por Rui Abreu
2024
terminou aquecido pela prisão de um general golpista de quatro estrelas e a
discussão política sobre o pacote de corte de gastos. Também o mercado fez
saber através de seus braços falantes (mídia corporativa) que sua tolerância de
início de mandato (ampliado pela tentativa de golpe neofascista) tinha
terminado. Canais de TV, jornais e portais vocalizaram seus patrões dando
continuação ao caminho golpista começado em 2016, exigindo agora a um líder
identificado com a esquerda a prossecução de políticas neoliberais. Haddad
alimentou a voracidade dos vampiros apresentando um pacote que castiga a
população mais pobre, a base social e política do presidente Lula, o que
motivou forte contestação na esquerda e não satisfez o nunca saciável mercado.
Muito menos que uma alusão à obra
crítica de Lénine sobre os mencheviques, este nanocontributo de título
provocador atenta-se ao momento de meio de mandato de quatro anos da governação
Lula, seus acertos, equívocos e o sentido da governação.
Recordar
é entender
Por falta de engenho ou porque o
percurso da história não lhes confere atualidade, são raros os discursos ou
citações que têm a capacidade de nos revisitar, mas há uma que tem ecoado na
sociedade brasileira desde que foi proferida em 31 de Agosto de 2016. Refiro-me
obviamente ao discurso pós impeachment de Dilma Roussef em que uma passagem em
particular tem sido nota de rodapé da história recente do Brasil: “O golpe é
contra o povo e contra a nação.”.
O golpe começado em 2016 e que
continua até hoje visa transferir renda do trabalho para o capital, ancorando
constitucional e legislativamente um modelo cada vez mais neoliberal. Após três
mandatos e meio de governações petistas, as elites nacionais e internacionais
decidiram que era hora de acelerar a exploração sobre o povo brasileiro,
colocando trilhões de reais cativados a políticas sociais, empresas públicas e
salários à disposição dos insatisfeitos mercados. A drenagem de recursos da
economia brasileira para os bilionários atingia um novo patamar. O banquete dos
vampiros tinha mais uma vez lugar.
Logo após o impeachment a governação
Temer, levando o golpismo à
prática, balizou com a P.E.C. do Teto de
Gastos a capacidade do estado executar programas sociais, prover serviços e
realizar investimento público. Continuou com a reforma trabalhista que
desequilibrou ainda mais as relações de produção criando um mar de precariedade
onde horários, salários, planos de carreira e vínculos são cilindrados,
disponibilizando para o capital mais uma fatia de riqueza que cabia aos/às
trabalhadores/as. Também a reforma do ensino médio abriu mais mercado na
educação e pavimentou a disputa pelo futuro educativo e social, em que a
extrema direita é o porta estandarte do atraso, enquanto o capital ocupa mais
espaço num setor estratégico da economia e sociedade. Iniciou a reforma da
previdência que foi aprovada em novembro de 2019, já no governo Bolsonaro.
Trabalhar com menos condições por mais tempo foram metas perseguidas e
alcançadas pelos governos golpistas. Atrelou o preço dos combustíveis ao
mercado internacional garantindo lucros astronômicos para os acionistas à conta do esforço do povo brasileiro.
Paulo Guedes dinamitou o
funcionalismo público e promoveu a pobreza generalizada da população. A
privatização de empresas de setores estratégicos acelerou. Petrobras,
Eletrobras e outras empresas de energia engrandeceram o menu dos bilionários,
também empresas de abastecimento de água, tratamento de esgotos e de outros
serviços públicos foram para as mãos de privados. A santa aliança entre o agro
extrativismo e a finança ganhou corpo em recursos públicos cada vez maiores, em
lucros cada vez mais dilatados. De 2016 a 2021 a participação dos salários no
P.I.B. caiu 13%, passando de 35% para 31% enquanto a participação dos lucros
subia de 32,3% para 37,5%.
Enquanto o povo empobrecia
aceleradamente, devolvendo o Brasil ao mapa da fome, chegando metade da sua
população a um quadro de algum nível de insegurança alimentar, os lucros da
banca e agronegócio iam às alturas, os bilionários brasileiros e outros entraram
ou subiram na lista Forbes, a Petrobras foi a empresa que mais
dividendos distribuiu aos seus acionistas no mundo inteiro. Os vampiros
refastelaram-se!
Mas nenhuma destas medidas seria
novidade, afinal o golpe promovido pelos bilionários nacionais e internacionais
“...era contra o povo, contra a nação.”. Os atores e atrizes também eram
sobejamente conhecidas assim como a arquitetura institucional golpista (com
supremo, com tudo), a mesma que Bolsonaro viria a questionar tentando um golpe
dentro do golpe. E foi num quadro de instabilidade econômica para quem trabalha
e institucional para quem dirige que chegamos às eleições de 2022, desta feita
sem a prisão injustificada de Lula. A esperança de um povo esmagado pareceu
voltar com a liberdade de Lula disputar as eleições. Era preciso fazer o L para
mudar o rumo entreguista e de empobrecimento da população que a economia
tomava, era preciso fazer o L para conter o rumo fascista que a política
tomava. E o povo esperançado em derrotar o golpe fez o L.
Dois para a frente, dois para trás
Eleito numa frente ampla, Lula
personalizava o alento de mudança de vida do povo que os governos golpistas
tinham tornado mais difícil. Destacavam-se de uma campanha meio pastosa
(própria de frente ampla) propostas como combater a fome, revogar o teto de
gastos, isenção de imposto de renda para quem ganha até 5 mil reais, acabar com
o P.P.I. nos combustíveis, propôr nova legislação trabalhista e tributária; no
discurso era ainda defendida a recuperação do controlo público de empresas
estratégicas e a ampliação do Bolsa Família com mais 150 reais por filho/a. A
estes objetivos viriam a juntar-se duas exigências que as notícias de Janeiro
de 2023 demandavam: extirpar o golpe neofascista e terminar o multissecular
genocídio dos povos originários. Sobre este último havia muitas esperanças com
a criação do Ministério dos Povos Originários, promessa eleitoral cumprida
formalmente pela presidência mas que no seu desempenho tem deixado muito a
desejar, repetindo-se os casos de abuso, retirada de terras e morte dos povos
originários sem um envolvimento maior da ministra. Já sobre a tentativa de
golpe, a escolha de Múcio para ministro da defesa revelou ser um passo no
sentido de mais uma anistia política e judicial dos golpistas fardados do
costume. Dois maus ministérios com maus resultados.
No campo dos acertos destacam-se a
recuperação de vários programas sociais como o Auxílio Gás e Farmácia Popular e
a ampliação de outros como no caso do Bolsa Família. Este aumento efetivo da
capacidade de consumo das famílias mitigou o problema alimentar, retirando mais
de dez milhões de pessoas da situação de insegurança alimentar grave,
encaminhando o Brasil para fora do mapa da fome. A condução dessas políticas só
foi possível num quadro de apaziguamento fiscal em que o deficit foi
desconsiderado (2,2% oficial em 2023) e a P.E.C. de transição de R$ 145 bilhões
foi retirada do mesmo cálculo. Os salários reais cresceram pouco mas cresceram
e o P.I.B. vai atingir perto de 3,5% em 2024. É necessário realçar que estes
acertos só foram alcançados fora da lógica da austeridade fiscal. Se somarmos a
P.E.C. de transição mais o deficit oficial de 2023, daria um deficit total de
3,5% aproximadamente, o que é substantivamente diferente do objetivo de deficit
zero para 2024 inscrito no Arcabouço Fiscal.
Dentro das muitas insuficiências
governativas provocadas pela relação de forças e pela falta de iniciativa para
a alterar, o Arcabouço Fiscal revelou-se a pior política econômica que o
governo desenvolveu neste mandato. Nele arquitetou-se um novo teto de gastos
que de acordo com o ministro Haddad será incompatível com os compromissos
sociais: os assumidos constitucionalmente com a educação e saúde mas também as
políticas de subsídios e apoios sociais. Para defender as metas traçadas no
Arcabouço Fiscal para 2024, o Ministério da Fazenda apresentou um pacote misto
em que a proposta de isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 mil
reais apareceu como a grande novidade positiva fez-se acompanhar de vários
cortes na área social: B.P.C., Abono Salarial e a Valorização do Salário
Mínimo. Tudo em nome do deficit zero inscrito pelo ministro Haddad no Arcabouço
Fiscal e da visão neoliberal que sustenta uma economia que tem o aumento da
desigualdade como objetivo.
Sobre o que seria a segunda pior
iniciativa legislativa do governo, só ficando atrás da que a originou
(Arcabouço Fiscal), o pacote de corte de gastos sofreu imediatamente as mais
pesadas críticas tanto à esquerda como à direita. A extrema direita serviu-se
hipocritamente do bom trânsito junto a organizações de pessoas com necessidades
especiais para defender a continuação dos critérios de acesso ao B.P.C.
enquanto a esquerda alertava sobre o custo social e político de medidas que
castigam a base social de apoio do governo. Também a economia como um todo fica
perigada com tais medidas, retirando do ciclo econômico na sua parte
consumidora milhões de pessoas que agora estão um pouco protegidas pelos apoios
e subsídios estatais. O Arcabouço Fiscal e suas ramificações começam já a
destruir o que economicamente foi conseguido nos dois primeiros anos de
governação e a longo prazo é instrumento fundamental para a consolidação do
golpe de 2016.
A continuidade do golpe neoliberal é a
defesa contra o golpe neofascista?
O pacote de corte de gastos trouxe
uma discussão à esquerda que parece querer persistir por 2025 e que
condicionará a conjuntura política e eleitoral até 2026. Em nome de conter o
neofascismo deve o governo ceder aos bilionários tentando isolar a extrema
direita? Deve o governo dar continuidade ao golpe, inscrevendo o neoliberalismo
ainda mais na legislação, tentando o apoio das elites na não recondução do
neofascismo ao poder?
Em
bom abono da verdade, o sistema que se consolidou politica e ideologicamente no
Brasil nas últimas décadas é neoliberal. O neoliberalismo está ancorado cada
vez mais na legislação brasileira e a conduta dos poderes legislativo e
judicial na defesa dos interesses dos bilionários é insofismável, já a do
executivo dá sinais contraditórios. Mesmo elegendo um governo que fosse todo de
esquerda seria difícil mudar o viés econômico da governação. Mas um governo que
procure melhorar as condições de vida da classe trabalhadora tem que
inevitavelmente confrontar os limites do sistema, mesmo que no final só sejam
aprovadas no congresso medidas liberais. Só falando verdade se pode disputar a
opinião da maioria social a conquistar. Só assim pode haver alteração da
relação de forças.
Infelizmente o caminho seguido por
Haddad e por inerência do governo Lula é o da desistência da disputa política,
tendo o ministro da fazenda mentido desbragadamente ao povo brasileiro na
apresentação do pacote de corte gastos. O pacote é mau e traz cortes imediatos
para o povo (de tal forma que o presidente Lula vetou parte do projeto após
contestação), já as melhorias só este ano serão debatidas no congresso e caso
sejam aprovadas (o que não acredito) entrarão em vigor apenas em 2026.
O powerpoint era inequívoco nos
cortes a efetuar. Gráficos ilustravam quanto o salário mínimo iria perder na
sua valorização, quadros afirmavam o aperto nas regras de acesso aos
benefícios. Afinal, o ministro Haddad preferiu falar com a Faria Lima, foi uma
apresentação feita para o mercado. No mesmo sentido, o presidente Lula fez uma
comunicação nacional apresentando Galípolo como o novo presidente do Banco
Central em que garantiu que seria a presidência com mais autonomia que o Banco
Central já teve. Claramente o presidente fala para o mercado tentando apaziguar
o apetite bilionário dos vampiros. A estratégia de fulanização da discussão
sobre o Banco Central, colocando Campos Neto como a personificação da política
de juros extorsivos tem seus dias contados com a nomeação de Galípolo. Foi uma
oportunidade perdida para discutir sobre a função do Banco Central, se defende
os interesses públicos da população ou os interesses privados dos bilionários.
Esperemos que a maioria indicada pelo governo para a direção do banco central
mude a política de juros, porque se
Galípolo continuar a mesma política não restarão argumentos ao governo.
A deriva liberal do governo sofre
contestação até dentro dos partidos que o apoiam. A esquerda da esquerda
partidária começa a oferecer crítica e caminho alternativo nas discussões
internas do PT e PSOL e até candidaturas à liderança partidária com proposta
econômica diferente. Infelizmente não se prevê força suficiente nesse movimento
e a inflexão da proposta da política econômica neoliberal parece improvável.
Para mais, existe uma avaliação equivocada dos resultados das eleições
municipais que colocam o encosto à direita como resposta ao desaire eleitoral,
solução essa ainda mais inflamada pelo estado de conclusão dos processos
judiciais dos golpistas neofascistas.
Entretanto o neofascismo não dorme e
vai fazendo seu trabalho de formiguinha doutrinadora com disciplina
bolchevique, aquele que nos tem faltado. Igrejas e polícias, com o apoio dos
políticos locais, vão edificando o neofascismo de baixo para cima, ganhando a
população para visões cada vez mais violentas sobre a população pobre,
trabalhadora e na sua maioria negra. Mas as elites neoliberais vão chancelando
todo esse caminho, validando figuras como Tarcísio de Freitas como candidato
presidencial, corroborando a política genocida sionista de Israel e seu
alimentador E.U.A. e ainda referindo Milei como exemplo econômico a seguir.
Quem apoia o genocídio em gaza não terá problemas de consciência ao ver um
pobre sendo atirado de uma ponte por um policial. O padrão Netanyahu estabelece
o nível de violência na ofensiva do capital sobre o trabalho pelo mundo
inteiro. A burguesia brasileira aplaude os resultados.
Ficarão muitos aspetos da governação
para analisar, em particular na poplítica internacional que tem relação
gravitacional com a nacional, mas essa ficará para uma próxima breve reflexão.
Para já fica a consideração que o golpe de 2016 deu volume ao neofascismo e que
a continuidade dele só levará a uma de duas situações num futuro próximo: a
recolocação do neofascismo no poder reforçado pelo fracasso econômico
governativo da “esquerda” ou o surgimento de um movimento dentro e/ou fora dos
partidos da base do governo que tensionem a governação para a esquerda e que
confronte os limites neoliberais do sistema, evitando que Lula e seu governo
sejam a continuidade do golpe, o tal que é contra o povo e contra a nação.
Fontes:
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