Márcio Carvalho C. Ferreira
Introdução
A
influência africana no processo de formação da cultura afro-brasileira começou
a ser delineada a partir do tráfico negreiro. Quando milhões de africanos
"deixaram" forçadamente o continente africano e despontarem no Brasil
para exercer o trabalho compulsório.
O
escravo africano era um elemento de suma importância no campo econômico do
período colonial sendo considerado "as mãos e os pés dos senhores de
engenho porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar
fazenda, nem ter engenho corrente" (ANTONIL, 1982, p.89). Contudo, a
contribuição africana no período colonial foi muito além do campo econômico,
uma vez que, os escravos souberem reviver suas culturas de origem e recriarem
novas práticas culturais através do contato com outras culturas.
É
importante salientar que não houve uma homogeneidade cultural praticada pelos
negros africanos, visto que imperava uma heterogeneidade favorecida pelas
origens distintas dos africanos, que apesar de oriundos do continente africano,
geralmente os escravos apresentava uma prática cultural diferenciada em alguns
aspectos devido à região que pertencia, pois a África caracteriza-se em um continente
dividido em países com línguas e culturas diversas.
Além
da prática cultural diferenciada ressaltada, os africanos, ainda, incorporaram
algumas práticas europeias e indígenas, além de, influenciá-los culturalmente. O
intercâmbio cultural entre os elementos citados contribuiu para uma formação
cultural afro - brasileira híbrida e bastante peculiar.
Desenvolvimento
Ao
longo do período colonial e monárquico brasileiro foi grande o contingente de
escravos africanos no Brasil, visto que, constituía a maior mão - de - obra do
período. A contribuição desses escravos foi além da participação econômica, uma
vez que, foram inserindo suas práticas, seus costumes e seus rituais religiosos
na sociedade Brasileira contribuindo, dessa forma para uma formação cultural peculiar
no Brasil.
Importante,
ressaltar que as práticas desses escravos africanos eram diferenciadas, pois
eles eram oriundos de pontos diferentes do continente africano. De acordo com
VAINFAS (2001 p. 66), durante o período colonial, quase nada se sabia sobre a
origem étnica dos africanos traficados para o Brasil. Porém, ao longo do
período passou-se a designá-los a partir da região ou porto de embarque, ou
seja, das áreas de procedência.
Apesar
da origem diversa dos escravos africanos, dois grupos se destacaram no Brasil:
os Bantos e os Sudaneses. Os bantos foram assim, classificados devido à
relativa unidade linguística dos africanos oriundos de Angola, Congo e
Moçambique.
Vainfas
(2001, p. 67) destaca que:
Os
povos bantos predominaram entre os escravos traficados para o Brasil desde o
século XVII, concentrando-se na região sudeste, mas espalhados por toda a
parte, inclusive na Bahia. (...) Os Bantos oriundos do Congo eram chamados de
congo, muxicongo , loango, cabina, monjolo, ao passo que os de Angola o eram de
massangana, cassange, loanda, rebolo, cabundá, quissamã, embaca, benguela.
Essa diversidade fez com os Bantos
apresentassem uma especificidade cultural, notadamente na linguística, nos
costumes e, principalmente, no campo religioso, que mesclou aspectos do
cristianismo com suas tradições religiosas.
De
acordo com Kavinajé (2009, p. 3):
Os
bantos, depois de um primeiro período de autonomia religiosa, que se conhece
através de documentos históricos, assistiram à transformação de seus cultos.
Por um lado, esses deram lugar à macumba; por outro, amoldaram-se às regras dos
candomblés nagôs, não se distinguindo deles senão por uma maior tolerância. Os
cultos bantos em gradativo declínio acolheram os espíritos dos índios, o que
iria levar ao surgimento de um "candomblé de caboclos", e adotaram
cantos em língua portuguesa, ao passo que os candomblés nagôs só usam cantos em
língua africana.
Já
os sudaneses provenientes da África ocidental, Sudão e da Costa da Guiné,
contribuíram culturalmente para a formação de uma identidade afro-brasileira,
visto que muito de suas práticas culturais imperam atualmente como, por
exemplo, o candomblé, prática religiosa dos escravos sudaneses.
No
Brasil estes grupos: bantos e sudaneses misturaram-se resultando em cruzamentos
biológicos, culturais e religiosos.
De
acordo com Paiva (2001, p. 36):
Misturavam-se
informações, assim como etnias, tradições e práticas culturais. Novas cores
eram forjadas pela sociedade colonial e por ela apropriadas para designar
grupos diferentes de pessoas, para indicar hierarquização das relações sociais,
para impor a diferença dentro de um mundo cada vez mais mestiço. Da cor da pele
à dos panos que a escondia ou a valorizava até a pluralidade multicor das ruas
coloniais, reflexo de conhecimentos migrantes, aplicados à matéria vegetal,
mineral, animal e cultural.
Nota-se
que o cruzamento cultural entre estes povos africanos propiciou a construção de
uma identidade cultural brasileira, ou cultura afro-brasileira. Uma vez que,
eles não temeram em "inventar códigos de comportamentos e de recriarem práticas
de sociabilidade e culturais" (Paiva 2001, p. 23). Assim, este cruzamento
foi resultado de um longo processo que propiciou uma riqueza cultural peculiar
ao Brasil.
De
acordo com Paiva (2001, p. 27), pode-se caracterizar este cruzamento cultural
como resultante de uma aproximação entre universos geograficamente afastados,
em hibridismos e em impermeabilidades, em (re) apropriações, em adaptações e em
sobreposição de representações e de práticas culturais.
Assim,
a influência africana foi se tornando visível em vários seguimentos da
sociedade colonial, tais como culinária, práticas religiosas, danças, dentre
outros valores culturais que foram incorporados pela população brasileira.
Sobre
a influência africana Freire (2001, p. 343) destaca que:
Quantas
"mães-pretas", amas de leite, negras cozinheiras e quitandeiras
influenciaram crianças e adultos brancos (negros e mestiços também), no campo e
nas áreas urbanas, com suas histórias, com suas memórias, com suas práticas
religiosas, seus hábitos e seus conhecimentos técnicos? Medos, verdades,
cuidados, forma de organização social e sentimentos, senso do que é certo e do
que é errado, valores culturais, escolhas gastronômicas, indumentárias e
linguagem, tudo isso conformou-se no contato cotidiano desenvolvido entre
brancos, negros, indígenas e mestiços na Colônia.
Ainda
de acordo com Freyre (2001, p. 346), a nossa herança cultural africana é
visível no jeito de andar e no falar do brasileiro, pois:
Na
ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos
sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em
tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da
influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar.
Que nos deu de comer, ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da negra
velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da
mulata que nos tirou o primeiro bicho- de- pé de uma coceira tão boa. De que
nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama- de- vento, a
primeira sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro
companheiro de brinquedo. (Freyre (2001, p. 348)
Observa-se
que de acordo com a citação acima a influência africana foi além da cozinha e
da mesa, chegando até a cama, pois era comum a iniciação sexual do
"senhorzinho" branco ocorrer com uma escrava. Comum também era a
prática de feitiços sexuais e afrodisíacos pelos escravos, pois foi na
"perícia e no preparo de feitiços sexuais e afrodisíacos que deu tanto
prestigio a escravos macumbeiros juntos a senhores brancos já velhos e
gastos." Freyre (2001, p. 343),
A
influência do escravo negro na vida sexual da família brasileira é destacada por,
Freyre (2001, p. 381), assim:
(...)
O grosso das crenças e práticas da magia sexual que se desenvolveram no Brasil
foram coloridas pelo intenso misticismo do negro; algumas trazidas por ele da
África, outras africanas apenas na técnica, servindo-se de bichos e ervas
indígenas. Nenhuma mais característica que a feitiçaria do sapo para apressar a
realização de casamentos demorados. O sapo tornou-se também, na magia sexual
afro-brasileira, o protetor da mulher infiel que, para enganar o marido, basta
tomar uma agulha enfiada em retrós verde, fazer com ela uma cruz no rosto do indivíduo
adormecido e coser depois os olhos do sapo.
Além
da influência na vida sexual destacado no clássico Casa Grande e Senzala,
merecem ênfase as canções que foram modificadas pelas negras.
Também
as canções de berço portuguesas, modificou-se na boca da ama negra, alterando
nelas palavras; adaptando-as às condições regionais; ligando-as às crenças dos
índios e às suas. Assim a velha canção "escuta, escuta menino" aqui
amoleceu-se em "durma, durma, meu filhinho", passando Belém de
"fonte" portuguesa, a "riacho" brasileiro. Freyre (2001, p.
380)
Observa-se
que as amas apropriaram-se das canções de origem portuguesa e as recriaram,
dando um toque especial, o toque africano. Isso é perceptível na
"infantilização" das palavras das canções.
"A
linguagem infantil também aqui se amoleceu ao contato da criança com a ama
negra. Algumas palavras, ainda hoje duras ou acres quando pronunciadas pelos
portugueses, se amaciaram no Brasil por influência da boca africana. Da boca
africana aliada ao clima - outro corruptor das línguas europeias, na fervura
por que passaram na América tropical e subtropical. Freyre (2001, p. 382)
Deste
modo, foi se delineando a língua falada no Brasil, a língua portuguesa que foi
amplamente influenciada pelo modo de falar dos escravos africanos.
A
ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida:
machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a
boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que no
norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo. Sem rr
nem ss; as sílabas finas moles; palavras que só faltam desmanchar-se na boca da
gente. A linguagem infantil brasileira, e mesmo a portuguesa, tem um sabor
quase africano: cacá, bumbum, tentén, nenén, tatá, papá, papapo, lili, mimi
(...) Amolecimento que se deu em grande parte pela ação da ama negra junto à
criança; do escravo preto junto ao filho do senhor branco. Os nomes próprios
foram dos que mais se amaciaram, perdendo a solenidade, dissolvendo-se
deliciosamente na boca dos escravos. Freyre (2001, p. 382)
Nota-se
que o intercâmbio cultural entre os negros africanos, indígenas e portugueses
foram intensos, notadamente na língua, costumes, modos, comidas, forma de
pensar e práticas religiosas. De acordo com Paiva (2001, p. 185) As trocas
culturais e os contatos entre povos de origem muito diversa é algo que, então,
fazia parte do dia - a – dia colonial, desde a chegada dos portugueses. Isto,
porque, era ampla a vivência cultural da população negra no Brasil colonial,
refletindo amplamente na sociedade do período.
Deste
intercâmbio cultural formou-se a cultura afro-brasileira, sendo visível à
influência africana em todos os aspectos da sociedade brasileira, não sendo
possível desvincular a cultura brasileira da africana, da indígena ou da europeia.
Para
Paiva (2001, p. 39) a formação cultural não se deu de forma linear, uniforme e
harmônica. Muitos foram os conflitos, as adaptações e os arranjos ao longo do
período.
É
evidente que não estou sugerindo uma formação linear desse universo cultural,
nem estou emprestando-lhe uma harmonia, que, de fato, pouco existiu. Tanto seu
processo de formação quanto a convivência no interior dele se deram (e se dão)
de maneira conflituosa na maioria das vezes, embora haja, também, adaptações
constantes, arranjos e acordos que visam a sua preservação. Paiva (2001, p. 41)
A
preservação dessas práticas culturais ocorreu através de aproximações e
afastamentos conforme ideia defendida por Paiva (2001, p. 40):
A
conformação e a preservação do universo cultural dão-se, então, através das
aproximações e afastamentos, das interseções, da intervenção de espaços
individuais e coletivos, privados e comuns, que envolvem dimensões do viver tão
diversas quanto à do material, da utensilagem e das técnicas; dos costumes e
tradições, das práticas e das representações culturais; da mitologia e da
religião; do físico e concreto, do psicológico e imaginário; da linguagem e das
escritas; da dominação, da resistência e do transito entre elas: da
temporalidade e da espacialidade; das continuidades e das descontinuidades; da
memória e da história. Tudo implicado com os campos da política e do econômico,
provocando mutuamente contínuas reordenações e construções sociais.
Desse
modo, observa-se a formação e a preservação de uma identidade cultural,
bastante plural devido às influências: europeia, africana e indígena,
favorecendo uma riqueza cultural bastante peculiar. Estas peculiaridades
multiculturais manifestaram-se, principalmente, na língua, culinária, música,
dança, religião, dentre outros.
Conclusão
Conclui-se
que os africanos tiveram um papel importante no processo de formação cultural
brasileiro, pois através da inserção de suas práticas e seus costumes na
sociedade brasileira contribuíram para a formação de uma identidade cultural
afro - brasileira.
REFERÊNCIAS
ANTONIL,
André João. Cultura e Opulência do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia: São Paulo:
EDUSP, 1982.
FREYRE,
Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 43 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
PAIVA,
Eduardo França. Escravidão e Universo Cultural na Colônia. Minas Gerais: UFMG,
2001.
VAINFAS,
Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva,
2001.
KAVINAFÉ,
Tata Kisaba: O sacrifício do povo africano cultura Afro - Americana. Acesso em
28 jan. 2009.
Márcio
de Carvalho C. Ferreira, funcionário público, Formado em História -
licenciatura plena, pelo Instituto Superior de Educação (Ceiva) Januária MG,
Pós graduado em História e cultura Afro-Brasileira, pela Finon. Atualmente
cursa os cursos de pós graduação de Educação ambiental e Docência do ensino
superior
Fonte:
Geledés