quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Boaventura: A nova Tese Onze

por Boaventura de Sousa Santos

no Outras Palavras

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“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo. A questão é transformá-lo”, escreveu Karl Marx. Seria o caso de atualizar a frase, para livrá-la de certo viés eurocêntrico?
Por Boaventura de Sousa Santos | Imagens: Mural e Cartaz zapatistas
Karl Marx escreveu em 1845 as Teses sobre Feuerbach. Escrito logo depois dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, o texto constitui uma primeira formulação do seu propósito de construir uma filosofia materialista centrada na praxis transformadora, radicalmente distinta da que então dominava e de que era expoente máximo Ludwig Feuerbach.
Na célebre tese onze, a mais conhecida de todas, declara: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.” O termo filósofos é usado num sentido amplo, como referência aos produtores de conhecimento erudito, podendo incluir hoje todo o conhecimento humanista e científico considerado fundamental por contraposição ao conhecimento aplicado. No início do século XXI esta tese levanta dois problemas.
O primeiro é que não é verdade que os filósofos alguma vez se tenham dedicado a contemplar o mundo sem que a sua reflexão tenha tido algum impacto na transformação do mundo. E mesmo que alguma vez isso tenha ocorrido, deixou de ocorrer com a emergência do capitalismo ou, se quisermos um termo mais abrangente, com a emergência da modernidade ocidental, sobretudo a partir do século XVI. Os estudos sobre a sociologia do conhecimento dos últimos cinquenta anos foram concludentes em mostrar que as interpretações do mundo dominantes numa dada época são as que legitimam, possibilitam ou facilitam as transformações sociais levadas a cabo pelas classes ou grupos dominantes.

O melhor exemplo disso é a concepção cartesiana da dicotomia natureza-sociedade ou natureza-humanidade. Conceber a natureza e a sociedade (ou a humanidade) como duas entidades, duas substâncias na terminologia de Descartes, totalmente distintas e independentes uma da outra, tal como acontece com a dicotomia corpo-alma, e construir nessa base todo um sistema filosófico é uma inovação revolucionária. Choca com o senso comum, pois não imaginamos nenhuma atividade humana sem a participação de algum tipo de natureza, a começar mesmo pela capacidade e atividade de imaginar, dada a sua componente cerebral, neurológica. Aliás, se os seres humanos têm natureza, a natureza humana, será difícil imaginar que essa natureza não tenha nada a ver com a natureza não-humana. A concepção cartesiana tem obviamente muitos antecedentes, dos mais antigos do Velho Testamento (livro do Gênesis) até aos mais recentes do seu quase contemporâneo Francis Bacon, para quem a missão do homem é dominar a natureza. Mas foi Descartes que conferiu ao dualismo a consistência de todo um sistema filosófico.
O dualismo natureza-sociedade, nos termos do qual a humanidade é algo totalmente independente da natureza e esta é igualmente independente da sociedade, é de tal maneira constitutivo da nossa maneira de pensar o mundo e a nossa presença e inserção no mundo que pensar de modo alternativo é quase impossível, por mais que o senso comum nos reitere que nada do que somos, pensamos ou fazemos pode deixar de conter em si natureza. Por que então a prevalência e quase evidência, no plano científico e filosófico, da separação total entre natureza e sociedade? Está hoje demonstrado que esta separação, por mais absurda, foi uma condição necessária da expansão do capitalismo. Sem tal concepção não teria sido possível conferir legitimidade aos princípios de exploração e de apropriação sem fim que nortearam a empresa capitalista desde o início.
O dualismo continha um princípio de diferenciação hierárquica radical entre a superioridade da humanidade/sociedade e a inferioridade da natureza, uma diferenciação radical porque assente numa diferença constitutiva, ontológica, inscrita nos planos da criação divina. Isto permitiu que, por um lado, a natureza se transformasse num recurso natural incondicionalmente disponível para ser apropriado e explorado pelo homem para seu exclusivo benefício.
E, por outro lado, que tudo o que fosse considerado natureza pudesse ser apropriado nos mesmos termos. Ou seja, a natureza em sentido amplo abrangia seres que, por estarem tão próximos do mundo natural, não podiam ser considerados plenamente humanos. Assim se reconfigurou o racismo para significar a inferioridade natural da raça negra e, portanto, a “natural” conversão dos escravos em mercadorias. Esta foi a outra conversão de que o Padre Antônio Vieira nunca falou mas que está pressuposta em todas as outras de que falou brilhantemente nos seus sermões. A apropriação passou a ser o outro lado da super-exploração da força de trabalho.
O mesmo aconteceu com as mulheres ao se reconfigurar sua inferioridade “natural”, que vinha muito detrás, convertendo-a na condição da sua apropriação e super-exploração, neste caso consistindo nomeadamente na apropriação do trabalho não-pago das mulheres no cuidar da família. Este trabalho, apesar de tão produtivo quanto o outro, foi convencionalmente considerado reprodutivo para poder ser desvalorizado, uma convenção que o marxismo não enjeitou. A partir de então, a ideia de humanidade passou a coexistir necessariamente com a ideia de sub-humanidade, a sub-humanidade dos corpos racializados e sexualizados. Podemos, pois, concluir que a compreensão cartesiana do mundo estava envolvida até à medula na transformação capitalista, colonialista e patriarcal do mundo.
À luz disto, a tese onze sobre Feuerbach levanta um segundo problema. É que para enfrentar os gravíssimos problemas do mundo de hoje – dos chocantes níveis de desigualdade social à crise ambiental e ecológica, ao aquecimento global irreversível, desertificação, falta de água potável, desaparecimento de regiões costeiras, acontecimentos “naturais” extremos, etc. – não é possível imaginar uma prática transformadora que resolva estes problemas sem uma outra compreensão do mundo. Essa outra compreensão tem de resgatar a um novo nível o senso comum da mútua interdependência entre a humanidade/sociedade e a natureza, uma compreensão que parta da ideia de que, em vez de substâncias, há relações entre a natureza humana e todas as outras naturezas, que a natureza é inerente à humanidade e que o inverso é igualmente verdadeiro, que é um contrassenso pensar que a natureza nos pertence se não pensarmos que, reciprocamente, pertencemos à natureza.
Não vai ser fácil. Contra a nova compreensão e, portanto, nova transformação do mundo militam muitos interesses bem consolidados nas sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais em que vivemos. Como tenho insistido, a construção de uma nova compreensão do mundo resultará de um esforço coletivo e epocal, ou seja,  ocorrerá no bojo de uma transformação paradigmática da sociedade. A civilização capitalista, colonialista e patriarcal não tem futuro, e o seu presente dá de tal modo testemunho disso que ela só prevalece por via da violência, da repressão, das guerras declaradas e não declaradas, do estado de exceção permanente, da destruição sem precedentes do que se continua a designar como recurso natural e, portanto, disponível sem limites.
Minha contribuição pessoal nesse esforço coletivo tem consistido na formulação do que designo por epistemologias do sul. Na minha concepção, o sul não é um lugar geográfico, é uma metáfora para designar os conhecimentos construídos nas lutas dos oprimidos e excluídos contra as injustiças sistêmicas causadas pelo capitalismo, colonialismo e patriarcado, sendo que muitos dos que constituem o sul epistemológico viveram e vivem no sul geográfico. Estes conhecimentos nunca foram reconhecidos como contribuições para uma melhor compreensão do mundo por parte dos titulares do conhecimento erudito ou acadêmico, seja ele filosofia ou ciências sociais e humanas. Por isso, a exclusão desses grupos foi radical, uma exclusão abissal decorrente de uma linha abissal que passou a separar o mundo dos plenamente humanos, onde “só” é possível a exploração (a sociabilidade metropolitana), do mundo dos sub-humanos, populações descartáveis onde é possível a apropriação e a super-exploração (a sociabilidade colonial). Uma linha e uma divisão que prevalecem desde o século XVI até hoje.
As epistemologias do sul procuram resgatar os conhecimentos produzidos do outro lado da linha abissal, o lado colonial da exclusão, de modo a poder integrá-los em amplas ecologias de saberes onde poderão interagir com os conhecimentos científicos e filosóficos com vista a construir uma nova compreensão/transformação do mundo. Ora esses conhecimentos, até agora invisibilizados, ridicularizados, suprimidos, foram produzidos, tanto pelos trabalhadores que lutaram contra a exclusão não abissal (zona metropolitana), como pelas vastas populações de corpos racializados e sexualizados em resistência contra a exclusão abissal (zona colonial). Ao centrar-se particularmente nesta última zona, as epistemologias do sul dão especial atenção aos sub-humanos, precisamente àqueles e àquelas que foram considerados mais próximos da natureza. Ora os conhecimentos produzidos por esses grupos, em que pese a sua imensa diversidade, são estranhos ao dualismo cartesiano e, pelo contrário, concebem a natureza não-humana como profundamente implicada na vida social-humana, e vice-versa. Como dizem os povos indígenas das Américas, “a natureza não nos pertence, nós pertencemos à natureza”. Os camponeses de todo o mundo não pensam de modo muito diferente. E o mesmo acontece com grupos cada vez mais vastos de jovens ecologistas urbanos em todo o mundo.
Isto significa que os grupos sociais mais radicalmente excluídos pela sociedade capitalista, colonialista e patriarcal, muitos dos quais foram considerados resíduos do passado em vias de extinção ou de branqueamento, são os que, do ponto de vista das epistemologias do sul, estão a nos indicar uma saída com futuro, um futuro digno da humanidade e de todas as naturezas humanas e não-humanas que a compõem. Sendo parte de um esforço coletivo, as epistemologias do sul são um trabalho em curso e apenas embrionário.
No meu próprio caso, penso que até hoje não dei conta de toda a riqueza analítica e transformadora contida nas epistemologias do sul que tenho proposto. Tenho salientado que os três modos principais de dominação moderna –classe (capitalismo), raça (racismo) e sexo (patriarcado) – atuam articuladamente e que essa articulação varia com o contexto social, histórico e cultural. Mas não tenho dado atenção suficiente ao fato de este modo de dominação assentar-se na dualidade sociedade/natureza, e de tal modo que sem a superação desta dualidade nenhuma luta de libertação poderá ter êxito.
Em face disto, a nova tese onze devia ter uma formulação do tipo: “os filósofos, filósofas, cientistas sociais e humanistas devem colaborar com todos aqueles e aquelas que lutam contra a dominação no sentido de criar formas de compreensão do mundo que tornem possíveis práticas de transformação do mundo que libertem conjuntamente o mundo humano e o mundo não-humano”. É muito menos elegante que a tese onze original, mas talvez nos seja mais útil.

Boaventura de Sousa Santos

Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril, e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa - todos da Universidade de Coimbra. Sua trajetória recente é marcada pela proximidade com os movimentos organizadores e participantes do Fórum Social Mundial e pela participação na coordenação de uma obra coletiva de pesquisa denominada Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Professor Gilbert Publica Artigo em Livro

por José Gilbert Arruda Martins*

Tive a honra de ser convidado a publicar artigo no novo livro do Curso de Mestrado do Unieuro. Nosso texto está no capítulo 21 da obra intitulada: Direitos Humanos, Cidadania e Violência no Brasil: Estudos Interdisciplinares. Organizadores: Dra. Lídia de Oliveira Xavier, Dr. Carlos F. Domínguez Avila e Dr. Vicente Fonseca.

Foto: Ivana Martins


Como falar em Direitos Humanos num país que acaba de sofrer um rompimento institucional? Como um governo ilegítimo poderá tratar de assunto tão caro à sociedade humana? Essas são algumas questões que logo vêm ao pensamento ao iniciarmos a leitura de qualquer obra sobre Direitos Humanos. Não tem como hoje no Brasil, fazermos debate sobre tema tão importante, sem antes, durante e depois, refletir sobre a atual conjuntura política.

A filósofa e política alemã, de origem judaica, Hanna Arendt, uma vez afirmou: “A essência dos direitos humanos é o direito a ter direitos”. Pois bem, toda a arquitetura política e de poder pós-golpe 2016 é completamente alinhada com a retirada quase que completa de direitos. Segundo o que conseguimos acompanhar nos noticiários, mesmo da mídia conservadora, as pautas do governo e do Congresso na votação de projetos nos quais os direitos consagrados na Constituição Cidadão de 1988, estão sendo paulatinamente destruídos. Numa tentativa de dar resposta às perguntas feitas acima, ousamos dizer que a sociedade organizada brasileira tem a obrigação de tomar para si a responsabilidade em assumir o debate urgente e intransigente do assunto e lutar para que efetivamente, os Direitos Humanos sejam respeitados no país.

No Brasil pós-golpe, a sensação que muita gente da academia e do povo tem é a de que a violência e o desrespeito aos Direitos Humanos aumentaram violentamente. Os episódios de extrema violência perpetrados por agentes do estado, não foram poucos nos últimos doze meses. A mídia, mesmo a conservadora, tem relatado e divulgado, mesmo em doses homeopáticas, notícias avassaladoras de flagrantes desrespeitos aos direitos básicos do cidadão. Blogs progressistas e os grandes jornais internacionais têm replicado tais notícias pelo Brasil e pelo mundo.

A obra que analisaremos a seguir é um ótimo trabalho de professores e estudantes do curso de mestrado em Ciência Política do Unieuro. São vinte e um textos que tratam de temas diversos, mas, todos voltados de uma forma ou de outra, aos Direitos Humanos. Os autores/as tiveram a ousadia e atenção para, com o cuidado redobrado, tratar de temas que falam alto aos interesses da sociedade brasileira e mundial.

Onde entra então a obra Direitos Humanos, Cidadania e Violência no Brasil? A meu ver seus bons textos como especificamente: “Ditaduras e Qualidade da Democracia no Brasil e no Cone Sul”, podem ser replicados nas redes sociais e, fundamentalmente em salas de aula dos diversos cursos de graduação não apenas da instituição responsável pela obra mas, em todas as graduações do país no sentido de provocar o debate e a reflexão sobre a flagrante incongruência entre governos autoritários e direitos humanos. São como água e óleo, completamente impossível de misturar. É inconcebível que governos de cunho autoritários, frutos de golpes e acordos estranhos à democracia, mesmo a representativa, possam tratar de assuntos tão importantes como é a questão dos Direitos Humanos. Não enxergo como isso pode acontecer de fato.

Outro texto bastante interessante: “Uma discussão Teórica Sobre os Interesses das Elites Políticas Refletida na Bancada Ruralista no Congresso Nacional Brasileiro” Acredito, seja um dos que mais poderão colaborar. O texto foi muito feliz em iniciar a reflexão pensando sobre o modus operandi das elites políticas que atuam no Congresso Nacional. Os parlamentares tanto da Câmara Federal como do Senado, na sua grande maioria, combinaram com o atual governo, todas as ações de desmonte do Estado do Bem-Estar Social brasileiro nos últimos dose meses. A velocidade com que fazem as mudanças impressiona até os mais ansiosos defensores do grande capital. Pois bem, historicamente, as elites brasileiras deram provas mais que reais de seu completo descaso com os interesses nacionais e, consequentemente, com a questão dos direitos humanos. Para muitos estudiosos, entre eles o professor e pesquisador Jessé de Souza, autor da mais recente, surpreendente, forte, inovadora obra: A elite do atraso, O Brasil tem uma das mais atrasadas e indiferentes elites do mundo. Seu comportamento ao longo da história mostra com clareza. Foi assim, nos acordos que levaram à criação do Império, se repetiu no golpe que deu nascimento a República, continuou com os acordos do Movimento de 1930, 1954 e o rompimento de 1964 que pariu um dos momentos de maior desrespeito aos Direitos Humanos em nosso país. O texto em questão foi muito feliz em trazer à baila tal assunto. Na análise da forma de atuação das elites ou de seus lacaios no parlamento, os autores partiram da abordagem teórica, muito criticada, por sinal pelo teóricos ditos progressistas, “elitismo crítico e o elitismo democrático”. Mas conseguiram provocar no sentido de pensarmos que tipo de elite está representada num Congresso fortemente conservador como o nosso.

Três outros textos saltam aos olhos no debate sobre direitos humanos quando destacam a questão indígena, são eles: “Violências e Indígenas no Brasil: um estudo sobre resistência na América portuguesa”, “Constituição, Acesso a Direitos e Demarcação de Terras Indígenas no Brasil” e “Ensino Superior Brasileiro e Povos Indígenas” Se o desafio em debater direitos humanos é enorme por causa da presença de um governo ilegítimo, imaginem um governo com tais características, cuidando dos direitos de povos historicamente perseguidos e assassinados como os ameríndios brasileiros. Não é preciso ir muito a fundo para enxergar as atrocidades que continuam a acontecer contra esses povos. Desde a época da invasão europeia suas terras foram violentamente sendo invadidas e tomadas. Nas últimas décadas esse processo, por força do agronegócio, tem sido potencializado fazendo com que haja, inclusive, retrocessos absurdos na questão da demarcação de suas terras. Os textos são bons instrumentos de reflexão para estudiosos do tema e estudantes.

Como destacado, o livro coloca em evidência um conjunto importante de assuntos dentro do tema maior que são os Direitos Humanos. Para concluir nossas reflexões, importante se faz destacar um último artigo: “Cidadania e Transferência de Renda no Brasil: desvendando a percepção dos benefícios do Programa Bolsa Família em Santa Maria, no Distrito Federal”. Para quem não conhece, Santa Maria é uma cidade que fica há 26 quilômetros do Plano Piloto. É uma cidade com vida própria, no entanto, a grande maioria de seus habitantes adultos, tanto homens como mulheres, passam o dia trabalhando no centro da capital federal e retornam para dormir na cidade. Os autores do texto falaram de um assunto, para muito batido, mas na visão dos dois pesquisadores, essencial para o presente e o futuro dos direitos de cidadania brasileira. A pobreza extrema; as desigualdades sociais e regionais; a grande concentração de fluxos de renda e estoques de riqueza; as discriminações de raça, gênero e idade; a ausência de reformas estruturais, entre elas a agrária, tributária e política, entre outros problemas relevantes da realidade social, são fenômenos inaceitáveis que marcam a história brasileira. Acontecimentos construídos a partir de uma estrutura política que abraçou e abraça historicamente o autoritarismo e a exclusão econômica e social, desprezando de forma cabal a democracia e a cidadania. Com um olhar nessa realidade iníqua, que os autores trabalharam o texto. O Programa Bolsa Família, que hoje sofre com a diminuição de recursos, é um dos mais importantes instrumentos de diminuição da fome no país. A cidade de Santa Maria no Distrito Federal sente isso. As famílias pesquisadas demonstraram de forma cabal essa realidade importante.

O texto debatido logo acima, trás à luz não um programa de governo, mas, uma política de Estado. O Programa Bolsa Família, devido à sua grande abrangência e importância, acabou se transformando numa política que deve se tornar permanente, ou pelo menos, até acabarmos com a fome no Brasil. Infelizmente, o atual governo vem aos poucos reduzindo sua importância e, com a PEC dos gastos públicos, reduzindo os investimentos nessa área, a tendência para os próximos anos é o Bolsa Família diminuir e deixar de fazer o importante papel de ajuda no combate à fome no país.

Os autores destacam a cidade de Santa Maria-DF, mas poderia ser qualquer outra cidade pobre do país. O PBF tem, como destacado pelos pesquisadores, além de uma importância impar no combate à fome e o alastramento da miséria, o programa é, comprovadamente, um instrumento eficaz de distribuição de renda e de aumento do estágio civilizatório num país historicamente tão carente de humanidade e civilidade.

Para concluir podemos dizer que a obra referida pode, se bem usada, ser um instrumento de reafirmação do debate sobre Direitos Humanos nas escolas e na sociedade. Esse é o tema do presente e do futuro. Se o Brasil, mesmo com a elite que possui, pretende construir uma sociedade moderna, precisa urgentemente levar o debate sobre Direitos Humanos a sério. Infelizmente, não é o que observamos quando olhamos com mais atenção para o funcionamento dos governos, em todos os seus níveis. No que se refere ao papel, por exemplo, de policiamento, quesito onde a PM é sua maior responsável, o país passa a ser visto lá fora como atrasado, alguns chegam a defender, medieval.

*Mestre em Ciência Política







quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

A escória rebelde de Os últimos Jedi

POR JOSÉ GERALDO COUTO

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Com personagens complexos, mudanças de escala provocadoras e humor, filme de Rian Johnson foge da estética de videogame. E consagra, em tempos de arrogância imperial, a rebeldia dos humilhados
Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS
Nada como um blockbuster de primeira linha (e de primeira hora, se pensarmos na origem da série) para terminar um ano que não foi lá dos mais animadores em matéria de cinema. Estou falando, é claro, de Os últimos jedi, o mais novo episódio da saga Star Wars.

É o oitavo exemplar da série, e um dos melhores. Alguns de seus elementos e características talvez ajudem a entender o apelo duradouro dessa fantasia criada por George Lucas e apresentada ao mundo pela primeira vez há quarenta anos.
Em primeiro lugar, há a ambiguidade profunda dos personagens, que talvez nunca tenha sido explorada de modo tão sistemático como em Os últimos jedi.
Maniqueísmo e ambiguidade
Entenda-se: há um maniqueísmo manifesto em Star Wars, já que desde o início estão definidas as forças antagônicas do bem e do mal, ou antes, o lado luminoso e o lado sombrio da “Força”. Mas esse maniqueísmo de princípio, essa polarização moral básica, não implica a criação de personagens eterna e imutavelmente bons, ou eterna e imutavelmente maus. Pelo contrário: desde o vilão Darth Vader, inicialmente o “escolhido” para ser o jedi que traria equilíbrio à Força, passando pelo marginal tornado herói Han Solo, há uma oscilação entre luz e trevas, ou mesmo uma transmutação de uma coisa na outra, no interior de cada personagem importante.
Em Os últimos jedi essa ambivalência intrínseca atormenta evidentemente o jovem Kylo Ren (Adam Driver), o filho de Han Solo e da princesa Leia (Carrie Fisher) cooptado pelo lado negro, mas está presente também no jedi tornado eremita Luke Skywalker (Mark Hamill), na sua discípula Rey (Daisy Ridley) e até em personagens secundários.
Consciente da ânsia do espectador em filiar cada ente na tela (pessoa, animal ou máquina antropomorfizada) a um dos times em combate, o diretor e roteirista Rian Johnson joga com essa expectativa: o mercenário malandro DJ (Benicio del Toro) se revelará um novo Han Solo, servindo ao bem? A vice-almirante Holdo (Laura Dern) colocará tudo a perder com seu autoritarismo arrogante ou se sacrificará pela causa? O “tema do traidor e do herói”, que Borges consagrou num conto memorável, reverbera aqui de modo recorrente.
Assim como George Lucas, Rian Johnson sabe que o que garante o engajamento do espectador não é o espetáculo pirotécnico dos combates espaciais, mas a empatia (ou antipatia) com as criaturas na tela. O verdadeiro conflito se dá entre indivíduos, e às vezes no interior de cada um deles. Por isso há sempre um momento em que a máquina da guerra se paralisa e silencia para dar lugar a um duelo de espíritos, de energias psíquicas e morais, geralmente concretizado numa luta de sabres de luz (essa invenção maravilhosa de nossa era).
Outro trunfo da saga, em seus melhores momentos, é a hábil mistura de referências mitológicas e iconográficas, já comentada à exaustão por críticos e estudiosos: do western às filosofias orientais, dos cavaleiros da távola redonda às histórias em quadrinhos, das lendas da antiguidade aos videogames, Star Wars parece um compêndio da cultura de nossa época saturada de imagens e cacos de outras eras. Para quem não embarca na fantasia, tudo não passa de uma mixórdia de estilos e apropriações, um estridente samba do crioulo doido, uma alegoria arbitrária de escola de samba com sofisticação tecnológica, emoldurada em sentimentalismo piegas e estética kitsch. Mas essa atitude pedante de rejeição em bloco certamente não é a melhor maneira de entender o que se passa na tela e fora dela.
A chave do tamanho
Do ponto de vista da forma cinematográfica, o que chama a atenção na série, e neste novo filme em especial, é, por um lado, o jogo entre os ambientes fechados (naves, grutas, salas de controle) e os abertos (espaço sideral, desertos, montanha, mar), entre o mundo fabricado e o mundo natural. Por outro lado, há o recurso frequente às vertiginosas mudanças de escala. Estamos numa pequena nave em que cabem duas pessoas (ou uma pessoa e um droid) e de repente o quadro se abre e essa nave é com um inseto minúsculo entrando numa gigantesca estação espacial ou coisa que o valha. O efeito sensorial é fascinante.
Em Os últimos jedi há uma cena que brinca com essa “chave do tamanho”: vemos o que parece ser uma nave aterrissar acionando jatos de calor, mas no segundo seguinte esse aparato se revela um prosaico ferro de passar roupas pousando sobre uma jaqueta.
Essa passagem evidencia também outro traço constante da saga: o humor, usado não apenas como alívio cômico dos momentos de tensão, mas também como signo de ironia, de saudável distanciamento, como que dizendo ao espectador: “Ei, não leve tudo tão a sério, estamos aqui para nos divertir”.
Para se divertir com Os últimos jedi é preciso vencer os primeiros dez ou quinze minutos de pura ação bélica, explosões em profusão, montagem frenética e música altissonante. É como se, nessa sequência inicial, os realizadores fizessem um agrado aos aficionados da estética de videogame, pagando pedágio ao “gênero” para poder depois dedicar-se ao que interessa.
E o que interessa, no caso, é o que fica na sensibilidade e na memória: o espírito da revolta dos marginalizados e oprimidos (não por acaso representados por uma filha de sucateiros, um negro, um latino, uma oriental) contra o poder despótico da riqueza e das armas. “Escória”, diz com desprezo o ariano do dark side ao negro Finn (John Boyega). Este responde altivamente: “Escória rebelde”. E as imagens que apontam para o futuro (sem que isto signifique spoiler) são as de um menino sujo e explorado, quase um Oliver Twist redivivo, apertando na mão o símbolo da Força e olhando com esperança uma astronave que passa riscando o céu. No mundo cruel e opressivo de Trump e congêneres, não deixa de ser um alento.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Com quem andas, doçura?

no O Joio e o Trigo




Corporações de refrigerantes se fixaram no Amazonas ao custo de parcerias causadoras de danos ambientais e dominação cultural


A partir de Manaus (AM), uma viagem de 107 quilômetros pela BR-!74 leva ao município amazonense de Presidente Figueiredo. Apesar de registrar apenas 29 mil habitantes, terra é o que não falta por lá. São vastos 25,4 mil km2 – área maior do que as de alguns países da Europa – que compõem o território. Dentro disso, se assentam 59 mil hectares de terreno pertencentes à empresa sucroalcooleira Jayoro, dos quais 4,5 mil estão ocupados por cana-de-açúcar e 410 por pés de guaraná.
Instalada na região em 1984, a usina, logo de cara, promove largo desmatamento. Nascida a partir do Proálcool estimulado pela ditadura militar (1964-1985), com apoio da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), faz predominar a monocultura da cana em detrimento de diversas espécies vegetais nativas e produz matéria-prima para combustível de veículos. Os espíritos da Amazônia praguejam e o plano dá errado: nos anos 1990, a empresa tropeça e se torna uma pequena produtora de cachaça, utilizando somente 300 hectares de canaviais. No entanto, a reza empresarial também é brava. E a salvação vem. Em 1995, o empreendimento entra na mira de “investidores-anjo”. Entre eles, a Coca-Cola.
O poder econômico da Jayoro aumenta e, consequentemente, a força política cresce, o que facilita a vida da empresa para expandir o plantio, mesmo instalada num espaço cercado por áreas de proteção ambiental e sob a acusação de ter invadido terras públicas quando chegou ao Amazonas pelas mãos da família paulista Magid.
Já nos anos 90, a usina volta a destruir a floresta.  Aproximadamente 10 mil hectares de mata são derrubados para retomar o ritmo do plantio da cana. Dessa vez, a motivação é o fornecimento do açúcar, necessário à produção de concentrado de refrigerantes, o popular xarope, que serve de base para engrossar as bebidas açucaradas e gaseificadas que enchem os copos e corpos de milhões de brasileiros, e impulsionam os índices de obesidade, relacionados diretamente com diabetes e até 13 tipos de cânceres, de acordo com posicionamento recente do Instituto Nacional de Câncer (Inca).
De Presidente Figueiredo, o açúcar é despachado para a Zona Franca de Manaus, onde é despejado na Recofarma Indústria do Amazonas LTDA, fabricante de xarope e segunda maior engarrafadora de Coca-Cola do Brasil. A empresa é controlada pelo Grupo Solar, de propriedade do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), e já foi abordada pelo O joio e o trigo em reportagem sobre polêmicos incentivos tributários recebidos pelo setor de bebidas açucaradas. A triangulação Coca-Cola-Jayoro-Recofarma abastece todas as engarrafadoras no Brasil e também Argentina, Colômbia, Paraguai, Venezuela, Uruguai e Bolívia.
Não bastassem os danos ambientais causados para incentivar uma monocultura que garanta açúcar suficiente para a produção de xarope-base do refrigerante carro-chefe, a dupla Coca/Jayoro também se beneficia do tradicional plantio de guaraná na Região Amazônica. Maior usina sucroalcooleira do Amazonas, a Agropecuária Jayoro LTDA é a responsável por grande parcela do açúcar usado pela Recofarma. É da Jayoro, também, que sai a totalidade do extrato de guaraná usado no refrigerante Kuat, outro produto da corporação que carrega a tentacular marca vermelha e branca.
Mais dois problemas vêm com a parceria firmada em 1995: primeiro, o uso de agrotóxicos. Dois: o vinhoto, resíduo final do processo de fabricação do açúcar ou da destilação da qual se obtém o álcool, ou a aguardente de cana, que, se não for adequadamente tratado, provoca poluição de águas. Depositados nas lagoas e igarapés, são potentes contaminantes.
Denúncias surgem. Principalmente, após o início dos anos 2000. Segundo o técnico em agropecuária Paulo Sérgio Ribeiro, funcionário da Jayoro por 18 anos e entrevistado pela equipe da Repórter Brasil, vários tipos de inseticidas eram aplicados nos canaviais com tratores e aviões.
O pesquisador e filósofo Egydio Schwade, um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), atualmente morador de Presidente Figueiredo, denuncia há tempos a situação. E não poupa palavras. “O projeto da Coca-Cola/Jayoro já começou aniquilando em torno de 3 mil espécies de vegetais nativas para instalar a cana-de-açúcar. Após esse desastre ecológico, praticado com motosserras e tratores, impõe o desastre químico sobre toda a região, com o borrifo de venenos. Nenhuma espécie de planta ou animal nativo sobrevive naquele deserto”, enfatiza.
Schwade destaca, ainda, “os efeitos nocivos sobre a terra e as pessoas”,  consequências da exploração do território e do envenenamento de trabalhadores dos canaviais por agrotóxicos. “Topo, aqui, com trabalhadores intoxicados por venenos da Jayoro. Tem gente em cadeira de rodas, muitos vão tossindo pelas ruas por ‘causa desconhecida’”, diz.
Modelo para quem?
A Jayoro já foi considerada publicamente como “usina-modelo” por José Mauro de Moraes, alto executivo da Coca-Cola Brasil. O Ministério Público Federal no Amazonas, entretanto, parece não concordar. Atento observador das atividades da empresa, o MPF já investigou, em 2008, a contaminação – por uso de agroquímicos – de igarapés na região de Presidente Figueiredo. No entanto, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão que fiscaliza questões relacionadas ao meio ambiente no estado, afirmou que a sucroalcooleira atendia à legislação. O MPF, então, solicitou ao instituto os laudos de análise das águas. A devolutiva não foi satisfatória; apenas dizia que a licença da agropecuária estava em processo de avaliação,  contradizendo a primeira resposta.
Após nova investida do Ministério Público, ainda em 2008, o órgão estadual não teve saída: um parecer do Ipaam não renovou a licença ambiental da associada da Coca-Cola. Estranhamente, no ano seguinte, 2009, a empresa estava em plena atividade, sem a renovação anual de licença ambiental.
Antes, em 2007 e 2008, a licença das lavouras da Jayoro só havia sido retomada graças à assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ipaam, sob 13 condições. Dentre elas, a correção de rumos no uso de métodos agressivos ao meio ambiente e à população do entorno, a exemplo da queima de palha da cana-de-açúcar.
Dados conflitantes a respeito da agropecuária de propriedade da Coca não faltam. Única usina amazonense registrada na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), a Jayoro declara possuir 4,5 mil hectares dedicados à cana. Contudo, pesquisa do Ministério do Meio Ambiente (MMA) feita em 2008 já mostrava que o cultivo ameaçava uma área prioritária para a biodiversidade. A Área de Proteção Ambiental (APA) da margem esquerda do Rio Negro, setor Aturiá/Apuauzinho, constante do Mapa das Áreas Prioritárias para a Biodiversidade como “de extrema importância”, sofria com o plantio de cana-de-açúcar da usina, que estaria localizado sobre nascentes do rio Apuaú, segundo o MMA.
A Jayoro, por meio da sua direção, se posiciona oficialmente afirmando que “deixou de queimar palha em 2010” e que criou “voluntariamente” um plano de mecanização do corte da planta.
Os representantes da empresa se defendem quanto à monocultura e à aplicação de agroquímicos: garantem que, hoje, a linhaça é o fertilizante aplicado no solo e que não há uso de inseticidas. Ainda certificam que não plantam cana perto de cursos d´água.
Sobre a ação movida pelo Ministério Público Federal no Amazonas, o discurso é de que a denúncia é baseada em “fatos inverídicos” e que não existe registro de doença respiratória ou de qualquer outra natureza que tenha como agente causador a queima da palha da cana-de-açúcar.
Além disso, diretores da empresa refutaram a tese de que incêndios tenham provocado a morte de animais, mas um deles, Camillo Pachikoski, em 2013, chegou a admitir publicamente que “se porventura houvesse risco, o animal teria chance de fuga.”
Já a Coca-Cola, que se gaba de incentivar programas de proteção ao meio ambiente e que possui uma página oficial na Internet para “desmentir boatos”, faz somente uma menção a Jayoro em todo o site da corporação no Brasil, num texto sobre agroflorestas.
Pai sequestrado
Além das vermelhas e brancas, “marcas verdes” também têm braços poderosos. E eles envolvem a Amazônia num abraço apertado, capaz de sufocar. As megaempresas de refrigerantes são das poucas ultraprivilegiadas que estão inseridas na produção de bens cuja matéria-prima está no Amazonas. Lá, a Paullinia Cupana (a fruta do guaraná) foi descoberta como elemento alimentar e medicinal pela tribo Sateré-Mawé, índios conhecidos como “os filhos do guaraná”.  Segundo o artigo “Da trajetória secular aos novos caminhos do guaraná: desafios e perspectivas da produção na Amazônia do século XVII ao século XXI”, dos pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Arenilton Monteiro Serrão, Manuel de Jesus Masulo da Cruz e Luis Fernando Belém da Costa, tal herança cultural foi transformada em bebida com fins comerciais pela primeira vez no século 19, por mercadores mato-grossenses que davam aos índios “espelhos, pentes e outros produtos supérfluos” em troca da fruta, para depois negociar com compradores europeus. Com o avanço da tecnologia, toda a esfera social, política e econômica até então existente foi desmantelada, aponta o trabalho.
O Guaraná Antárctica que, historicamente, usa publicidade com mensagens mostrando que é desse cultivo amazônico que sai a base da bebida açucarada, tem papel central nesse desmonte. O orgulhoso discurso do marketing empresarial se colocar na posição de “refrigerante original do Brasil”. A realidade crua, entretanto, revela que a compra feroz da fruta, que se iniciou há mais de 50 anos pela então empresa paulista Antárctica, apropriou-se da cultura dos Sateré-Mawé, afetando as relações produtivas coletivas, que, hoje, segundo os pesquisadores da Ufam, se dão “de forma monopolista.”
Fábrica do Guaraná Antárctica na cidade de Maués (AM)
Após a fusão entre Antárctica e Brahma, que criou a AmBev, em 1999, a apropriação e a monopolização aumentaram agressivamente. Em 21 de outubro daquele ano, executivos de AmBev e PepsiCo Inc estabeleceram um acordo que previa o compromisso de distribuir o guaraná (waraná, na língua Sateré-Mawé) para mais de 175 países, levando o produto a uma escalada mundial. O trato foi acertado em audiência com o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP).
Esse período, de acordo com o estudo, marca também o início da decadência produtiva do Amazonas, em especial do município de Maués, a 253 quilômetros de Manaus e terra do povo Sateré-Mawé. Inclusive, o posto de maior produtor de guaraná acabou perdido pelo estado para a Bahia, essencialmente por fatores ligados às pesquisas agronômicas, renovação dos guaranazais e produção em grande escala.
“O guaraná deixou de ser um produto genuinamente Sateré- Mawé e tornou-se uma marca conhecida mundialmente, onde o marketing principal cavalga em alusão à indicação geográfica, como parte integrante de uma cultura indígena secular amazônica, e a venda dessa imagem é um fator preponderante na arte da acumulação do capital sobre essa cultura”, conclui o pesquisador Arenilton Monteiro Serrão.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

O e-commerce é o ramo da economia que mais cresce no Brasil

por José Gilbert Arruda Martins

Nesse cenário surge a IMDSHOPPING.COM, uma loja que veio para atender os anseios do brasileiro por produtos importados e nacionais de qualidade e com preço justo.



Brasília, DF, 05 de dezembro de 2017

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Estamos encantados com a grande aceitação da nossa e-store, isso é o combustível que nos move para oferecer cada vez mais, ótimos produtos. A IMD SHOPPING, além de entregar em todo o Brasil sem cobrar frete nenhum, parcela todas as suas compras em até 10x.
2017 está terminando, porém, o ano de 2018 promete. Continuaremos focados em oferecer a você a oportunidade de ter em sua casa produtos não encontrados no mercado nacional.
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Obrigado,

Equipe IMD Shopping

sábado, 2 de dezembro de 2017

"É A POLÍTICA, ESTÚPIDO" - Discurso de austeridade agrava a crise e serve para manter privilégios

na Rede Brasil Atual

Em livro, economista inglês desvenda mitos utilizados por governos para justificar cortes que afetam os mais pobres, deixando intocada a estrutura fiscal que privilegia os ricos

Austeridade
No Brasil, efeitos "amplificados" da receita de austeridade podem produzir "caos social", diz economista

São Paulo – Representantes do mercado e economistas liberais, a todo momento, insistem na ideia de que Estados podem quebrar se gastarem mais do que arrecadam. Dizem que as contas públicas devem ser administradas com a prudência devotada de uma dona de casa, que controla o orçamento doméstico para não deixar a dispensa vazia no final do mês. 
Em momentos de crise, advogam que o os governos devem dar o exemplo e "cortar na própria carne", de modo a contribuir para a elevação da confiança dos investidores que, animados, fariam o crescimento florescer, inevitavelmente, segundo as leis naturais do mercado. Há ainda o argumento de teor autopunitivo, que diz que, após períodos de bonança, baseados na gastança desenfreada, sempre chega o momento em que é preciso "apertar os cintos".
São esses mitos travestidos de argumento científico, como se fossem verdades matemáticas absolutas, que o economista inglês Mark Blyth dedica-se a investigar e destruir no livro Austeridade – A História de Uma Ideia Perigosa.
Na Europa, suas críticas a esse modelo de ajuste que repassa a conta da crise financeira (que eclodiu em 2007, e atingiu o continente nos anos seguinte), para o grosso da população, enquanto os governos correm para salvar bancos "grandes demais para falir", vem ganhando adeptos, não só entre os estudiosos, mas também entre políticos mais progressistas. 
Para tratar dos impactos da obra de Blyth, e também da sua aplicabilidade para o contexto brasileiro, os economistas Pedro Rossi (Unicamp), Laura Carvalho (USP) e Luiz Gonzaga Belluzzo (Unicamp) participaram de debate nesta quinta-feira (30), em São Paulo, que também promoveu o lançamento da versão traduzida do livro. 
Laura Carvalho, que também prefaciou a obra, afirma que o discurso de austeridade, tratado como uma ferramenta matemática para equilibrar as contas públicas é, antes de mais nada, uma estratégia política.
No Brasil, as receitas de austeridade produziram consequências sociais ainda mais graves, congelamento de investimentos em áreas estratégicas como saúde e educação, explosão do desemprego. Ainda assim, o déficit público segue cavalgando, e parte da população também começa a perceber as contradições desse discurso, quando o governo Temer propõe cortes e congelamentos, mas abre os cofres com isenções a grupos privilegiados para se salvar a própria pele. 
"Esses cortes foram dramáticos, e o que a gente viu foi uma deterioração fiscal. Os déficits se tornaram cada vez maiores, apesar dos cortes cada vez maiores, o que também ocorreu nos vários países que tentaram essa estratégia. Entra-se numa estratégia que supostamente seria rápida, para corrigir um problema fiscal. Começa-se a cortar, a cortar, até cavar o fundo do poço, e as coisas vão piorando cada vez mais", diz a economista. 
Segundo ela, a austeridade acaba se convertendo em estagnação econômica, o que acaba por agravar, ainda mais, as desigualdades sociais no país. "A gente está falando de um país com o nível de desigualdade muito mais alto, com taxas de homicídio e de violência urbana comparáveis a de países em guerra, com uma oligarquia que domina o poder desde 1.500. Ou seja, estamos falando de efeitos amplificados da austeridade, que pode se transformar em caos social." 
Para o economista Pedro Rossi, o livro de Blyth, ensina que "o conceito de austeridade está fundamentado em mitos que não tem nenhuma aderência com a realidade, nem comprovação empírica". Ele também ressaltou que as ideias que contestam o discurso de autoridade vem influenciando políticos como o líder do partido trabalhista inglês Jeremy Corbyn. 
Seguindo o receituário de ajuste, a Inglaterra reduzia o número de policiais no mesmo momento em que cresciam as ameaças de ataques terroristas. "Corbyn dizia que a política de corte de gastos estava tirando a segurança das pessoas. Assim você captura uma parte da classe média que não tem predileção pelos temais mais à esquerda. Ele também afirmava que a austeridade é seletiva e prejudica sempre os mais pobres." 
Rossi, assim como Blyth, destacou que as contas dos governos não guardam qualquer relação com a administração do orçamento doméstico, e diz que, em momentos de crise, os Estados tem que, justamente, ampliar os gastos públicos, e não promover cortes. 
"Um governo não tem nada a ver com orçamento doméstico. Tem que fazer o contrário das famílias na hora da crise", já que conta ferramentas de planejamento e previsões de receitas. "Outra diferença é que, quando a família gasta, esse dinheiro não volta. Já, quando o governo gasta, esse dinheiro circula, gerando efeito multiplicador, e volta na forma de arrecadação." 
"Na hora da crise, as famílias, com razão, cortam gastos, porque têm medo do futuro. Deixa de comprar uma televisão ou ir a um restaurante, porque prefere esperar para ver o que vai acontecer. Se todo mundo deixa de ir ao restaurante, ele quebra, e vai despedir as pessoas, gerando desemprego e queda na renda. A crise atual é também uma crise de demanda. Se todo mundo para de gastar, ao mesmo tempo, quem é que tem recursos para gastar? É o governo", defende o economista.
Já Belluzzo destacou que, em linhas gerais, as concepções de Blyth resgatam os ensinamentos do célebre economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946), que teorizou que os Estado deveriam empreender investimentos públicos que equalizassem e suavizassem as oscilações do mercado, reduzindo, assim, as incertezas. "Blyth explica o óbvio. Se você tem uma situação depressiva e continua cortando, certamente a receita fiscal cai. Não é difícil entender isso."


sexta-feira, 17 de novembro de 2017

“O novo Palácio de Inverno são os Bancos Centrais”

no Outras Palavras

POR ANTONIO NEGRI

171116-Negri

Para Toni Negri, já surgem os movimentos que reverterão a onda conservadora. Mas é preciso sacudir os programas e métodos da esquerda no século 20 — e abraçar a Renda Universal
Entrevista a Roberto Ciccarelli, na Euronomade | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Stelios Faitakis
Quando nos sentamos ao redor da grande mesa de seu apartamento em Paris, Antonio Negri, aos 84, traz nas mãos um monte de anotações, olhar tenso e ar exigente. Está impaciente com a gripe que o atormenta desde que voltou de viagem ao Brasil, onde lançou seus livro Negri no Trópico As Verdades Nômades.
“Não estou conseguindo trabalhar como gostaria”, diz ele, autor, com Michael Hardt, de uma tetralogia sobre as mutações do capitalismo, composta por ImpérioMultidão, Bem Comum e Assembly [este, ainda sem tradução para o português]. Filósofo de renome internacional, está agora trabalhando na segunda parte de sua autobiografia. O título da primeira parte é revelador: Storia di un comunista (História de um comunista).
TEXTO-MEIO
Ele já tem planejado um novo volume a ser escrito com Hardt. Entre o desejo spinozista e a prática marxista, Negri não deixa tempo para reminiscências, e conversamos a partir de uma posição contemporânea. Eis sua entrevista.
171116-Negri
Hoje, uma palavra como “revolução” parece merecer crédito apenas de assessores de imprensa pagos para inventar programas eleitorais. Para você, que acreditou tão intensamente na revolução a ponto de mudar radicalmente seu próprio estilo de vida, que significa essa palavra?
Para mim, significa que uma revolução não é feita – ela faz você. É preciso parar desmistificá-la: A revolução significa viver e construir momentos de inovação e ruptura constantemente. A revolução é uma ontologia, não um evento. Não está incorporada num nome, seja Jesus Cristo, Lênin, Robespierre ou Saint-Just.
A revolução é o desenvolvimento de forças produtivas, dos modos de vida comuns, o desenvolvimento da inteligência coletiva. Nunca pensei em fazer uma revolução e assumir o poder no dia seguinte.
Quando era jovem, pensava que o Comitê dos Trabalhadores de Marghera [em Veneza] organizaria a própria sociedade em torno de um conselho de trabalhadores e seus ideais, a partir do modelo da fábrica. Isso foi nos anos 1970. Hoje as coisas são muito diferentes, e existe outro modo de produção: você pode organizar a sociedade a partir de uma renda básica universal, de novos tipos de trabalho, de novas escolas e formas de associação, de novas formas de lazer, escapando do tédio e do desespero em que vivemos.
Nunca pensei que a revolução seria alguma coisa que leva ao poder, mas antes algo que muda o próprio poder. Significa adquirir poder de outra maneira. Essa é uma diferença fundamental: significa não ser concebida de cima pra baixo, mas a partir de baixo. A revolução acontece quando alguém é capaz de mostrar que, hoje, o Comum está emergindo no modo de produção que informa a vida. A revolução não é mais a “parteira da história”, que tem o fórceps nas mãos – é antes a própria criança.
Em comparação com a linguagem e as imagens correntes, sua abordagem sempre foi não-conformista, para dizer o mínimo. Em geral você recebe uma resposta polida de que está sendo otimista, utópico, visionário. Há na esquerda essa atitude sempre impiedosa, realista, ocupada com o esforço voluntarista de unir, ou de evocar aquilo que falta. Onde você se encontra, dessa perspectiva?
Posso responder narrando certo episódio, um caso bem concreto. Há alguns dias, Michael Hardt apresentou nosso livro Assembly em Londres. Ele teve um encontro com a “Momentum”, uma rede de trabalho de base que apoia o Partido Trabalhista e Jeremy Corbyn. O encontro entre jovens e velhos corbynistas é impressionante, pessoas que viveram 1968 e as lutas dos anos 70 e que hoje são puxadas pelo entusiasmo dos mais jovens, que participaram das lutas altermundistas e do movimento Occupy, as mais recentes dessa geração. Quem falta são as pessoas entre 35 e 60 anos, a geração Blair. É nesses encontros que está sendo formada a nova esquerda, e é nessas condições que estamos conseguindo, hoje, nos encontrar e superar as velhas barreiras da cultura social democrata.
No ano passado falou-se muito de Bernie Sanders, nos Estados Unidos. O que pensa da experiência dele?
Estamos em contato com uma amiga que ocupa posição de liderança no movimento de Sanders. Pelo que ela conta, entendemos que o Partido Democrata norte-americano é uma máquina poderosa que é péssima na gestão de si mesma, não reage ao que é novo e impulsiona os clássicos temas social democratas que não são efetivos.
Neste seu livro, você descreve a emergência extraordinária e dramática do movimento norte-americano Black Lives Matter [Vidas Negras Importam]. O que pensa sobre ele?
Black Lives Matter é o futuro. É a expressão de um movimento sem liderança. Há muitos como ele no mundo, e a esquerda deve compreendê-los em toda a sua amplitude: os movimentos dos indígenas, por exemplo, que lutam pela propriedade comum, oferecem experiências extraordinárias. E da mesma forma os novos movimentos feministas, com sua forte subjetividade.
É a própria forma do capitalismo que revela essas novas forças produtivas e essas experiências de ruptura. Isso não é somente um discurso marxista, é um discurso realista, se queremos finalmente nos libertar do “breve século 20″, escapar dessa agonia de uma vez por todas.
Você sempre fala do ponto de vista dos movimentos. Em Assembly,você não faz reticências à análise da crise desses movimentos, e sugere que não deveríamos subestimar “o poder duradouro daqueles que lutam e são derrotados”. O que quer dizer com isso?
Voltemos ao paradoxo Corbyn: a geração de 68 que se encontra com os jovens de hoje. Basta que lhes deem um sinal, e aqueles que então foram derrotados se levantarão novamente. Porque como parte da luta eles aprenderam a generosidade, a cooperação, e conseguiram uma vitória pela solidariedade. Esses são “vícios” que você adquire um dia, e não consegue mais livrar-se deles.
Se alguém pudesse traçar uma história foucaultiana dos movimentos na Itália, seria possível entender como muitos “cínicos”, militantes comunistas coléricos, são encontrados por todo lado. Falo de pessoas que cresceram com o “desejo de saber” e de ação revolucionária, e essa foi a maneira como aprenderam a amar aos outros e à própria vida.
Você escreve que, de 2001 pra cá, os movimentos têm reivindicado um novo começo para a esquerda, mas têm mostrado “pobreza organizacional” e não cresceram ao nível do problema que apresentaram. Não há risco de repetirem os velhos fracassos sem avançar um milímetro sequer?
Precisamos, de uma vez por todas, livrar-nos da ilusão de que alguma outra coisa pode surgir dos movimentos. Os movimentos quase sempre expressam o fim de um discurso – não produzem um evento, antes marcam sua conclusão. Sessenta e oito não foi um evento específico, mas uma construção feita no tempo. Porque antes houve os anos 60, houve uma massa política em nível global durante algum tempo. Na Itália, esse tipo de política foi poderosa o suficiente para durar 10 anos, e foi até o movimento de 1977. Os movimentos hoje não entendem que precisam construir, não apenas colher os frutos.
Tenho ouvido companheiros que vêm do movimento antiglobalização, ou das lutas universitárias, dizendo que depois das manifestações era tempo de criar uma organização. Mas se ainda não tivessem criado antes delas, nunca teriam conseguido realizá-las. Teriam sido apenas identificados pela polícia como aqueles a ser derrotados. Precisamos acabar com essa noção de que o movimento depois vai formar o partido, a coalisão, ter alguma forma de resultado. Os movimentos são eles próprios a força, a essa força será reconhecida.
Os movimentos são a estratégia. Eles não nasceram de um alento do espírito, ou por um mistério que de repente se incorpora à sociedade. Eles são construídos concretamente, passo a passo, junto com milhares de outras pessoas, cada um começando de si próprio. A política é construída em conjunto.
Os sovietes são um modelo para pensarmos, nascidos de um modo de produção especifico, reunindo forças produtivas e sociais. Hoje, num mundo completamente diferente, continuam a ser um instrumento poderoso.
Os sovietes ainda são relevantes?
Hoje temos de construir instituições não-governamentais e não-corporativas. Elas funcionariam tanto na gestão da água como bem comum como na batalha contra a violência policial na França ou nos Estados Unidos, nas grandes lutas indígenas da América Latina e nas lutas feministas. A invenção de uma nova estrutura política pode nascer apenas da conexão entre essas forças. Uma instituição não é criada por um soberano, mas pela necessidade de estar juntos, de produzir e viver juntos.
Essa era a ideia básica dos sovietes: organizar o modo como existimos juntos numa sociedade industrial, onde a cooperação social está num nível avançado e tem capacidade de exercer o poder por meio da construção política de uma força produtiva.
No livro, você usa uma expressão interessante para descrever essa construção: “o empreendedorismo de multidão”. O que isso significa?
Estão nos atacando por causa desse conceito em algumas críticas no mundo anglo-saxão. Empreender, dizem eles, não pode ser separado de neoliberalismo. Mas penso que, hoje, a relação entre empreendedorismo e instituição – do verbo latino instituere – é algo que poderia ser estudado em toda a sua profundidade. O trabalho é sempre um istitutio. Mas atualmente essa capacidade está sendo destruída ou escondida sob um falso conceito de liberdade.
Criar um empreendimento significa deixar a força de trabalho livre para organizar-se. Esse é o discurso político que o capitalismo está roubando dos trabalhadores. Acreditamos porém que se começa a fazer política quando a força de trabalho ganha capacidade de organizar-se produtivamente.
E tudo isso deve ser alcançado por meio de um partido? É isso que você sustenta?
Absolutamente não. Hoje, a autonomia da política não é mais leninista – ela é o populismo. Em cada tempo, a autonomia da política é qualificada de um modo, se o desejo é de evitar falar dela em termos gerais. E atualmente a autonomia da política foi reduzida a um jogo de linguagem que usa categorias institucionais, com a intenção de construir um povo submisso.
Estou lendo sobre o que está acontecendo na Itália, onde a legislação eleitoral tornou-se há muito tempo o locus central desse uso discriminatório da política. É manipulação pura e simples das pessoas e do consenso geral.
Em jogo encontra-se não apenas um critério mínimo de representação, que penso estar cada vez mais em crise, mas algo mais profundo: O objetivo é impedir que as pessoas façam experimentos com novas formas institucionais e produtivas de autogovernar-se.
A social democracia está em crise, que muita gente acredita poder ser superada através de uma “versão de esquerda” do populismo. Você pensa que o Podemos ou o trabalhismo de Corbyn podem ser interpretados dessa maneira?
O populismo de esquerda é um populismo de “substituição”. Duvido que essa lógica, teorizada pelo filósofo argentino Ernesto Laclau, possa algum dia inventar fórmulas diferentes das do “socialismo nacional”. Na Espanha houve um grande debate dentro do Podemos sobre essa questão. E a tendência nacional-populista venceu.
A controvérsia foi com os movimentos, em torno do papel do partido em relação a eles: se deveria apoiar os movimentos e criar uma coalizão ou ser um partido clássico capaz de encontrar seus eleitores. Venceu o populismo de “substituição”, não um projeto de reforma da esquerda.
Na outra ponta do espectro do populismo, Alice Weidel, do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), representa uma reversão sensacional das posições dos movimentos: lésbica, casada com uma cidadã do Sri Lanka, trabalhou para a Goldman Sachs e a Allianz, ao mesmo tempo apoia políticas xenofóbicas e islamofóbicas e é contra o casamento de pessoas do mesmo sexo. O que essa figura representa?
Representa o vazio que se reproduz a si mesmo. Como outras figuras, ela não é um sujeito, mas um produto. Tal produto nasce apelando ao pior dos instintos e chega ao ponto da contradição mais absurda com o que realmente acontece em sua própria vida. É a isso que leva o populismo, em sua essência: criar um povo que é inclusive contra a própria realidade. Essa contradição está ligada ao conceito de nação, e depois, na ordem, ao de pertencimento regional e familiar. Articulam-se dessa maneira formas de propriedade e de fronteira. O grande risco é o da corrupção que emerge daí. Vi no decorrer da minha vida muita gente fazer coisas terríveis em nome da família, incluindo as piores formas de corrupção. Por trás dessas formas de filiação há apenas barbárie e tribalismo.
Quais os outros tipos de populismo?
Trump é um exemplo claríssimo. Macron, na França, é parecido com ele à sua própria maneira, embora se comporte como um tecnocrata que leva direita e esquerda em direção ao centro, de acordo com o projeto de Juppé.
À esquerda e à direita, encontramos vários populismos “renovados”. No grupo Mediaset, no caso de Berlusconi; online no caso do Movimento 5 Estrelas. Melenchon, na França, distingue entre a soberania popular – a da Revolução de 1789 – e o soberanismo, que seria um conceito de direita; entre o ideal de “nação” e o de “nacionalismo como etnicismo”.
Nesse e em outros casos, tais como entre os bolivarianos da América do Sul, as pessoas nunca refletem suficientemente sobre o fato evidente de que são os setores dominantes e os ricos que conduzem o processo e falam em nome dos muitos.
É possível inclusive que essa ideia de “populismo” produza uma reviravolta contra os movimentos, particularmente nos de imigrantes, amplificando um “senso comum” xenófobo e racista. Um risco que se pode entrever também no trabalhismo inglês ou no Partido de Esquerda [Die Linke] alemão. Como explicar essa ambivalência?
Há duas ideias que jamais seremos capazes de separar da social democracia herdeira do “século breve”: as de propriedade e de fronteira. São uma bactéria mortal, hoje enraizada no coração da Europa, quando se constroem muros ou quando se movem as fronteiras através do Mediterrâneo, condenando imigrantes à morte nos campos da Líbia.
Rousseau dizia que o maior criminoso já nascido foi aquele que disse, antes de todos: “Isso é meu”. Mas houve um criminoso ainda maior, Rômulo, que disse: “Essa é minha fronteira”. São a mesma coisa, propriedade e fronteira.
A social democracia amadureceu essa cultura depois de 1848, com a revolução romântica. Estou pensando em Mazzini. Ele foi, desse ponto de vista, o primeiro democrata social – apoiou a República Popular e a centralidade da nação, dois elementos que sempre exibiram uma síntese reacionária, popular-nacionalista. A segunda Internacional Socialista foi atravessada por esse espírito contra o internacionalismo comunal e tentou combinar nacionalismo e revolução.
Por outro lado, o bolchevismo foi formidável do ponto de vista da revolução mundial porque unificou o comunismo, o anti-imperialismo e o anticolonialismo. A tragédia do anticolonialismo foi o retorno do nacionalismo.
Isso levou a um grande erro, ainda hoje recorrente nas decadentes políticas centristas: pensar que a aliança do proletariado com as classes médias e progressistas é um passo estratégico, e não meramente tático. Os vários tipos de populismo estão repetindo atualmente o mesmo erro: pensam que o conceito de nação anula o de classe. É um problema que ainda temos de confrontar.
Ouvimos cada vez mais frequentemente que a alternativa ao neoliberalismo e a crise são o trabalho, o pleno emprego, o keynesianismo, as nacionalizações. Isso é um solução?
Essas são propostas que continuam presas à agonia do “século breve”, em que ainda nos encontramos. Estamos até agora discutindo alternativas que já se mostraram ineficazes: formas de socialismo nacional e de Estado, e um liberalismo corporativo e privado. Continuamos reféns da distinção entre público e privado, e não enxergamos tudo o que se passou por baixo e atravessou o século 20 até hoje. E o que aconteceu?
A derrota da ideologia do privado e do público, por causa da transformação do modo de produção. Há um novo agrupamento das forças produtivas, determinado pela transformação do trabalho, que o tornou comum e singularizado, removendo-o tanto da esfera privada quanto da pública. É uma força de trabalho que funciona apenas cooperativamente. Quer dizer, de maneira cada vez mais comum. O problema hoje é a organização da produção social e a distribuição de renda, não o pleno emprego.
A distinção entre o trabalho/emprego e a nova capacidade laboral e cooperativa é o elemento central do debate, e envolve consequências radicais na esfera fiscal, assim como políticas sociais e industriais profundamente diferentes daquelas do passado.
A esquerda e os sindicatos sustentam que um Estado “inovador” será capaz de criar tecnologias revolucionárias na green economy, nas telecomunicações, na nanotecnologia ou na área farmacêutica. As novas instituições de que fala no livro vão para além do Estado; qual a relação delas com essa categoria que volta a ter sucesso?
Que venha esse Estado, desejo que tenha boa sorte. Contudo, permita-me notar que esses setores se encontram no mercado, organizados como mecanismos para extrair valor socialmente produzido, e como tais são protegidos, ainda que precariamente, pelo Estado.
Em Assembly, nós nos perguntamos se essas maravilhas tecnológicas podem estar sujeitas a escolhas e decisões democráticas. Respondemos que não. Não até que se reconheça o sistema de exploração extrativo e proprietário (patentes, rendas financeiras, organizações monetárias) no qual operam essas indústrias; e até que esse reconhecimento seja seguido de um processo democrático de reapropriação dos bens comuns.
Agora é o momento de reapropriação do comum por parte de seus produtores, e de reorientação democrática da gestão do comum: não é o Estado, mas os produtores quem têm de dizer para que servem essas tecnologias, que benefícios e que desvantagens acarretam.
A força de trabalho está cada vez mais organizada por plataformas digitais: Uber, Deliveroo ou Task Rabbit. O poder dos “senhores do silício” é tão amplo que leva a acreditar que o algoritmo transmite uma ideia popular e transparente de democracia. A revolução digital conduz a isso?
Nessas plataformas, os trabalhadores não pensam desfrutar de um maior grau de democracia! E lutam e resistem a uma exploração bestial. É importante, todavia, que se coloque o problema: é possível reverter o funcionamento do algoritmo de comando das plataformas digitais? Longe de imaginar reversões utópicas das plataformas digitais em circuitos de cooperação, só será possível dominar esses monstros mediante o desmantelamento das condições políticas nas quais o algoritmo é imposto: as do direito privado e sua legitimação estatal.
Mark Zuckergerg do Facebook admitiu a importância da renda básica. Será o Vale do Silício a realizar aquela que é definida como uma utopia concreta?
Zuckerberg nos obriga a estudar as maneiras por meio das quais a tecnologia e a atividade laboral se entretecem na produção e no uso das mídias sociais. É lá, naquele espaço, que paradoxalmente torna-se possível reconstruir a democracia. Creio que é nesse espaço que vai ser reaberta a busca dos revolucionários: o espaço que, mutatis mutandis, há 150 anos Marx analisou no primeiro volume de O Capital. Lá, onde o homem se defronta com a exploração de novas máquinas e de novos patrões, é que renasce a classe e que a revolução se repropõe.
Então você está convencido de que somente uma renda básica nos salvará?
Não, é óbvio que em si mesma ela não pode resolver o problema. É o elemento preliminar, e também central, para a reorganização social baseada no Comum e a superação das categorias de propriedade privada e pública. É no terreno financeiro que é preciso confrontar-se. O problema é o comando das finanças. O Palácio de Inverno hoje são os bancos centrais.