por Rui Abreu
Passados dez dias das eleições presidenciais estadunidenses e ainda com alguns
estados a terminar o apuramento, é já incontornável a retumbante vitória de Donald Trump.
Trezentos e doze grandes eleitores, cinquenta e três senadores, setenta e cinco milhões de
votos (vitória no voto popular), vinte e sete governadores e seis juízes da Suprema Corte dos
Estados Unidos nomeados por republicanos; são alguns dos números da nova legitimidade
institucional e política que sustenta Trump neste novo ciclo político.
Depois de ter perdido sua reeleição em 2020, como o povo devolveu a confiança política
a um ex presidente que atentou contra direitos básicos das mulheres, da população imigrante,
que tem dezenas de processos contra si no judiciário (onde tem até várias condenações) e que
contribuiu para a morte evitável de centenas de milhar de cidadãs e cidadãos durante a
pandemia do covid? Afinal, porque corre Trump?
1 – Neoliberalismo é seu nome
A chegada de Reagan ao poder em 1979 trouxe um aprofundamento do capitalismo num
formato neoliberal que colocou o estado totalmente a serviço do grande capital, em particular
do capital financeiro. Reduziu a capacidade de dinamização económica do estado em cenários
recessivos, entregou aos privados setores estratégicos da economia, cortou os programas de
apoio social, desmantelou as leis trabalhistas e as organizações de defesa da classe
trabalhadora; rebaixou as condições de vida da população colocando a classe trabalhadora
numa maior desproteção social, criou mecanismos de roubo do orçamento federal através da
dívida pública. Foi dentro desta composição económica e social que o P.I.B. norte americano se
multiplicou por nove, crescendo de três trilhões de dólares para vinte sete trilhões nestes
últimos quarenta e cinco anos.
Setorialmente os E.U.A. lideraram mundialmente transformações importantes na
economia em torno duma globalização que alimentava as taxas de lucro das suas
megacorporações. As Bigtech(s), então em crescimento, implantaram a economia digital, a
indústria deslocalizou-se para sul e oriente em busca de fatores de produção mais baratos, com
destaque para a mão de obra. O capital financeiro ocupou parcelas cada vez maiores da
economia, secundarizando o papel do estado como agente dinamizador e subjugando os
setores primário e secundário à lógica e prática da capitalização financeira.
A condição da classe trabalhadora ia acompanhando essas mudanças estruturais
económicas, sendo empurrada para a precariedade sem que sindicatos e comissões de
trabalhadores tivessem capacidade de resistência às alterações nas relações de produção que
o neoliberalismo impunha. O salário real foi desfalecendo, encontrando-se atualmente pouco
acima dos valores de 1980, retirando do fator trabalho a partilha da imensa riqueza criada nos
últimos quarenta e cinco anos. Tudo com a complacência da esquerda, que no centro do
império foi (e é) quase inexistente em termos organizados e não quis dar respostas às
dificuldades impostas ao povo. Este quadro económico neoliberal norte americano foi replicado
pelas economias ocidentais, dando origem a conjunturas semelhantes de intensa acumulação
de capital e empobrecimento generalizado da população na Europa e restante América.
É neste contexto que surge Trump e ressurgem os movimentos de extrema direita para
coletar apoio no estado de desesperança da população trabalhadora que não vê neste sistema
neoliberal a melhoria de suas condições de vida, tendo garantido para si e para as gerações
vindouras condições de vida piores que de seus pais, identificando na esquerda (normalmente
anémica de proposta) uma parte integrante do sistema. Um sistema capitalista que despeja
suas crises em cima de quem trabalha com ajustes fiscais cada vez mais draconianos
sustentados numa ideologia que individualiza os problemas e soluções, a qual não sofreu o
devido contraditório no debate e na proposta pela esquerda nas últimas décadas. A luta de
classes não esgrimida dos dois lados cria campo fértil para a extrema direita e condições para
a contínua degradação das condições de vida duma classe trabalhadora cada vez mais
politizada pelo neoliberalismo e neofascismo. Sem alternativa de esquerda e com perspetivas
de luta limitadas, os “trumpismos” surgem como catalisadores do descontentamento geral,
sendo a opção política que mais aparenta mudar o atual estado de coisas.
2 – A economia de Biden
Os indicadores liberais apresentam uma economia em recuperação no final do mandato
de Biden. A inflação, refletindo o corte de circuitos económicos com a guerra na Ucrânia
atingido 9.1% em junho de 2022 (sendo a maior dos últimos quarenta anos), situava-se em
setembro deste ano nos 2,4%. Também a taxa de desemprego acomodou-se entre os 3,8% e
os 5%, durante o mandato democrata, sendo considerada pelos analistas liberais como uma
situação de pleno emprego. O P.I.B. cresceu 6,1% em 2021 gozando do crescimento negativo
de -2,2% de 2020 provocada pelo impacto da pandemia da covid, de 2022 a 2024 cresceu
entre 2,5% e 2,9%, o que dá aos mesmos analistas o discurso de uma economia forte, de
crescimento sólido.
O que os indicadores liberais não mostram são os 25% de aumento do custo dos
produtos que constituem a cesta básica e os 30% de aumento do custo da energia, afinal a
inflação não é igual para todos; não mostram os quarenta e um milhões de cidadãos e cidadãs
norte americanas que se encontram em estado de pobreza, afinal o P.I.B. não cresce para
todos; não mostram um mercado imobiliário inflacionado pelos bancos e grupos de
investimento que vêm nos imóveis mais uma fonte de especulação e lucro, colocando os
preços inatingíveis para a maioria dos trabalhadores; não mostram uma classe trabalhadora
esmagada nas suas condições laborais que, para fazer face às despesas quotidianas, acumula
dois e três trabalhos para poder levar um salário digno para casa. Afinal o pleno emprego de
Biden é repleto de precariedade e miséria.
No plano externo, por obrigação imperial, impôs-se a estratégia da economia do caos
com a promoção da instabilidade e conflitos como método para atrasar o crescimento chinês. A
guerra económica à China tem criado reflexos inflacionários devido à forte interdependência
que existe entre as duas economias. O maior parceiro comercial dos E.U.A. tem sido a China
que só foi substituída pelo México após o início da guerra na Ucrânia. A exigência
estadunidense de separar economicamente as potências e seus campos de influência
consuma-se através da política belicista e das diversas guerras económicas que a casa branca
promove. O quadro de confronto com a China promete aumentar com a eleição de Trump,
assim como as contradições económicas que essa política externa provoca internamente,
sendo a inflação uma ameaça real para o poder de compra da classe trabalhadora.
3 – Porque não corre a esquerda?
Cansada está a análise sobre a queda do muro de Berlim e a consequente
desorientação política provocada em toda a esquerda mundial. De maior marca ficou o
acomodamento da esquerda aos lugares conquistados eleitoralmente e o seu afastamento da
classe trabalhadora.
O jargão liberal tomou lugar no discurso da esquerda e a radicalidade de proposta foi
substituída pela competência técnica, como se o papel da esquerda fosse agora o de fazer uma
melhor gestão de orçamentos neoliberais que a direita, cabimentando aqui e acolá uma
medida, uma assistência social ou subsídio. A esquerda tornou-se defensora dum capitalismo
humanizado, ente que conseguiu existir em tempos idos da guerra fria e se materializou nas
sociais democracias europeias da segunda metade do século vinte. Na política global de hoje o
“capitalismo de rosto humano” não tem qualquer lugar, sendo seus preconizadores uma
espécie em vias de extinção.
Participando o movimento global que a política fez para a direita, a esquerda perdeu
suas âncoras ideológicas, suas referências políticas e seu trabalho de base que lhe permitia ter
penetração social.
São desenvolvidos diagnósticos de conjuntura cada vez mais distorcidos pelos
indicadores liberais, tomados como fieis tradutores das condições de vida das populações.
Crescimento do P.I.B. é encarado como determinante absoluto da boa política, retirando o
detalhe de quem ganha com esse crescimento; a taxa de desemprego é apresentada como
taxa de satisfação laboral, mesmo que a precariedade extrema esteja camuflada nesses
números; a inflação reveste-se de medidor do poder de compra, não contrastando seu peso em
rendas tão desiguais como as que existem atualmente.
Os objetivos deslocaram-se da disputa política pelo poder para a eleição de
representantes na democracia burguesa. As propostas tornaram-se inevitavelmente pouco
esclarecidas, seguindo os diagnósticos feitos de forma errada. Programas cada vez mais
pastosos surgem na incapacidade de comunicar com a classe trabalhadora, tentando com
medidas liberais acertar nalgum termo decisivo do voto. Propostas neoliberais como educação
financeira nas escolas, P.P.P.(s) e concessão de serviços públicos a empresas privadas
começaram a ser lugar comum em programas e governações de esquerda. A esquerda não só
deixou de apresentar uma proposta de sociedade diferente como foi assimilada e atualmente é
identificada como “O sistema”.
Até na autocrítica perdeu-se a referência, (aqui também me incluo). Termos como
“institucionalização”, “descaracterização”, “perda de identidade” e “afastamento das bases”
ofuscaram o bom velho “aburguesamento” que tão bem define o processo pelo qual passaram
a esmagadora maioria de partidos e quadros da esquerda ocidental.
É sabida a incapacidade transformadora da esquerda per si, não conseguindo seu
voluntarismo ultrapassar o tempo da luta de classes. São as contradições de classe que
determinam esse tempo de luta. Mas Trump e “trumpinhos” só correm na nossa insuficiência de
questionar e propôr a superação do capitalismo que hoje, perante o choque da socioesfera com
a bio e geoesfera, assume forma de extermínio. O neofascismo só cresce na mescla da
esquerda com o capitalismo neoliberal.
Também é sabido que o neofascismo de aparência antissistémica não passa de um
endurecimento político do projeto liberal, dando uma relação musculada entre o estado e a
classe trabalhadora, garantindo maiores margens de lucro para os bilionários, consolidando a
desigualdade social como objetivo a perseguir. Não é assim possível derrotar a política
neofascista sem combater a base económica liberal que a sustenta. A estratégia da frente
ampla para derrotar a extrema direita goza desse pecado original: tenta derrotar a cabeça
política neofascista alimentando seu corpo económico neoliberal.
Trump corre na nossa incapacidade de disputar maiorias sociais que não se revêem no
sistema, que nestas últimas eleições são dois terços da população: um terço que votou em
Trump e um terço de abstenção.
Esta é uma fase da luta de exigência teórica, de valores e de práticas. Clarividência na
proposta social e económica é fundamental para conseguir superar o mundo trumpista que se
edifica. Medo e aburguesamento só garantirão que regimes neofascistas se imponham nos
tempos que aí vêm.
Fontes:
. https://pt.tradingeconomics.com
. https://pt.countryeconomy.com/governo/pib/estados-unidos
. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz0m3l7r5yko
. https://www.census.gov/library/publications/2024/demo/p60-283.html
. https://www.statista.com/chart/26882/us-energy-costs-natural-gas-gasoline-electricity/