens não tiveram como fugir do debate. O aborto teve que entrar na pauta escolar. Nas manifestações e diariamente nas ruas é comum ver meninas jovens com seu grupo de amigas, todas com os lenços – ou pañuelos – verdes, com argumentos muito claros sobre o que significa a legalização do aborto na sociedade.
A linguagem inclusiva também ganhou espaços antes inimagináveis. Cresceu nos coletivos militantes, em parte do jornalismo, especialmente o contra-hegemônico, e em círculos literários. Antes com o “x”, de “xs estudantxs”, e agora com o “e”, de “es menines”, desnuda como a linguagem corrente sedimentou em sua própria estrutura concepções patriarcais, heteronormativas e binárias. Para além dos binarismos, a nova linguagem busca transpor os gêneros.
Tudo isso não seria possível sem a força comunicativa da campanha. Ao contrário do Brasil, a Argentina não possui um sistema de meios de comunicação tão concentrado e unidimensional. Seja pela sua tradição mais igualitária e democrática ou por avanços da lei de meios de comunicação durante o período kirchnerista, há algum espaço para o dissenso. Exemplos disso são o Página 12, jornal impresso diário com perfil de esquerda; a C5N, uma rede de televisão privada claramente contrária ao governo Macri, e diversas redes de rádios com perfil crítico. Mesmo nos canais televisivos do establishment existe uma tradição de debate aberto entre diversas correntes de pensamento. Tudo isso somado a uma pujante rede de meios de comunicação alternativos e à difusão do movimento pelas redes sociais permitiu que a questão ganhasse corpo, transformando-se em um debate público de massas.
Foto de Vivian Ribeiro, do Coletivo Passarinho
Mulheres contra os direitos das mulheres
Com maioria de votos contrários do bloco Cambiemos, do atual governo, a lei foi rejeitada com 38 votos negativos contra 31 a favor. Como se poderia prever, as mulheres não são maioria na mesa. Contudo, o corpo do Senado argentino atualmente é conformado por 30 mulheres e 40 homens, uma relação bastante equilibrada considerando que a presença de mulheres nas cadeiras altas no âmbito político normalmente representa uma porcentagem ínfima em comparação aos homens. Enquanto na Argentina a presença de mulheres representa 41,7% do Senado, no Brasil são 14,8%. A Argentina é um dos poucos países da América Latina que contempla em maior número mulheres na política, inclusive na presidência do parlamento – neste caso, quem coloca a Argentina nesse posto é a vice-presidente Gabriela Michetti, confessamente contrária à lei do aborto. Durante os meses prévios à sessão que iria presidir, Michetti arriscou manobras para atrasar a votação do projeto e soltou frases polêmicas sobre a questão do aborto mesmo em casos de estupro: “Você pode dar depois em adoção depois e fica tudo bem. Há dramas maiores na vida”.
O 8A foi marcado pela prevalência final das cadeiras representadas em vermelho nos telões que transmitiam a sessão para a multidão do lado de fora, e o voto feminino no Senado se dividiu: de 28 mulheres votantes, 14 optaram pelo “sim” e 14 pelo “não”. As duas senadoras que se abstiveram foram Eugenia Caltafamo, do partido Unidad Justicialista, do estado de San Luis, que não se apresentou por estar de licença-maternidade; e a senadora Lucila Crexell, do Movimiento Popular Neuquino, de Neuquén, que mesmo presente pediu abstenção. Ela buscava a aprovação de um projeto intermediário que contemplasse a despenalização, mas não a legalização da prática.
A maioria das que vetaram o projeto sustentava “argumentos” pouco fundamentados sobre o início da vida e sobre o conceito de maternidade. Entre afirmações como “não li o projeto de lei”, proferida pela senadora Cristina López Valverde, de San Juan, do partido Frente Todos, e que “uma mulher que está em uma gravidez não desejada precisa de alternativas que não ponham em risco a vida de seu filho”, da senadora de Tucumán Silvia Elías de Pérez, da Unión Cívica Radical, a postura em negativa de senadoras mulheres foi decisiva para o resultado no Senado. Com justificativas tão vazias quanto contraditórias, seus discursos só parecem levemente menos absurdos do que os de senadores homens que acreditam poder opinar sobre a gravidez e até sobre o que representa um estupro para uma mulher. Em um momento inacreditável da sessão, o senador de Salta, Rodolfo Urtubey, do partido Justicialista, deixou uma multidão chocada com sua exposição: “O estupro nem sempre representa uma violência contra a mulher. Por exemplo, nos casos de abuso intrafamiliar. Não é o estupro clássico”. Já se espalham petições denunciando o senador por apologia ao estupro.
Foto: Nuria Alvarez, do Coletivo Passarinho
Macrismo polivalente
Nem tudo são flores neste processo de ascendência do movimento feminista e de discussão sobre o aborto legal. A situação se complexifica quando se verifica que o próprio presidente Maurício Macri foi quem habilitou o debate no Congresso Nacional em seu discurso de abertura das sessões legislativas deste ano. Por ironia do destino, um projeto cujo debate legislativo foi barrado durante os mais de 10 anos de kirchnerismo foi disparado por um governo neoliberal do tipo Robin Hood às avessas, que promove um ajuste brutal sobre o povo argentino e inicia mais um ciclo de dependência descarada, com a predominância dos interesses do setor financeiro e agro-exportador.
Independentemente dos objetivos íntimos do presidente (promover uma cortina de fumaça para a crise brutal pela qual passa Argentina; buscar aproximação com um setor das classes médias liberais e progressistas ou contribuir para um feito histórico equiparável ao que significou a aprovação do casamento igualitário durante o governo de Cristina), o fato concreto é que a discussão legislativa do projeto deu vazão a um processo que já deixou marcas irreversíveis na sociedade argentina. Essas marcas ultrapassam ainda os limites do país hermano, em uma repercussão expansiva de uma campanha pela legalização do aborto por toda a América Latina, que se faz notar especialmente pelo fato de que a Argentina sequer é o primeiro país a levantar o assunto: o Uruguai mesmo, ali ao lado, conquistou a aprovação da lei em 2012.
Macri, com seu pragmatismo neoliberal, fez questão de deixar claro que individualmente era contra a legalização do aborto. Agora, juntamente com alguns de seus correligionários do Cambiemos, busca eximir-se de responsabilidade, afastando-se dos resultados da votação. Tenta ocultar que dos 25 senadores que compõem o bloco Cambiemos, 17 votaram contra o projeto. Entretanto, a forma cínica e burlesca como Gabriela Michetti conduziu os trabalhos legislativos, insultando senadores pró-legalização e comemorando a rejeição do projeto, dá conta de como sob o macrismo, o liberalismo e o medievalismo da Opus Dei convivem em harmonia.
Foto: Nuria Alvarez
Reação e contrarreação
O deputado da esquerda trotskista Nicolas Del Caño, quando da sessão que aprovou a legalização na Câmara dos Deputados disse que “em um Senado dominado diretamente por governadores feudais do Partido Justicialista, do Cambiemos e de partidos provinciais, não seria fácil a sanção da lei”. E realmente, após a aprovação parcial do projeto na Câmara, a reação foi imediata. Luciana Rosende e Werner Pertot, em minucioso artigo sobre o tema, contam como se deu essa reviravolta. Segundo as autoras, “a partir de 13 de junho os setores antidireitos redobraram a aposta. A Igreja assumiu uma posição beligerante, as ONGs religiosas ativaram seus contatos nos meios de comunicação, aumentaram sua pressão sobre o governo e sobre o bloco de oposição. E começaram a ser vistos mais lenços azuis com o lema ‘Salvemos as duas vidas’”. A concertação entre o conservadorismo das elites provinciais, as ações performáticas do grupos “pró-vida” e a intelligentsia dos quadros médicos e de juristas da Universidade Católica e Universidade Austral, esta última da Opus Dei, foram imprescindíveis para garantir o “não” no Senado.
Entretanto, a derrota da legalização do aborto abriu o caminho para outro debate. Colocou na ordem do dia a discussão sobre a laicidade do estado – diferente do Brasil, a Argentina sequer se declara um Estado laico. Junto aos lenços verdes surgiram os lenços laranjas da Campanha Nacional pelo Estado Laico, que diz: “Igreja e Estado Assuntos Separados”. Veio à tona a questão do financiamento estatal da Igreja Católica e do pagamento dos salários dos bispos por parte do Estado, ancorados em leis editadas durante a ditadura militar argentina, por Rafael Videla. Nora Cortiñas, uma das mães da Praça de Maio, disse sem meias palavras que “durante a ditadura a Igreja não se importava com as duas vidas, davam choques elétricos na vagina de mulheres grávidas e a Igreja abençoava os voos da morte”.
Na linha discursiva dos que votaram pelo “não”, principalmente entre os senadores homens, há uma perda do que chamam de “paz social”. Ter mulheres nas ruas pedindo por seus direitos balança as estruturas, provocando receio. Sempre foi assim – um dos grandes “argumentos” contra o sufrágio feminino era que seria muito trabalhoso “ensinar às mulheres a importância do voto”, um eufemismo risível que deixa exposto em carne viva o medo da perda de controle. É que na ação coletiva as mulheres retiram o patriarcado da sua posição naturalizada e de perigosa invisibilidade. De repente, o poder masculino aparece como violência e força bruta. E certamente não é agradável tomar consciência da sua própria condição de opressor.
Octavio Salazar, professor de Direito Constitucional da Universidade de Córdoba e autor do livro El hombre que (no) deberíamos ser, fala que “nós, homens, temos medo do feminismo porque nos revela coisas de nós mesmos que não gostamos de conhecer”. Talvez o grande medo que inspira a reação machista é que as mulheres empoderadas venham a fazer com os homens o que eles sempre fizeram sob a benção do patriarcado.
Foto: Vivian Ribeiro, do Coletivo Passarinho
Não se pode parar o vento
A onda verde se espalhou pela América Latina. A pauta está instalada com uma força nunca antes vista e a mensagem é clara: a campanha continua. Os lenços verdes chegaram a diversos países e vêm se espalhando pelo Brasil, onde o tema já está instalado no Supremo Tribunal Federal, apesar da imprevisibilidade do resultado do julgamento. As últimas audiências dos dias 3 e 6 de agosto, presididas pela ministra Rosa Weber, já são vistas como um grande passo.
Dois dias depois da rejeição da lei, a campanha oficial publicou uma mensagem exaltando a conquista inédita e histórica de colocar em pauta a problemática das mulheres e de se fazer ouvir as vozes feministas. Enfatizou a importância de não votar nos políticos que se abstiveram ou foram contrários ao direito das mulheres a decidir. A campanha convocou aos chamados “pañuelazos” – manifestações em que todas levantam seus lenços verdes em um símbolo coletivo de demanda por uma lei do aborto seguro e gratuito –, na América Latina e no mundo; e também a que todas estejam presentes no Encontro Nacional de Mulheres, a acontecer este ano na província de Chubut, no sul do país.
Ao reforçar a necessidade de um Estado laico, o comunicado joga luz sobre um assunto profundamente necessário, reforçando a importância dessa campanha, representada pelos lenços laranjas. Talvez mais ainda no Brasil, onde religião e política andam cada vez mais juntas. O grito vem das ruas, e como bem se anda dizendo entre os grupos feministas nesses últimos dias: nunca nada nos foi dado de mão beijada.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Argentina: as garotas que desafiam o patriarcado

no Outras Palavras


São multidão — muitas, com menos de vinte anos. Tomam as ruas. Exigem, batucam e dançam. Querem o direito ao aborto e o fim de um mundo governado por homens ricos e tristes
Reportagem do Coletivo Lavaca | Imagens: M.A.F.I.A |Tradução: Inês Castilho
Olhar o que se passa através dos olhos da geração que está abarrotando as ruas argentinas hoje é ao mesmo tempo uma tarefa simples e complexa. As jovens falam até pelas faces pintadas com purpurina, mas o que dizem é tão interessante que faz falta algo mais que aguçe a escuta para compreender o significado de cada palavra. Chiara, Laura e Angelica chegaram com uma dezena de companheiras do ensino secundário. Uma pintou a outra: os olhos, os lábios, as unhas ficaram verdes. Cada uma tem um lenço amarrado no pescoço, nos cabelos ou no braço. É o uniforme desta geração, advertiu Ofelia Fernández no recinto do Congresso.
Tomaram o trem, caminharam desde o bairro de Constitución e ao chegar à 9 de Julho se apropriaram, como todas, da avenida.
Vão cantando, vão de mãos dadas e vão contentes.
A chuva não as molha: as rega. Florescem a cada passo.
O frio não as congela. As faz arder.
Gritam cada vez mais forte e em cada batucada – que há por todos os lados – sacodem as cadeiras para dançar ao ritmo de um dia que elas estão tornando histórico, porque lhe impregnam com seu ritmo. Qual é ele? “Tem que se mexer”, respondem. “São dias importantes e você não pode ficar sentada. Está em jogo o nosso futuro e não podemos deixá-lo nas mãos de ninguém.” Quem responde é Chiara, séria.
De onde vêm? “Vivemos num subúrbio de Lomas, que está pior do que nunca porque as pessoas estão amargas, mal.” O que entristece o bairro? “As pessoas não têm nenhuma esperança.” Vocês têm? “Não sei se temos esperança, mas ao menos temos claro que as coisas precisam mudar e não vamos esperar que sejam mudadas pelos mesmos que fizeram todo esse mal.” A que responde é Laura. A quem se refere? Aos políticos, aos mais velhos, a sua família? “A todos. Minha família me apoia, mas eu digo para minha mãe que ela tem de fazer alguma coisa mais por si, que venha às manifestações, que são pelo bem de todas. Ela foi afastada do trabalho, está fazendo de tudo um pouco, e isso a cansa. Digo que se vier às marchas vai renovar as baterias, mas a entendo: não tem um grupo que a apoie e isso torna tudo mais difícil.
Nós estamos juntas o tempo inteiro, falando de tudo, apoiando-nos em tudo, e isso deixa a vida mais fácil. Nos dá força. Nos dá energia. Se uma cai, as outras a levantam.” O que faz com que caiam? “Eu fico pra baixo quando tornam tão difícil coisas que estão tão claras. Veja o que acontece hoje. Tem de ser muito careta para não se dar conta de que, se tanta gente vem aqui, com este clima, é porque o aborto legal não é uma moda, mas uma necessidade. Por que, então, não votam a lei? O que imaginam que vai acontecer se não a aprovarem? Querem que festejemos que se caguem de rir de nós? Às vezes penso que o fazem para provocar um desastre. Escuto os que falam das “duas vidas” e não sei se rio ou se choro. São cínicos: acreditam que não vamos nos dar conta de que a única coisa que lhes importa é que calemos a boca. E não se dão conta de que isso é impossível: nós não vamos mais nos calar.” Quem fala é Angélica.
As três têm 16 anos.
Quantas como elas há, hoje?
Dizer milhares é pouco.
Algumas sustentam cartolinas com frases que impactam.
“Existo porque resisto”
“A pornografia é a escola da violação”.
“Mulher, não gosto quando se cala.”
“Basta é basta.”
“Nos queremos vivas, livres e sem medo.”
Outras se abraçam para ocupar a amplidão da avenida Maio ao ritmo de uma coreografia de cancan.
Muitas procuram um lugar para entrar na coluna que ocupa mais de 15 quadras e, enquanto vêm passar bandeiras, organizações e palavras de ordem, escolhem seu lugar. Não por acaso, apesar de não estar à frente, a coluna da Campanha Nacional pelo Aborto legal, seguro e gratuito é a mais bem nutrida: mais de duas quadras, maioria de jovens, contidas por um tecido verde infinito que funciona como abrigo, mas também como convite: verde é sua cor.
Cantam que o patriarcado vai cair, que tirem seus comentários de nossos ovários, que não são nem suas nem asus [ni tuyas ni yuta] e que Não é Não. Essas demandas são as que unem as ativistas “soltas” e as manifestações artísticas que, ao longo da Avenida de Maio, denunciam a violência com a convicção de que elas próprias vão freá-la.
As ações comemorativas e agitadoras do Ni Una Menos começaram sábado em vários pontos do país. E mulheres de todas as coordenadas levantaram firmes seus lenços verdes. A mensagem segue sendo Basta, mas neste caso o pedido se dirige a um Congresso que deve representá-las e todavia não se pronuncia a favor. Essa catarata de concentrações que uniu províncias terminou hoje em frente ao Palácio Legislativo com uma maré que lhes lançou um só grito, que teve uma só cor: verde furioso.
Pedimos, assim, algo muito concreto: que o aborto seja legalizado.
As meninas cantam agora o que deve ser cantado: “Agora que estamos juntas/ agora que sim, nos veem.”
Vê-las é compreender.
Não são especiais, não são únicas, não são diferentes.
São.
E são muitas.
E estão dançando.
Vai cair.

terça-feira, 12 de junho de 2018

Eleições: a curiosa proposta dos mandatos coletivos

no Outras Palavras

Áurea Carolina (esq.) e Cida Falabella. Vereadoras em Belo Horizonte, fizeram de seus mandados centros de articulação política não convencional. Experiência será replicada nas disputas pelo Legislativo, em todo o país

É possível reagir a uma democracia esvaziada ocupando suas estruturas? Exame de duas experiências — com avanços, contradições e perspectivas
Por Caio de Freitas Paes
Em meio à polarização instaurada desde a eleição de Dilma Rousseff em 2014, partidos tentam superar a descrença popular nos políticos. Números de pesquisa realizada em 18 países da América Latinamostram que os brasileiros são quem menos confiam na democracia; além disso, a pesquisa mostra ínfimos 8% no índice de aprovação do governo e 11% de aprovação do Congresso. Tal desempenho coloca o Brasil no penúltimo lugar no ranking geral da região. Porém, há novas propostas que querem resgatar a confiança e revolucionar a política partidária nas eleições de 2018: os mandatos coletivos.
As iniciativas formaram-se e foram eleitas em municípios brasileiros no pleito municipal de 2016. Munidas de dispositivos sociais, técnicas arrojadas de comunicação e de transparência dos mandatos, elas têm um objetivo ousado: o de mudar a política de dentro para fora.
“A ideia de mandato coletivo é interessante porque agrega duas características típicas da juventude atual: a aversão a lideranças e a rede distribuída”, afirma o analista político e professor de Direito da ULBRA (RS), Moysés Pinto Neto.
Segundo Moysés, o formato coletivo favorece a integração dos mandatos com setores da população — organizados ou não –, além de dividir a responsabilidade da gestão pública e democratizar a formulação de propostas. “A possibilidade de arriscar experimentos envolve aproveitar a indignação cidadã e, no mesmo lance, ocupar esse espaço, evitando um vazio que leve à vitória da ultra direita”, explica.
Hackeamento partidário no coração do Cerrado
Atualmente, há duas experiências coletivas em câmaras municipais: uma na pequena Alto Paraíso de Goiás (GO), na área da Chapada dos Veadeiros, e outra na capital mineira, Belo Horizonte. Pelo porte das cidades, há diferenças na abordagem e no modo de trabalho que deixam lições para quem acredita em novas alternativas.
TEXTO-MEIO
“Tivemos uma gestão com muitas proposições no primeiro ano. Pra quem é familiar com cidades pequenas, sabe-se que a gestão pública pode ser muito morosa. No total, foram 14 projetos de lei colocados na tramitação da Câmara – e conseguimos a aprovação da maioria”, explica Ivan “Anjo” Diniz, um dos membros do Mandato Coletivo (MC) de Alto Paraíso.
Para assegurar transparência à iniciativa, o MC teve seu regimento assinado e registrado em cartório à época da eleição. Todo o recurso recebido pelo mandato é aplicado de acordo com decisão coletiva dos membros; em 2017, parte da verba já foi investida em materiais para estruturas públicas de saúde e realização de eventos culturais abertos à comunidade, por exemplo.
O mandato é formado por Ivan, turismólogo e jornalista, junto a outros 4 membros de diversas áreas, como direito, engenharia, tecnologia e biodiversidade. “Tem gente mais à esquerda e mais à direita, mas há um compromisso vinculado com a transparência e com o bem-estar da comunidade. Isso consegue dar uma força legal pra gente, com diretrizes éticas que a gente mantém até agora”, detalha Ivan.
João Yuji, advogado especialista em direito legislativo municipal, é o único membro ligado a um partido — o antigo PTN, atual Podemos. A escolha por uma sigla de pouca expressividade em âmbito nacional foi motivada pela liberdade de atuação. “Escolhemos o partido que nos viabilizou por um motivo claro: a possibilidade de ter autonomia na executiva municipal, abrindo brechas para liberdade de decisão quanto aos rumos que seguiríamos”, diz Ivan.
Segundo ele, houve estudo por parte do coletivo para identificar partidos que oferecessem contrapartidas positivas, sem necessariamente haver um compromisso ideológico ou de diretrizes para o mandato. “A ideia é claramente ocupar a estrutura. Isso não nos isenta de ter com o partido quanto ao nosso trabalho, mas nunca nos impediu de tomarmos as decisões que desejamos e acreditamos. Desde o início, nosso objetivo é lidar com um status suprapartidário – e o João se filiou apenas porque a legislação exige”, explica.
Alinhamento a partidos progressistas dá o tom em grandes centros
Se a bandeira partidária pode ser uma forma de “hackear” o sistema político, o caminho nos grandes centros parece ser outro. A Gabinetona – mandato coletivo formado pelas candidaturas eleitas de Áurea Carolina e Cida Falabella, ambas do PSOL – traz consigo as causas que um típico partido progressista encampa: questões de gênero, raça e classe com viés cultural e popular.
“No momento que entramos no partido, decidimos participar e lutar pelo e dentro do partido. Somos independentes e mantemos essa posição inclusive como modo de honrar nossa origem e nossos objetivos”, relata Áurea Carolina.
A escolha não vem sem ônus, segundo a vereadora, pois no primeiro ano de mandato já se depararam com disputas internas de correntes, jogos de força e interesses com os quais tiveram de dialogar. “É um lugar de mediações, afinal, e buscamos renovar essa estrutura como podemos, dentro das nossas possibilidades. Hoje, com a exigência programática que temos, não vemos outros partidos que poderiam nos abrigar”, detalha.
A Gabinetona possui uma estrutura complexa para manter-se coletiva: conta com iniciativas populares para integrar a sociedade no planejamento das ações do mandato, e há divisão interna da equipe em núcleos de trabalho – como de comunicação, jurídico, articulação política, de gestão, de acolhimento e atendimento à população. Esses núcleos interagem entre si e possuem trabalhos partilhados”
O mandato tem planos de conquistar novos postos. As “Muitas” – movimento civil de onde Áurea e Cida vieram e pelo qual fizeram campanha em 2016 – lançaram 12 candidaturas para as eleições de 2018: seis para a Assembleia de Minas Gerais, e seis para a Câmara dos Deputados. As candidatas também são filiadas ao PSOL e vêm de Belo Horizonte, da Região Metropolitana e também do interior do estado. Uma delas é a própria Áurea, que anunciou pré-candidatura a deputada federal. “Como em 2016, a campanha será realizada por uma rede de apoiadoras, de forma colaborativa e praticamente voluntária”, detalha.
O terreno à frente segue arenoso para experimentos coletivos
Mesmo que em territórios muito diferentes, as duas iniciativas partilham algumas práticas e valores. A necessidade de prestação de contas e transparência quanto às atividades dos mandatos é um dos pontos em comum. Para Ivan Diniz, os informes mensais do MC para o público estreitam laços e os diferenciam do restante dos vereadores; já para Áurea Carolina, manter uma comunicação dinâmica e transparente com a população ajuda na formulação de projetos de lei e na defesa dos interesses dos eleitores.
Mesmo com trabalhos arrojados, os partidos em geral ainda têm negligenciado o formato coletivo de candidatura. “Em geral, [os partidos] têm respondido de forma muito negativa, geralmente subordinando decisões à lógica burocrática tradicional e abrindo pouco espaço para que novos projetos possam conviver ao lado do programa partidário”, explica Moysés. O analista político também lembra que há o risco de o establishment judiciário dificultar a inserção de coletivos na política. O cenário a ser alcançado envolveria uma abertura sem “adestrar ou colonizar” os mandatos coletivos à atual lógica partidária.
PSOL e Rede, alinhados à esquerda e centro, abriram suas portas para candidaturas avulsas e cidadãs, englobando a possibilidade de mandatos coletivos. Já pela direita, quem capitaneia uma abertura é o Podemos. Está em trâmite no Congresso uma proposta de emenda constitucional para garantir a regularização desse tipo de mandato para cargos parlamentares. Submetida pela deputada federal Renata Abreu (SP), presidente nacional do partido, a proposta cita especificamente a iniciativa goiana como modelo de inovação.
Mesmo com obstáculos e incertezas, ambos mandatos garantem que têm participado de eventos e consultas por grupos interessados em reproduzir esse tipo de iniciativa em outros pontos do país. Sinal que o Brasil verá novos modos de fazer política ainda em breve.

Caio de Freitas Paes

Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e jornalista formado pela Unesp/Bauru. Tem experiência em estudos sobre narrativas, direitos humanos, histórias em quadrinhos e narrativas de guerra. Foi coordenador nacional de redes sociais da Mostra Cinema e Direitos Humanos No Hemisfério Sul (2013–2014).