segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Maria Fernanda Arruda: A micareta dos analfabetos disfuncionais

no VIOMUNDO
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Um diferença considerável entre 16/08 e 20/08
Politicamente, analfabetos disfuncionais
Um brasileiro, em fins do século XIX, competente para ler e escrever, seria um nobre ou até um coronel da Guarda Nacional. Na virada do século, éramos 35% de alfabetizados e, em 1950, apenas 49%.
O Brasil somente não foi mais paupérrimo na manipulação das letras e dos números quando a população deixou os campos e chegou às cidades: em 1960, os brasileiros alfabetizados já somavam 60%.
Agora, nos nossos tempos, teremos apenas 8% de analfabetos nacionais? Motivo de orgulho? Não. Esse número, apontado e avalizado pelo IBGE, é uma lastimável balela.
A iniciativa de criar um Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional no Brasil, medindo diretamente as habilidades da população por meio de testes, foi tomada por duas organizações não-governamentais: a Ação Educativa e o Instituto Paulo Montenegro. As pesquisas que passaram a ser feitas, utilizado o conceito de alfabetismo funcional mostram qual é o quadro real: atinge cerca de 68% da população; somados aos 8% da totalmente analfabeta, resultando em 76% da população que não possui o domínio pleno da leitura, da escrita e das operações matemáticas, ou seja, apenas um em cada quatro brasileiros (25% da população) é plenamente alfabetizado.
Agora sim, fica viável entender as manifestações lastimáveis promovidas nos protestos, aqueles que querem a deposição do governo democrático, a volta da ditadura militar e mais:a morte dos que consideram como seus grandes inimigos. O survey (sondagem de opinião, sem rigorismos estatísticos) realizado por um professor da USP permite o desenho do perfil desse povo, o que é razoavelmente evidente.
Trata-se de uma maioria absoluta de indivíduos brancos, com a exclusão de negros e de pobres, gente de faixa etária mais alta, vários tendo chegado à senilidade, muitas mulheres, voyeurs sedentos de corpos nus, vendedores ambulantes em trabalho, diversos interessados na carteira e no celular alheios.
Os depoimentos colhidos dessa gente são inacreditáveis, decretando a obsolescência definitiva do Festival da Besteira que Assola o País (Febeapa), obra muito interessante e que retrata as cabeças de generais, coroneis, almirantes e brigadeiros, mentores da ditadura (golpe de 64), mas que se reveste de candura infantil diante da produção que se faz e mostra, na avenida Paulista dos dias atuais.
As faixas transportadas pelos “mulas” contratados trazem dizeres sem sentido, escritos em língua que identifica o analfabetismo funcional predominante. Mas não estamos tratando de um segmento social e economicamente privilegiado? Sim, estamos. E as pesquisas também mostram que 38% dos nossos universitários gozam dessa condição: são analfabetos funcionais.
O projeto de massificação do ensino foi parido pela ditadura, sob orientação do Coronel Jarbas Passarinho, com o malfadado MOBRAL, enquanto o ensino de História e outras ciências sociais era substituído por aulas de “educação moral e cívica”. Tempos de “Brasil – ame-o ou deixe-o”, recitado nas aulas obrigatórias de educação física.
A ditadura formou milhares e milhares de jovens alienados, coerentes, e que hoje são fascistas. Uma geração de intelectuais que estudava o Brasil foi levada ao ostracismo: Caio Prado Junior, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado, Antônio Cândido, Florestan Fernandes.
O cinema nacional ficou reduzido à produção de pornochanchadas, o teatro foi transformado em forma de lazer que antecede a pizza do sábado à noite, em que pesem os esforços magníficos de Gianfracesco Guarnieri, Zé Celso, Vianinha, Ruth Escobar e outros.
A música foi proposta na forma alienadora da “jovem guarda”, perdida nas curvas das estradas de Santos, embora, e exatamente aí, tenha havido a contestação mais séria à violência: Chico Buarque foi o maior exemplo de como a sensibilidade artística e a inteligência cultivada podem ridicularizar a violência dos torturadores assassinos.
O segundo momento de aviltamento do ensino no Brasil veio com os oito anos FHC.
Da mesma forma que privatizaram as empresas do Estado, privatizou-se o ensino. A universidade federal foi empobrecida em quantidade e qualidade; o MEC orientou para que as escolas públicas falissem, sendo substituídas pelas empresas do comércio do ensino. Mais do que nunca, elitizaram-se o ensino e a cultura: os filhos das elites que estudassem nos ótimos colégios particulares, habilitando-se ao doutoramento das universidades públicas ou nas universidades norte-americanas.
Há uma reversão de tendência a partir do primeiro governo Lula, quando o MEC começou a atuar para o fortalecimento da Universidade Federal, incentivando a pesquisa, remunerando de forma digna os professores, criando universidades. O ensino obrigatório de Ciências Sociais, Filosofia e Sociologia volta a ser obrigatório no Ensino Médio. Contemplam-se a Música e as Artes.
E cometem equívocos e omissões muito sérios. Os chamados “sistemas de ensino”, produzidos por empresas comerciais que negociam suas ações em Bolsa de Valores, bestificam jovens brasileiros com material didático de péssima qualidade e onde o professor fica reduzido à condição humilhante de “repetidor de aula”. A tentativa política de deputados hoje, na era Eduardo Cunha, no sentido de esvaziar o conteúdo do ensino nas escolas, já é uma realidade rotineira.
Em meados da década passada, o Sistema de Ensino da Abril Cultural utilizava a revista Veja para caluniar escolas que se preocupavam em transmitir a realidade brasileira aos seus alunos, identificando e acusando professores “comunistas”. A mesma Abril inaugurou o mecanismo de corrupção, junto a prefeituras e prefeitos, facilitando a venda do seu material para consumo nas escolas municipais. Corruptores e corrompidos.
Eis aqui um desafio aos que não entenderam ainda a necessidade de uma Constituição de olhos voltados para o século XXI. O pacto federativo precisa ser revisto radicalmente!
Sobre Educação, a maioria dos Estados e a quase totalidade das prefeituras carecem de condições mínimas para cumprimento das atribuições que lhes são delegadas. A Carta de 1988 adotou uma descentralização irreal e que vai provocando disfunções seriíssimas. Entre as diretrizes elaboradas pelo MEC e a ação política de governadores e prefeitos há um abismo intransponível.
Tanto a incompetência interesseira de políticos regionais como o utilitarismo dos comerciantes do ensino, ambos tornaram absolutamente impossível a modernização do ensino básico. Como resultado dessa paralisia no tempo, as paredes das salas de aula formatam hoje um espaço que sufoca os jovens, expostos às dimensões quase infinitas da Internet que se abrem através do computador.
Os adolescentes, aprisionados na escola convencional, ainda encontram liberdade nos espaços dos shopping centers. O que está sendo afirmado aqui fica evidente quando se lembra que as últimas experiências inovadoras significativas no Brasil foram a Universidade de Brasília, com Darcy Ribeiro, e os CIEPS, com Brizola e o mesmo Darcy Ribeiro.
O Direito à Educação é assegurado pela Constituição Federal como um direito fundamental, tendo sido contemplado pela Constituição no artigo 6 º, localizado no capitulo intitulado “Direitos Sociais”. O Ensino Básico (Fundamental + Médio) impõe-se como direito assegurado a todo cidadão brasileiro.
Tanto quanto a reforma agrária, ou a limitação do direito de propriedade pelo interesse social … Letras, letras mortas. É bem verdade que os governos de Lula e Dilma se fixaram no ideal do “ensino para todos”. A partir disso, desenvolveu-se e desenvolve-se um esforço orientado por critérios de quantidade, mas não de qualidade.
No afã de formar gente de nível universitário, os governos do PT quase que atingiram o exagero de uma antiga piada: “brasileiro, ao nascer, ganha o título de doutor, aos 18 anos devendo fazer uma opção”. A universalização universitária não será uma utopia desastrada? De novo a mesma preocupação: quantidade; e o que fazem com a qualidade: É baixa, pouca e insuficiente?
Um dos equívocos mais grosseiros foi cometido com a criação do FIES. O Ministro da Educação acaba de corrigir as distorções gritantes de um programa demagógico. Até recentemente, alguns vários bilhões de reais foram destinados ao financiamento de estudantes, em universidades reconhecidas pelo próprio MEC como sendo de qualidade inferior, concentrados nos Estados mais ricos, com financiamento concedido a filhos de famílias de classe-média, para matrícula em cursos de Direito, Administração e similares.
O Ministro Renato Janine Ribeiro limitou o uso do benefício a famílias pobres, nas regiões mais pobres do país, para cursos de Engenharia, Medicina e similares, ministrados em escolas que venham merecendo boa conceituação.
Alvíssaras. As coisas vão tomando forma digna, pois tivemos alguns anos de descalabro descompromissado.
Reconhecidamente, o sistema de ensino brasileiro não é menos do que péssimo. Em diversos momentos forma bons profissionais. Mas, praticamente, nunca forma bons cidadãos. Os brasileiros não sabem o que é o Brasil, não conhecem a sua História, recebem informações rudimentares sobre a sua geografia e são ignorantes completos quanto à sua economia, problemas atuais e potencial. Não estão sendo ensinados a pensar, não sabem ler, não leem, carregam uma lastimável preguiça mental.
A pobreza é tal que, mesmo à esquerda, frequentemente se vê o dogmatismo tolo, simplificador de tudo: ‘os que não pensam exatamente como eu penso são fascistas’. Perderam alguns a capacidade de pensar e, de pensar indagativamente. Não há espírito crítico, o que o ensino puramente técnico e de má qualidade não contempla.
O que tudo isso tem a ver com o 16 de agosto? Serve para que se entenda toda aquela gente como o lixo social que as nossas escolas estão deformando. Para pedir a ditadura militar e a morte de políticos desagradáveis, as pessoas precisam passar por um apurado processo de animalização, aquele que o nosso sistema de ensino tem oferecido. O marketing transformando tudo em produto de consumo não durável, consumidores consumíveis, produz o restolho obsoleto do que teria sido um ser, e humano; hoje na avenida são zumbis alucinados.
Enfim, o esforço dos governos Lula e Dilma tem revertido tendências perversas, mas incorpora equívocos. Quem, não apenas os dois, mas pensados todos os que habitam hoje o nosso mundo político, possui competência para distinguir o que é humano daquilo que é simples charlatanismo?
*Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil, sempre às sextas-feiras.
Leia também:

A Educação não é mercadoria que compramos na prateleira.

por José Gilbert Arruda Martins

A Educação é instrumento de libertação e construção cidadã.

A LDB é clara, os sistemas escolares e as escolas do país não podem trabalhar com calendário nunca inferior a 200 dias letivos.

Nenhuma greve de trabalhadores e trabalhadoras da educação pública brasileira, organizados em Sindicatos e Confederações, ficou sem repor um único dia de aula parado.

Portanto, é absurda a atitude dos governadores tucanos.

É absurda a reação dos Tribunais de Justiça dos respectivos estados.

É claro, que os desembargadores têm seus filhos e filhas em escolas particulares, com professores e professoras recebendo salários de escravo entre R$ 5,60 e 12,90 a hora/aula, e são proibidos de usar uma das mais eficazes ou talvez, a única arma que existe que é a greve.

Os educadores e educadoras das Escolas Públicas, não lutam apenas por salário, lutam também por qualidade na educação, por mais verbas, por dignidade dos trabalhadores (as) mas também dos estudantes e, claro, às suas comunidades, por que, se a unidade escolar é boa, limpa, bem cuidada, com professores (as) bem remunerados e felizes, toda a comunidade sai ganhando.

Quem opina diferente disso, são aqueles encastelados em seus gabinetes no ar condicionado, desconhecedores da realidade da educação pública brasileira.

Quem desconhece a realidade da própria escola do filha ou da filha, que não participa em nada da vida escolar da família, são os primeiros a apoiar um absurdo desse tamanho e patrocinado pelos governadores tucanos.

Repito, educação não é mercadoria, como muitos acreditam que seja.


'A América Latina começou uma nova história, que eu considero irreversível'

na Carta Maior

A América Latina começou a tomar consciência de que pode deixar de ser colônia. Esta primavera política, a dos governos populares, é a segunda emancipação.

IHU - Unisinos
reproducão
“Minha terra natal é a Argentina, a outra é o Brasil, mas a pátria grande é a América Latina. Sou um latino-americanista”, disse Enrique Dussel (foto), pausadamente, em seu tom híbrido, no qual ainda restam traços do mendocino (Mendoza, Argentina) que alguma já teve.
 
Filósofo argentino radicado, há quarenta anos, no México, Dussel deixou seu país natal duas vezes. A primeira foi após passar pela Universidade de Cuyo. Ficou 10 anos na Europa e seu pensamento crítico do eurocentrismo, afirmou, fez com que se sentisse um estrangeiro em todas as partes: “A maioria dos professores ainda são absolutamente eurocêntricos e em filosofia são helenocêntricos. Acreditam que a filosofia nasceu em Atenas e os próprios Heródoto, Platão e Aristóteles dizem que nossa filosofia surgiu no Egito”.
 
Voltou à Argentina em 1968 e viajou por toda a América Latina. Nos anos 1970, junto com outros intelectuais argentinos, fundou a Filosofia da Libertação. Esse movimento comprometido com a emancipação dos oprimidos e relacionado com a Teologia da Libertação, que começou uma reforma universitária em Mendoza, com programas de estudo de filosofia mundial não eurocêntrica, fez com que ele se tornasse alvo de ameaças e perseguições. “No dia 3 de outubro de 1973, colocaram uma bomba em minha casa e começou a perseguição contra nós. Depois, quando veio a intervenção de Oscar Ivanissevich, em março de 1975, retiraram-me da universidade e fiquei desprotegido”.
 
Este intelectual, que desde aquele momento adotou o México como destino do exílio e lugar de residência, é reconhecido por suas contribuições nos campos da filosofia, teologia e história. “No caso de um filósofo da periferia, do Sul, a biografia é parte do conteúdo. Os europeus e os norte-americanos já tem estabelecido o lugar a partir de onde falam, ao contrário, (em nosso caso) necessita-se explicar muitas coisas para dizer a partir de onde se fala”, afirma.
 
Reitor interino (2013-2014) da Universidade Nacional Autónoma da Cidade do México, atualmente é professor no Departamento de Filosofia na Universidade Autónoma Metropolitana (Cidade do México) e no Colégio de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Letras da UNAM (Cidade Universitária). Veio à Argentina para receber o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM).
 
A entrevista é de Astrid Pikielny, publicada por La Nación, 16-08-2015. A tradução é do Cepat.
 
Eis a entrevista.
 
Que traços definem a cultura latino-americana?
 
Explicar a América Latina é explicar a história universal, porque os que chegaram aqui vinham do extremo do Ocidente: Finisterra, Portugal e Espanha. E os que estavam aqui eram o extremo oriente do Oriente. Os nossos indígenas são todos asiáticos, por raça e por mitos. E o choque foi o mais importante da história universal: o extremo ocidente com o extremo oriente. Isso me levou a repensar muitas coisas e ainda continuo ensinando isto, porque ainda continuamos sendo eurocêntricos, estudando estupidezes como a Idade Antiga, Medieval e Moderna, que foi uma invenção dos românticos. Repetimos estas coisas como se fosse a ciência e é pura ideologia.
 
Após 200 anos das revoluções no continente, você acredita que a América Latina deixou de ser colônia?
 
Começou a tomar consciência de que pode deixar de ser colônia. E esta primavera política, a dos governos populares, é a segunda emancipação. As revoluções de 1800 foram o primeiro movimento: uma quase independência política, militar, mas não mental, histórica e nem cultural. E entramos em um neocolonialismo do qual não saímos. Pela primeira vez na América Latina, de (Hugo) Chávez em diante, começa a ser levado a sério o tema de que seremos iguais aos Estados Unidos e Europa em um ou dois séculos de história. Não será em cinco dias, será um processo. Agora, também estamos caminhando com força porque já temos uma consciência nova, que não se cria por gênios teóricos, mas, ao contrário, é fruto de um processo e de uma história. Que eu possa dizer isto é resultado de que a América Latina está em outro nível de consciência. É a primeira vez que a “esquerda”, com muitas aspas, ou os progressistas começam a tentar fazer algo diferente.
 
É possível falar de primavera política, quando a região ainda exibe índices alarmantes de pobreza, desigualdade, exclusão e corrupção?
 
Os processos podem entrar em crise, burocratização, contradição, mas já começou uma nova história da América Latina, que eu considero irreversível. Há primaveras que depois se transformam em invernos e, em seguida, voltam a surgir primaveras. Eu falo de várias revoluções na América Latina. A cubana de 1959, que infelizmente teve que ser soviética e teoricamente há pouca originalidade. A chilena de Allende, uma alternativa socialista democrática que, se a houvessem deixado funcionar, teria dado muitos resultados, mas Pinochet a liquidou. A sandinista de 1979, uma revolução cultural que rompia os esquemas do marxismo-leninismo. Tudo isso vai lentamente abrindo um diagnóstico mais complexo da realidade. A revolução já não é instantânea, nem é tão clara, mas, ao contrário, é muito mais complexa, contraditória, leva mais tempo no tempo. E depois quase é preciso esperar a revolução de Chávez.
 
Acredita que na Venezuela houve uma revolução e que foi exitosa?
 
Não há êxitos: começa um processo que contará com altos e baixos. Agora, pode ocorrer um processo de corrupção democrática, é quase normal que ocorra e é quase milagroso que não aconteça. A burocratização das instituições é um processo inevitável.
 
O que Chávez contribuiu nesse processo?
 
Por exemplo, a recuperação do capital petróleo é fundamental. Estava completamente vilipendiado nas mãos de uma burocracia estrangeira. O país não se beneficiava com isso.
 
Também não parece se beneficiar muito agora, não é?
 
Eu não faço apologia a nenhum regime. É preciso ver a história de cada lugar. O que era a Venezuela, desde a época colonial? Uma capitania geral. Um lugar para onde iam os piratas; um lugar que, mesmo em comparação com a Colômbia ou o México, era um pouco terra de ninguém. Os venezuelanos não tiveram uma história, nem cultural e nem industrial, porque era um país muito diferente dos outros. É preciso conhecer essa história que, a partir de 1912, está vegetando, dependente do petróleo. Não havia sido propiciada uma produção industrial, não havia tido uma mentalidade em algumas coisas positivamente modernas e, então, não podemos dar murro em ponta de faca. A Venezuela não é o mesmo que o Brasil e a Argentina, mas houve mudanças fundamentais. E deu ao povo uma consciência. Toda essa gente marginalizada começou a ser mais autora. Isso não se faz em uma geração ou duas, leva mais tempo. Já não estamos na revolução instantânea, nem nos milagres, é um processo. Começou a primavera, mas virão invernos, outonos e outras primaveras. No fim do século XXI, teremos avançado.
 
Que a Venezuela tenha a inflação mais alta do mundo, que haja saques, que haja fraturas sociais...
 
O próprio fato de Chávez ter morrido tão jovem e com tanta capacidade de condução é uma lástima, mas é uma realidade. Morreu Chávez, que poderia ter continuado conduzindo um processo que eu chamaria de magistério. Que tenha existido um Chávez já foi algo excepcional: um homem que era um militar, que fez ciências políticas, e que estudou na universidade central.
 
E um homem que, há anos, pegou em armas contra o governo e liderou um golpe.
 
Há golpes e golpes. Contudo, não era um militar qualquer, era um homem culto, que pelo menos captava a política. Que presidente está nesse nível? García Linera. No mundo todo, não há um vice-presidente desse nível teórico.
 
Certa vez, você disse a Chávez que “a liderança perfeita é sua dissolução, é quando o líder já não é necessário porque o povo já sabe governar e participar”. Chávez gostou de sua ideia, mas fez totalmente o contrário. E quando se olha para o mapa da América Latina, em muitos casos, estão distantes disso porque continuam sendo terras de fortíssimas lideranças.
 
Nunca tratamos teoricamente a fundo o tema da liderança, tampouco os socialistas. Quem fez a revolução? Lenin, Mao, Fidel, todos grandes líderes. A liderança é essencial na política, mas é preciso haver muitos e em todos os níveis, gente que acredita no que diz e que esteja empenhada, como San Martín. Fidel Castro disse, certa vez: “Quando um povo acredita em alguém, é gente que se empenha pelo que pensa, mas a questão é que o povo acredite em si mesmo”. No entanto, está difícil que um povo acredite em si mesmo. Todos os meios de comunicação levam o povo a ter uma apreciação mínima de si mesmo e se entregar ao primeiro que lhe faz a propaganda da Coca-Cola.
 
Não está dando muito poder aos meios de comunicação, que, em definitivo, não esboçam políticas de Estado, nem implementam medidas de governo?
 
São os que criam as condições para. Você diz “eu tomo a decisão A” e pode ter sido a correta, mas os meios de comunicação dizem que é ruim, e fazem outra contrária. Se eu quero destruir alguém, posso fazer isso sempre porque sempre haverá uma razão contrária. A opinião pública é o ponto de partida da política.
 
Não está subestimando o cidadão?
 
Isso me dizem, às vezes. Uma vez explicava isto e os zapatistas me disseram: “Você desconfia do povo”. Contudo, como pode ser que alguém ainda vote em um governo que vende todos os recursos comuns de um país, como o governo mexicano? Está vendendo o petróleo e está recebendo propina, então liquida a jornalista que mostra como recebeu propina. E assim temos uma ditadura perfeita, como dizia Vargas Llosa, porque aparece como democracia e é pior que a ditadura militar...
 
Foi publicada uma pesquisa jornalística que sustenta que a filha de Chávez teria 4 bilhões de dólares. Não vejo em você nenhuma crítica aos excessos ou aos defeitos de Chávez. E se os teve, gostaria que me dissesse quais são.
 
A condição humana é falível. Eu pensava que Pinochet era um homem fanático, que se contentava com o exercício do poder. Quando se soube que havia roubado sete milhões de dólares para a família, Pinochet caiu para mim. Que a filha de Chávez tenha feito isso, bom, a filha cai para mim. Agora, não acredito que Chávez tenha feito isso. Não me resulta factível. No entanto, se fosse verdade, diria: “Pobre, caiu como outros seres humanos”. Não justificarei ninguém. Abriu um caminho que continuou com Correa, Evo Morales e muita gente.
 
Qual a opinião de alguém como você, com um compromisso político de esquerda, quando um governo como o kirchnerista intervém no Indec e deixa de medir a pobreza?
 
E por que deixou de fazer isso? Para que não se veja a pobreza?
 
É provável. É uma das leituras.
 
Retirar os indicadores da realidade é um erro porque não permite tomar as decisões. Dir-se-ia que está ruim e, se aumentou a pobreza, é necessário verificar a razão do aumento. Ora, é um fato o que aconteceu na Argentina, em fins do século XX, com as medidas de Menem e os neoliberais, assim pode haver resultados de processos anteriores. De qualquer forma, não se pode justificar e tampouco se pode em bloco apoiar algo. Por exemplo, na Venezuela as grandes universidades do Estado e até grandes professores marxistas são contra o processo de Chávez e não aceitam em nada o que se fez. Eu estive em Maracaibo, em uma reunião de intelectuais. Fomos visitar operários do petróleo e centenas nos receberam. Pediam para que eu, pessoalmente, autografasse um livro sobre política. Que um operário me peça que autografe um livro que está lendo é interessante, porque nesse livro eu digo: “Você é a sede do poder, não o Estado, nem o líder, nem ninguém, todos estão a seu serviço”.
Créditos da foto: reproducão

Cristina Kirchner defende Lula e Dilma e fala em 'conspiração' no continente

na Carta Maior

A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, defendeu a presidente Dilma Rousseff durante pronunciamento em rede nacional de rádio e TV em seu país.

Marcia Carmo - BBC Brasil
Roberto Stuckert Filho
“O que está acontecendo em outros países da região, como o Brasil, é o que ocorreu na Argentina”, disse, referindo-se aos protestos contra seu governo em 2011. “Olhem o que estão fazendo com a Dilma”, afirmou.
 
Ela sugeriu que os “panelaços”, alguns “setores da imprensa” e da “Justiça” fariam parte de uma conspiração contra a colega brasileira.
 
Cristina lembrou manifestações ocorridas na Copa das Confederações, em 2013, e na Copa, no ano passado – quando Dilma foi vaiada em estádios – para afirmar que os atos contra a colega brasileira não eram claros. “Não se sabe bem por que”, disse.
 
 
Ela sugeriu ainda que a morte do então presidenciável Eduardo Campos (PSB-PE), ocorrida num acidente de avião em Santos (SP), em agosto de 2014, possa ter sido fruto dessa mesma conspiração contra a presidente brasileira.
 
“Ele não tinha se manifestado sobre (quem apoiaria) no segundo turno das eleições. E Marina Silva ocupou seu lugar e depois apoiou o outro candidato (Aécio Neves)”, afirmou.
 
Cristina disse ainda ter achado “tudo muito estranho, porque de repente os brasileiros, que gostavam de futebol, passaram a criticar (o futebol)”. "E, depois de Dilma, agora estão contra Lula.”
 
'Do norte'
 
A presidente argentina afirmou que essa "conspiração" pode ter partido “do Norte”. “As panelas têm marca registrada” de uma agência de investigações “do país do norte que tem interesse na América Latina”, disse, sobre os panelaços contra a colega brasileira.
 
Após o pronunciamento, voltou a citar o Brasil em discursos para militantes concentrados no pátio interno da Casa Rosada, sede do governo.
 
Com microfone em punho, e interrompida por aplausos, disse que “grande parte do que construímos devemos a eles, (Néstor) Kirchner, Hugo (Chávez) e Lula”. E reiterou o que já tinha declarado em cadeia nacional: “E por isso agora estão avançando contra Lula. Estejamos todos atentos”.
 
Cristina afirmou que a região registrou avanços nos últimos anos e que opositores querem “frustrar os processos de desenvolvimento social que alguns chamam de populista”.
 
E relatou um diálogo que teve com Dilma sobre a juventude de ambas.
 
"Na conversa, eu disse que tínhamos razão para estar irritadas, indignadas porque não havia eleições, havia ditadura, pessoas desaparecidas, torturadas, o que fizeram com a Dilma. Sempre andávamos com caras irritadas e uma palavra que disse à Dilma, mas não vou dizer aqui".
 
A presidente argentina, que passará a faixa presidencial em 10 de dezembro, disse ainda que “o resultado das urnas deve ser respeitado”, e ouviu seus apoiadores cantarem “Cristina no sé vá” (“Cristina não vai embora”) e “somos os soldados de Cristina”.


Créditos da foto: Roberto Stuckert Filho

domingo, 23 de agosto de 2015

Dá licença, que sou pai

na Rede Brasil Atual
Aos poucos, homens descobrem o prazer de cuidar dos filhos, deixam para trás a figura de provedor do lar e engrossam o caldo cultural para uma sociedade mais igualitária
por Luciana Ackermann
Nova postura
Vinícius: compartilhando visões do mundo com Pedro

Há quem diga que uma das mudanças comportamentais mais interessantes dos últimos anos é o novo papel do homem como pai. E seu desejo crescente de ser mais ativo no cuidado diário e na formação dos filhos. Não faltam tentativas de encontrar um termo que dê conta dessa transformação, ainda um tanto lenta – paternidade participativa, paternidade ativa, novo pai, pai cuidador, pai presente, paizão... Mas trata-se de um fato contemporâneo que tem tudo para afetar profundamente a sociedade, considerando que a maior participação dos pais no cotidiano dos filhos ajuda a romper o ciclo cultural de que cabe à mulher, mesmo a que trabalha fora, dedicar-se à prole e à casa.
Essa nova postura do homem também contribui para a emancipação das mulheres a partir da divisão mais igualitária das funções, como acontece com o casal Perrota, o advogado Julio, de 40 anos, e a economista Bruna, de 37. "Sempre gostei do meu trabalho, me esforcei muito para passar em concurso público, tive oportunidade de crescimento e quando me tornei mãe não quis ter de abrir mão de tudo que conquistei", diz Bruna, que eventualmente viaja a trabalho e, com frequência, participa de reuniões que excedem o expediente.
THIAGO RIPPER/RBAJulio
Julio e as filhas: descobertas
Perrota, que tem um negócio próprio, conta que busca ao máximo dar o suporte necessário para que a mulher continue a trilhar o caminho dela. "Tenho certeza de que nossas filhas terão orgulho da mãe. Penso que para a formação das meninas também será muito positivo ter dentro de casa essa referência de uma mulher bem-sucedida e realizada profissionalmente", defende. O advogado se surpreendeu com a própria habilidade nos cuidados diários com Gabriela, de 6 anos, e Giovana, de 3. "Eu não ligava para crianças. Quando perdemos a primeira gestação de gêmeas, a ideia da paternidade amadureceu muito. Chorei uma semana. Quando a Bruna engravidou de novo, acompanhava as consultas de pré-natal, ultras, participei de tudo", lembra.
Com a possibilidade de ter uma rotina profissional mais flexível, Julio assumiu tarefas como levar as filhas e buscá-las na creche, dar comida, banho, arrumar, acompanhar nas festinhas e consultas. "Foi o Julio que deu banho na Gabi até o sexto mês. Ainda grávida, fizemos um curso no hospital e fiquei com muito medo dessa aula. Depois, com a Gabi nos braços, eu pós-operada, o Julio quis dar o primeiro banho. Ficou todo orgulhoso, fez tudo certo e aí foi indo. Ele também trocava fraldas, colocava as roupinhas, sempre fez o que fosse preciso", conta Bruna.
Em 2013, a família mudou de bairro para que a mãe pudesse ficar mais próxima do trabalho e ganhar tempo com as meninas e o marido. "É puxado, mas sempre fiz tudo com prazer", diz Julio. "Agora, elas estão maiores, nós nos mudamos. Está mais tranquilo. Quando ela chega mais tarde, as meninas já jantaram e tomaram banho."

Grupo de mães

O palhaço Vinicius Daumas, de 41 anos, gestor da ONG Circo Crescer e Viver, é o único pai do grupo de mães do WhatsApp da classe de Pedro, de 9 anos. Diariamente revisa os deveres, leva e busca, acompanha a festinhas infantis. Para Vinicius, sempre será melhor duas pessoas cuidando: "São dois olhares, duas visões de mundo. Esse convívio é gratificante, uma troca interessante. Em cada fase que o Pedro entra, eu a redescubro com ele. O cuidado cotidiano que tenho com ele, certamente, fortalece a nossa ligação".
Caçula da família, crescido em meio às irmãs e "titio" com apenas 6 anos, Vinicius despertou desde cedo para o ato de cuidar. Por quase um ano, chegou a cuidar praticamente sozinho do filho enquanto a mãe, que é atriz, gravava uma novela em outro estado. "Pedro estava com 3 anos, eu preparava tudo. Foi um suporte importante para que Carol (sua mulher à época) pudesse dedicar-se à carreira. Isso também aconteceu em outros momentos com as peças de teatro e gravações de filmes", conta o palhaço-gestor. Depois da separação, há dois anos, Pedro passou a morar com a mãe e a avó materna. Depois de uma viagem por três países da Europa, durante um mês, em companhia do filho, Vinicius se recuperou da dor da separação. "Foi enorme a cumplicidade, o acolhimento e a afetividade. Nunca esqueceremos o que passamos juntos."
Há três anos, o gestor participou da Campanha de Paternidade e Cuidado Você é meu Pai. Na ocasião, foi montada uma exposição fotográfica sobre paternidade, no Rio de Janeiro. A ação foi parte da campanha global MenCare, promovida por uma organização não governamental, Instituto Promundo, que atua em diversos países promovendo a igualdade de gênero e a prevenção da violência, com foco no envolvimento de homens e mulheres na transformação de masculinidades, e incentiva as relações afetivas e de cuidado entre pais e filhos.

Cenário desigual

De acordo com dados do instituto, em todo o mundo mulheres, que representam 40% da população ocupada, e meninas continuam a assumir a maioria das atividades familiares. A participação limitada dos homens em cuidados com as crianças continua a ser uma grande barreira para a igualdade de gênero e a autonomia das mulheres. No Brasil, elas gastam, em média, 20 horas por semana cuidando dos filhos e do lar, enquanto os homens dedicam pouco mais de dez horas. "A direção está certa, mas nesse ritmo lento só daqui a 50 anos se chegará à equidade", afirma o psicólogo Gary Barker, diretor internacional do Promundo.
Durante dois anos, integrantes da organização se debruçaram em pesquisas sobre a participação dos homens na paternidade nos sistemas da Organização das Nações Unidas (ONU), do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e de universidades. "A falta de dados consistentes revela a invisibilidade do tema, que é muito grave, pois o que você não consegue mensurar, não existe, com exceção dos países escandinavos, Canadá, Inglaterra, Estados Unidos e Austrália, onde há pesquisas", diz Barker.
THIAGO RIPPER/RBAfelicidade
“Ser pai mudou o meu jeito de pensar”, diz Marcio, com Maria Luiza no colo
Segundo ele, o ciclo da desvalorização na remuneração da mulher, que ganha 24% menos que os homens, em média, é o principal entrave no mundo inteiro para uma sociedade mais igualitária. "Se alguém precisar se retirar do mercado de trabalho para cuidar dos filhos, fatalmente será quem ganha menos. Para quebrar esse ciclo, é fundamental valorizar o trabalho feminino, aumentar o número de creches subsidiadas e o período de licença-paternidade", afirma o psicólogo. Ele destaca experiências testadas nos países escandinavos nos anos 1980, como a licença-parental com períodos destinados aos pais, às mães e podendo ser divididos entre eles. Porém, como o pagamento baseava-se no salário das mulheres, o que implicaria num corte no orçamento familiar, muitos homens não quiseram usufruir de tal direito.
Na década seguinte, dois ajustes fizeram a diferença, segundo Barker, à impossibilidade de transferir o tempo destinado ao homem, assim como à aplicação da remuneração que cada um recebia. O percentual de homens que usava a licença-paternidade, que era de 10% a 20%, saltou para 90%. Islândia, Noruega e Sué­cia têm sistemas parecidos, um ano de licença-parental – dois meses no mínimo são destinados exclusivamente aos pais, e a partir daí cada casal faz a combinação que preferir. "Para o mundo fica o exemplo de que é possível avançarmos nesse caminho, pois essas economias ricas não caíram aos pedaços porque os pais estão tendo um tempo remunerado para cuidar de seus filhos."
No Brasil, a licença-paternidade é de apenas cinco dias. Há alguns projetos de lei no Congresso que visam a aumentar esse período para 15 e 30 dias, ainda um abismo gigantesco perto dos 120 a 180 dias a que as mulheres têm direito. Para Mariana Azevedo, socióloga e coordenadora-geral do Instituto Papai, avanços vêm sendo incorporados em diversos setores da sociedade, como a inclusão do tema nas negociações de acordos coletivos de trabalho ou o estímulo à inserção dos homens nas consultas de pré-natal das companheiras, parte da Política Nacional de Saúde do Homem do Ministério da Saúde desde 2009. "É preciso sistematizar essa política e capacitar profissionais de saúde para lidar com essa conquista da sociedade", reforça Mariana.
A socióloga destaca a guarda partilhada entre casais separados como meio de desconstruir a ideia de que a mãe é única pessoa responsável ou capaz de cuidar dos filhos. Ela admite que é crescente o debate público em torno do novo papel do pai, da licença-paternidade e da divisão de tarefas nos lares. Mas considera que também mulheres – esposas, mães e sogras – ainda precisam abrir a guarda e encorajar os pais. Muitas ainda insistem com aquela velha opinião de que o homem não combina com cuidados e tarefas domésticas, e acabam atropelando o pai.
Não há um consenso sobre essa prática no lar do gerente de marketing Marcio Vellozo, de 42 anos, e da advogada Andréa Luiza Belém Gouveia, de 43. Andréa se sente sobrecarregada, mas Vellozo diz que ela e a sogra fazem quase tudo em relação à filha Maria Luíza, de 2 anos, e à casa. "Ele gosta de passear com a Malu, o que ajuda, porque só assim consigo fazer alguma coisa para mim", resume a advogada.
Vellozo defende-se: "Já troquei fraldas, dei de mamar, fazia arrotar, sabia fazer o melhor embrulho na Maluzinha. Só não faço mais porque a Malu é louca pela mãe e cola nela", justifica. Quanto aos passeios: "Eu não ando na rua com a Malu, eu desfilo. É a maior felicidade ser pai, a gente entra num outro mundo. Mudou meu jeito de pensar, não consigo nem explicar", diz. "Quero levá-la no primeiro dia na escola, na aula de natação. Ao pediatra eu já vou e continuarei indo. Todo final de semana levo a Malu ao parquinho do Fluminense e quando ela estiver maior vai comigo ao Maracanã", avisa.
Psicólogo com doutorado em desenvolvimento infanto-juvenil, Gary Barker ressalta que a participação efetiva do pai nos cuidados das crianças, assim como nas tarefas domésticas, reduz o nível de estresse ao eliminar a sobrecarga que recai sobre a mulher. "Num lar sem estresse, identificamos maior rendimento escolar e desenvolvimento cognitivo entre crianças. Os homens se sentem mais felizes quando conseguem cuidar dos filhos, percebem relações mais próximas e tendem a cuidar mais da própria saúde."
THIAGO RIPPER/RBAestar junto
“Sempre gostei de crianças”, diz Edson, pai de Maria Clara (foto) e de Pedro. “Quando me tornei pai, quis aproveitar cada instante”
O produtor de cinema Edson da Silva Costa, de 50 anos, lembra que ainda na infância sua mãe costumava dizer que ele nasceu para ser pai. "Sempre gostei de crianças. Quando me tornei pai, quis aproveitar cada instante. Estar junto, fazer comida, cuidar, dar banho. Não consigo entender um homem que não fique feliz em cuidar dos filhos", diz Edson, que tem Pedro, de 23 anos, e Maria Clara, de 13, de dois casamentos. O menino tinha 3 anos quando ficou viúvo. "Jamais passou pela minha cabeça deixá-lo com os avós. Eu já cuidava de muita coisa em casa, era só continuar", relembra.
Na segunda união, também participou de cada fase de Maria, mesmo com as idas e vindas do casal, que acabou se separando. "Nunca faltei ou cheguei atrasado nos meus dias com a minha filha, inclusive a Maria, quando a mãe se mudou para São Paulo, não quis ir e passou a morar comigo e com o Pedro em Niterói, por um ano e meio", destaca. Maria concorda com o pai e diz sentir saudades desse tempo.

Hoje, Pedro faz faculdade em Minas Gerais, a mãe de Maria voltou a morar no Rio, com a adolescente e a nova família, e Edson deixou Niterói. "Não existe isso de eu escolher um ou outro. Todo mundo dizia que o meu lugar era ao lado da minha mãe. Mas meu pai sempre cuidou muito bem de mim e do meu irmão. O que me incomodava era eu ter de me explicar porque eu vivia com ele e não com ela. Puro machismo. No fundo e de um jeito diferente, meu pai e minha mãe querem a mesma coisa, que eu me torne uma pessoa cada vez melhor", diz a adolescente.

FUTURO - Senado deve engavetar redução da maioridade penal proposta pela Câmara

na Rede Brasil Atual
Parlamentares apontam que texto da Câmara só prevê castigo, sem que o Estado assuma responsabilidade por menores infratores
por Karine Melo, da ABr 
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Para senadores, proposta da Câmara exime Estado de responsabilidade sobre brasileiros vulneráveis e expostos à criminalidade

Brasília – Depois da aprovação pelo plenário da Câmara dos Deputados, na última semana, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171/93 que reduz, em alguns casos, a maioridade penal de 18 para 16 anos, a responsabilidade por levar a discussão adiante está com os senadores, que precisam submeter o texto a dois turnos de votação. A tarefa, no entanto, encontrará barreiras. Após o resultado da Câmara, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), voltou a dizer que pessoalmente é contrário a proposta.
A PEC aprovada pelos deputados prevê redução da maioridade nos casos de crimes hediondos – como estupro e latrocínio – e também para homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. Os jovens de 16 e 17 anos deverão cumprir a pena em estabelecimento separado dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas e dos maiores de 18 anos.
José Pimentel (PT-CE) criticou a proposta de mudar a Constituição e ressaltou que, com alterações importantes já feitas pelo Legislativo no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Senado já antecipou sua posição sobre o assunto, sinalizando que a proposta aprovada pelos deputados pode ter chegado ao limite em sua tramitação. "O texto que a Câmara aprovou simplesmente pega esse menor e leva direto para dentro de um presídio, (o Estado) não tem a obrigação nem de educar e nem de dar uma profissão. Já com o adulto que utiliza a mão de obra desse menor na consumação de um crime, continua tudo como está. São visões diferentes para enfrentar o mesmo problema", defendeu o senador.
Para o líder do PMDB no Senado, Eunício Oliveira (CE) , o destino da PEC na Casa é claro: "aqui engaveta!". Outro líder, o do PT, senador Humberto Costa (PE), tem uma avaliação parecida. Ele acha difícil o texto de redução da maioridade aprovado na Câmara avançar no Senado. "Não acredito que essa PEC prospere no Senado. Meu sentimento é de que a ampla maioria dos senadores se opõe a ela. Então não creio que essa PEC que veio da Câmara, que é um retrocesso, com toda oposição da bancada do PT, vá andar no Senado. E, se andar, e vier a plenário, acredito que será derrotada. Não conseguirá 49 votos favoráveis", disse o líder.
A proposta aprovada pelos deputados também enfrenta resistência da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). "A redução da maioridade penal é inconstitucional, viola princípios de Direito Internacional, portanto ela é inconvencional e além de tudo isso, não vai reduzir a criminalidade. Portanto, ela é materialmente ineficaz. Por esses motivos todos a OAB é contra a redução da maioridade penal", explicou o presidente da comissão de Direito Penal do Conselho Federal da OAB, Pedro Paulo de Medeiros.
Para a Secretaria de Direitos Humanos, não há necessidade de uma nova legislação para jovens infratores. "A gente é pioneiro no mundo em relação a ter uma legislação própria para crianças e adolescentes. Temos que reconhecer isso. Obviamente que ajustes são necessários em alguns aspectos, mas os mais importante é preservar o melhor interesse da criança e do adolescente. O que precisamos é dar condições aos entes federados para que eles apliquem a Lei", ponderou o secretário substituto da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, Rodrigo Torres.
De 1993 até hoje, o Congresso acumula mais de 60 propostas envolvendo jovens infratores.

MULHERES INVISÍVEIS - Livro faz retrato da vida no sistema prisional feminino brasileiro

na Rede Brasil Atual
Jornalista e fundadora do movimento Eu Não Mereço Ser Estuprada humaniza porção invisível da sociedade, sem vitimizá-la
por Xandra Stefanel
Capa - Campinas


Em 2010, Nana Queiroz conheceu alguém que há anos vinha trabalhando no sistema carcerário feminino. Interessada pelo tema, a jornalista e fundadora do movimento Eu Não Mereço Ser Estuprada decidiu pesquisar sobre o assunto e descobriu que praticamente não existiam livros, documentários nem outros materiais sobre prisões femininas no Brasil. "Era como se não existissem mulheres presas", lembra a jovem, que acaba de lançar Presos que Menstruam (Ed. Record, 294 págs., R$ 40), uma colcha de retalhos costurada durante cinco anos que apresenta um retrato dos problemas e desafios do sistema prisional feminino no país.
Capa do livro
Nana tira da invisibilidade 37.380 das 607.731 pessoas que, segundo o Ministério da Justiça, compõem a população prisional brasileira. Suas visitas a mais de dez instituições carcerárias renderam ao leitor histórias sobre gravidez no cárcere, mulheres torturadas com bebês no colo e no ventre, solidão, abandono, celas insalubres, torturas psicológicas, refeições intragáveis e tantos outros dramas vividos por presas anônimas e famosas.
Tremembé 1
Como não conseguiu da maioria das secretarias de Segurança Pública autorização para visitar os presídios, a jornalista entrou em algumas das instituições como voluntária e como parente de presa. "Descobri que não era apenas o governo que nos impedia de falar sobre o assunto. Tabus são mantidos, também, pelos que se recusam a falar sobre eles. E nós, sociedade, evitamos falar de mulheres encarceradas. Convencemos a nós mesmos de que certos aspectos da feminilidade não existirão se nós não os nomearmos ou se só falarmos deles bem baixinho. Ignoramos as transgressões de mulheres como se pudéssemos manter isso em segredo, a fim de controlar aquelas que ainda não se rebelaram contra o ideal da 'feminilidade pacífica'. Ou não crescemos ouvindo que a violência faz parte da natureza do homem, mas não da mulher?", questiona, no prefácio.
Com mais de 100 entrevistas com presas, ex-presas, familiares e especialistas, o livro humaniza essa porção invisível da sociedade sem vitimizá-la. "Não podemos desconsiderar que as mulheres são diferentes dos homens por uma série de condicionamentos culturais que elas recebem a vida inteira; por exemplo, a ideia de submissão", afirma Nana Queiroz.
A submissão pode explicar muitas das detenções femininas. A obra traz à luz uma pesquisa feita pela Coordenadoria Penitenciária da Mulher, do Rio Grande do Sul, segundo a qual 40% das mulheres presas se envolveram no crime para fugir da violência doméstica. "Algumas delas eram obrigadas pelo parceiro a traficar, outras saíam de casa para escapar do abuso sexual. Ou o marido batia, ela precisou fugir de casa com as crianças e, sozinha, não conseguia ter um salário suficiente para sustentar a criançada. Então, ela acabava traficando para complementar a renda. Esta história é muito comum", relata a jornalista.
Tremembé 2
Segundo o Ministério da Justiça, entre 2007 e 2012 a criminalidade cresceu 42% entre as mulheres. "Uma tese em voga entre ativistas da área é a de que a emancipação da mulher como chefe de casa, sem equiparação de seus salários com os masculinos, tem aumentado a pressão financeira sobre elas e levado mais mulheres ao crime no decorrer dos anos", informa Nana no livro. "O número das que são de fato perigosas e que cometeram crimes contra a pessoa varia de 6% a 8%. O de mulheres que são presas grávidas ou lactantes é menor ainda. Se cruzarmos os dados das que são perigosas e lactantes, o número é muito menor. Isso significa que a maioria das gestantes ou lactantes poderia estar cumprindo pena domiciliar porque não representa risco para a sociedade", declara a autora.
Mas não é o que acontece. Além da chocante situação das mulheres presas, Nana acaba apresentando também a terrível rea­lidade de centenas de crianças. Segundo ela, 166 bebês viviam presos com suas mães em instituições carcerárias enquanto ela escrevia o livro. É o caso de Luca, que estava no colo de sua mãe, Tamyris, quando ela foi presa por tráfico de drogas. Ela, um outro traficante e o bebê foram jogados na viatura e os policiais "distribuíram porrada sem discriminar em quem. Sobrou até para o pequeno Luca, que foi acertado na lateral do olho, que sangrou e inchou". Alguns meses depois, já morando em uma unidade materno-infantil, o estado emocional da criança despertou a preocupação de sua pediatra, Mara Botelho: "Luca não sorria. Mara brincava com ele no consultório, fazia caretas e barulhinhos bobos. Nada atraía a simpatia do garoto". A apatia foi a forma que seu inconsciente arrumou para lidar com tamanha violência.

Mãe sofre

O livro revela que a maioria das detentas grávidas já chega grávida na cadeia. Como em todo o país existem apenas 39 unidades de saúde e 288 leitos para gestantes e lactantes privadas de liberdade, na maioria dos presídios e cadeias públicas essas mulheres ficam misturadas com o restante da população carcerária. Não é incomum que os bebês nasçam dentro do presídio, nem é raro que as mães, mesmo na hora do parto, sejam mantidas algemadas na cama. "Como se ela pudesse levantar parindo e sair correndo", critica Heide Ann Cerneka, coordenadora da Pastoral Carcerária nacional para as questões femininas.
DIVULGAÇÃONana (autora)
Nana, autora do livro: “Era como se não existissem mulheres presas”
Na visita ao um presídio no Pará, Nana Queiroz deparou com um ambiente completamente insalubre: vazamentos, infiltrações, falta de ventilação e excrementos saindo dos vasos sanitários fizeram com que ela tivesse vontade de deixar imediatamente aquele lugar. "Mas eu falei que se elas suportavam isso por anos, eu tinha de suportar por alguns minutos para ouvi-las", afirma a autora. "Da cela, saiu uma mulher tão magra que dava para ver as pontas dos ossos dela… Ela me contou que tinha perdido o bebê um mês antes e que ninguém tinha feito curetagem nem exame. 'Estou com febre, sangramento, e eu acho que meu filho está apodrecendo dentro de mim', disse. Quando ouvi aquilo fiquei tão mal que quando saí dali, vomitei. Foi um chute no meu estômago", lembra a jornalista.
Ela também escutou o desabafo de uma mulher que levou pauladas na barriga quando estava grávida de oito meses. "O guarda batia e dizia: 'Não reclama. Esse é mais um vagabundinho vindo para o mundo. Tomara que ele morra antes de nascer' Quando perguntei, no Pará, quantas delas tinham apanhado enquanto estavam grávidas ou lactantes, 90% levantaram a mão." Será que agentes como esse acreditam que a violência promova alguma mudança positiva? Não é preciso ser especialista no assunto para entender que ela apenas piora e perpetua uma situação de exclusão.
Assim como fará a redução da maioridade penal, sobre a qual Nana é categórica: terá impacto diretamente na vida das mulheres. "Com a redução da maioridade penal, a gente colocaria na cadeia muito mais mães jovens, de família monoparental, abandonadas pelos parceiros. O cara engravida, desaparece, ela fica desesperada, começa a roubar, traficar, se envolve em crimes e vai parar na cadeia. Ou então ela é vítima de violência doméstica e mata o marido. Aí, como é pobre e não consegue fazer uma boa defesa, vai presa acusada de crime hediondo", lamenta. Quem garante que o ciclo não se repita com algumas (ou muitas) das crianças que foram torturadas antes mesmo de nascer ou com as que passaram seus primeiros meses de vida encarceradas?
O que Nana pretende com Presos que Menstruam é que a sociedade reflita sobre a miséria em que o sistema prisional brasileiro está mergulhado. E também sobre como a sociedade patriarcal e o machismo têm levado cada vez mais mulheres para prisões, onde se tornam ainda mais invisíveis para a sociedade. "É fácil esquecer que mulheres são mulheres sob a desculpa de que todos os criminosos devem ser tratados de maneira idêntica. Mas a igualdade é desigual quando se esquecem as diferenças. É pelas gestantes, os bebês nascidos no chão das cadeias e as lésbicas que não podem receber visitas de suas esposas e filhos que temos de lembrar que alguns desses presos, sim, menstruam."
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