O artigo explora as permanências do pensamento do sociólogo Vilfrido Pareto possíveis de ser apontadas no paradigma reconhecido como Estudos Culturais Contemporâneos, ECC. O argumento apresentado é de que nas formulações de António Gramsci para o conceito de Hegemonia são acionadas categorias propostas por Pareto na sua Teoria das Elites. Ainda que a ligação com os ECC não seja explícita, considera que parte dessas ideias se mantém entre pesquisadores e teóricos como Stuart Hall, Richard Johnson, Jesús Martín-Barbero e Néstor Garcia Canclini.
Resumo
O artigo explora as permanências do pensamento do sociólogo Vilfrido
Pareto possíveis de ser apontadas no paradigma reconhecido como Estudos
Culturais Contemporâneos, ECC. O argumento apresentado é de que
nas formulações de António Gramsci para o conceito de Hegemonia são
acionadas categorias propostas por Pareto na sua Teoria das Elites. Ainda
que a ligação com os ECC não seja explícita, considera que parte dessas
ideias se mantém entre pesquisadores e teóricos como Stuart Hall, Richard
Johnson, Jesús Martín-Barbero e Néstor Garcia Canclini.
Palavras-chave: Estudos Culturais Contemporâneos; António Gramsci;
Vilfrido Pareto; Teoria das Elites.
Resumen
El artículo explora las continuidades del pensamiento del sociólogo Vilfrido
Pareto en el paradigma reconocido como Estudios Culturales Contemporáneos,
ECC. El argumento es que en las formulaciones de Antonio Gramsci para el
concepto de hegemonía son impulsadas categorías propuestas por Pareto en su
Teoría de las Elites. Aunque el vínculo con el ECC no es explícita, considera
que algunas de estas ideas se mantienen entre investigadores y teóricos como
Stuart Hall, Richard Johnson, Jesús Martín-Barbero y Néstor García Canclini.
Palabras claves: Estudios Culturales Contemporáneos; Antonio Gramsci;
Vilfrido Pareto; Teoría de las elites.
Abstract
The paper explores the continuities of thought Vilfrido Pareto sociologist
possible to be pointed in the paradigm recognized as Contemporary Cultural
Studies, ECC. The argument is that in Antonio Gramsci’s formulations for the
concept of hegemony proposed categories are driven by Pareto in his Theory
of Elites. Although the link with the ECC is not explicit, considers that some
of these ideas is maintained between researchers and theorists such as Stuart
Hall, Richard Johnson, Jesús Martín-Barbero and Nestor Garcia Canclini.
Keywords: Contemporary Cultural Studies; Antonio Gramsci; Vilfrido
Pareto; Theory of Elites.
O clássico submerso
Os autores clássicos da sociologia têm lugar de destaque no pensamento
social contemporâneo exatamente por serem clássicos e, para assim serem
considerados, são várias as características e qualidades de suas obras que
devem ser destacadas. Entre elas estão a capacidade de oferecer interpretações
coerentes aos problemas das sociedade em que foram produzidas; sua
presença e atualidade nas elaborações teóricas contemporâneas; e a
possibilidade de, a partir delas, elaborar-se modelos que contribuam para
compreender realidades sociais diferentes daquelas em que foram geradas
(FREITAS, 2011a).
Ao considerar estas características dos clássicos da sociologia detenho
a atenção nas contribuições da obra do sociólogo franco-italiano Vilfrido
Pareto. É possível afirmar que seus escritos preenchem as condições
expostas acima, mas que mesmo assim Pareto comumente não surge ao lado
dos grandes clássicos da sociologia, e as apropriações de suas reflexões, na
maior parte – é possível dizer – disseminadas entre alguns teóricos sociais
contemporâneos, acontecem sem que haja menções diretas a Pareto.
Aqui, me concentro em um aspecto de sua obra, identificado de maneira
geral como a Teoria das Elites, e nas leituras e interpretações que suscitou.
Identifico intersecções entre as formulações propostas por Pareto presentes
no paradigma dos Estudos Culturais, que têm proporcionado abordagens
produtivas aos estudos em Comunicação nas décadas recentes. Ainda que seja
possível indicar contribuições, a Teoria das Elites não surge de maneira direta
nos Estudos Culturais, quer na sua vertente britânica ou latinoamericana. O
que é possível apontar são elementos do pensamento de Pareto que chegam
aos Estudos Culturais via escritos do italiano Antonio Gramsci.
Abordar tal presença é caminho sinuoso, ainda que a presença da
Teoria das Elites na obra de Gramsci, em especial na sua conceituação de
Hegemonia, seja fundamental para a construção teórica do paradigma dos
Estudos Culturais Contemporâneos.
O que acredito ser possível é identificar
na leitura feita pelos teóricos dos Estudos Culturais uma compreensão da
dinâmica social que, mesmo após o crivo de Gramsci, é muito próxima das
percepções de Pareto.
Os Estudos Culturais Contemporâneos
Os Estudos Culturais não se constituem como uma linha de estudos
homogênea. Antes disso, são a reunião de vertentes teóricas presentes em
diferentes países, mas que têm semelhanças marcantes e que reconhecem
uma trajetória comum. O campo é associado aos estudos em Comunicação,
mesmo que haja uma clivagem particular centrada no reconhecimento das
diferenças, na intervenção social, promoção da democracia e da igualdade
nas relações. A gênese dos Estudos Culturais remete aos anos 1950, na
Inglaterra, e é possível identificar nas obras de Richard Hoggart (The Uses
of Literacy, 1957), Raymond Williams (Culture and Society, 1958) e Edward Palmer Thompson (The making of the English Working-class, 1963), as bases
do novo paradigma.
Nestes autores, e em suas obras e trajetórias pessoais, é
possível apontar convergências que levam a novos posicionamentos e à crítica
do “velho marxismo”. As discussões que começaram na literatura chegaram
a vertentes históricas e alcançaram a filosofia como “um racionalismo
generalizado e uma atração por idéias abstratas” (JOHNSON, 2004, p. 12).
Da origem marxista às ultrapassagens já visíveis nos anos 1970, Johnson
aponta três pontos de grande influência para a constituição dos Estudos
Culturais: a íntima vinculação dos processos culturais com as relações sociais,
em especial com as relações e formações de classes; o reconhecimento que
cultura envolve poder e isso contribui para a produção de assimetrias na
capacidade de indivíduos e grupos sociais em definirem e satisfazerem
suas próprias necessidades; e a dedução de que a cultura não é um campo
autônomo e nem externamente determinado, mas, ao invés disso, lugar de
diferenças e lutas sociais.
Para Johnson, estas premissas não esgotam os
elementos do marxismo, porém dão espaço para que sejam criticados e
estudados detalhadamente.
De novo, para mim, muitos caminhos levam de volta a Marx, mas as
apropriações precisam ser mais amplas. Tem havido, ultimamente,
tentativas de se ir além da posição bastante estéril entre racionalismo
e empirismo, em busca de uma formulação mais produtiva da relação
entre teoria (ou “abstração”, como eu prefiro, agora, dizer) e “estudos
concretos”. (JOHNSON, 2004, p. 14).
As novas abordagens marxistas estão presentes nos Estudos Culturais nos
textos de Raymond Williams, como é o caso de The Long Revolution, em que
se posiciona contra a metáfora base/superestrutura, e coloca em seu lugar a
interação mútua de todas as práticas como forma de contornar o problema
da determinação. O que se busca nos estudos culturais é a totalidade social,
ver o estudo da cultura como o estudo das relações na vida inteira (HALL,
2003[2006]a, p. 129).
É nesta direção que os Estudos Culturais alcançam as posições culturalistas,
que criticam os processos sem sujeito do estruturalismo, mas tal aproximação
se mostra suficiente para dar conta dos problemas que se impõem. Se por um
lado o estruturalismo apresenta o determinismo, o culturalismo insiste na
particularização das práticas, e tem como problema a retirada do olhar do
todo. É neste encontro tenso, que também é complementar, que se desenvolve
a agenda dos Estudos Culturais.
Na América Latina, percurso teórico-metodológico semelhante foi
empreendido por diferentes pesquisadores, mesmo sem contato entre estes e
aqueles da Inglaterra. Isso acontece a partir dos anos 1980 e se espalha pelo
continente, e neste cenário se destacam os nomes de Jésus Martín-Barbero
e Néstor Garcia Canclini. As percepções no contexto inglês da década de
1950 se mostram bastante semelhantes àquelas da América Latina dos 1970,
principalmente com relação aos estágios do capitalismo e à inserção das
indústrias culturais no cotidiano das populações (ESCOSTEGUY, 2001, p. 41).
Entre as proposições de Martín-Barbero e Garcia Canclini está a fuga de
análises reducionistas, tal como seriam as apresentadas pelo estruturalismo,
e a busca por olhares transversais que possam superar barreiras disciplinares
evitando dualismos teóricos. Eles propõem categorias analíticas como
sincretismo, hibridação e mestiçagem, que não negam determinações
estruturais, mas admitem a ação dos sujeitos no meio social.
As identificações
diretas com a perspectiva dos Estudos Culturais começam a acontecer
somente nos anos 1990, todavia os percursos de ingleses e latino americanos
são de tal modo semelhantes que pode-se conceber uma trajetória similar.
Embora nem o culturalismo nem o estruturalismo bastem, como
paradigmas auto-suficientes para o estudo, eles são centrais para o campo,
o que falta a todos os outros contendores, porque, entre si – em suas
divergências assim como em suas convergências – eles enfocam o que
deve ser o problema central dos Estudos Culturais. (HALL, 2003[2006]
a, p. 147-148).
As aproximações nos Estudos Culturais entre estruturalismo e
culturalismo, que representou a superação das posições marxistas ortodoxas,
ou do “velho marxismo”, como prefere Johnson (2004), se dá pela entrada
de Gramsci, em especial o conceito de Hegemonia por ele desenvolvido, na
discussão no ambiente inglês.
A tomada de Gramsci também acontece na
América Latina e significa a resposta para os problemas que vinham sendo
colocados aos estudos da cultura, de forma semelhante, embora em momentos
distintos, nos dois lados do Atlântico.
Para Stuart Hall (2003[2006]a, p.
147), entre as diferentes vertentes dos Estudos Culturais aquela que partiu
de conceitos elaborados por Antonio Gramsci e dos “melhores elementos”
do culturalismo e do estruturalismo é a que mais se aproxima das exigências
do campo.
Os Estudos Culturais e Gramsci
As percepções nos Estudos Culturais, tanto na Inglaterra como na América
Latina, da necessidade de superar as dualidades passou pelo entendimento
de que não era possível intercambiar cultura e ideologia, esta uma categoria
althusseriana.
Cultura neste paradigma tem vasta abrangência, indo além
das representações sociais postas, alcançando reelaborações das estruturas
sociais e abrindo espaços para imaginar novas proposições. Ideologia, por
outro lado, é vista como deformação, reflexo e representação das condições
reais de existência.
Outro ponto de divergência foi a ideologia tomada desde posições
marxistas, sempre privilegiando interesses de classes, em última instância
interesses determinados pelo econômico. Este é o motivo pelo qual nos
Estudos Culturais há a preferência pelo termo cultura, ao invés de ideologia.
Mas, mesmo com esta posição consolidada era fundamental um aporte
teórico capaz de considerar as dinâmicas sociais de forma descentrada
do econômico, e colocar, na mesma arena, outros elementos das relações sociais.
A introdução do conceito de Hegemonia nos Estudos Culturais foi
fundamental desde a proposta de Raymond Williams, como maneira de
“deslocar a ideia de cultura do âmbito da ideologia, isto é, da reprodução
social” (ESCOSTEGUY, 2001, p. 95).
Este é o caminho que percorrem Hall, na Inglaterra, e Martín-Barbero
e Garcia Canclini na América Latina, que por caminhos distintos acabam
chegando a Antonio Gramsci e ao seu conceito de Hegemonia.
Diante da perspectiva que desembocava invariavelmente em reprodução
social, a incorporação, sobretudo, do conceito de hegemonia de Antonio
Gramsci permitiu vislumbrar um movimento mais dinâmico e complexo
na sociedade, admitindo tanto a reprodução do sistema de dominação
quanto a resistência a esse mesmo sistema. Em termos genéricos,
esse argumento é válido para a vertente britânica, assim como para a
perspectiva latino-americana. (ESCOSTEGUY, 2001, p. 91).
A incorporação de uma parte das reflexões de Gramsci no contexto dos
Estudos Culturais britânicos se deu principalmente sob a liderança de Stuart
Hall, que fez ataques contundentes ao reducionismo e economicismo do
marxismo clássico. “Essa abordagem tende a ver todas as outras dimensões
da formação como simples espelho do ‘econômico’ em outro nível de
articulação e não tendo nenhuma força determinante ou estruturadora no seu
próprio direito” (HALL, 2003[2006]b, p. 285).
Para Escosteguy (2001) na América Latina o aporte gramsciano
circunscreve-se nas “análises propriamente culturais” e com forte conotação
política principalmente por dar vazão ao popular, antes desconsiderado
nas análises empreendidas. E isso se dá, principalmente, pelo conceito de
Hegemonia, que desde o âmbito do popular repercute na análise cultural
da comunicação. Martín-Barbero reconhece a importância de Gramsci na
análise cultural por desbloquear “[...] o debate sobre a cultura dentro do
marxismo e contribuindo de forma fundamental à construção de sua própria
proposta investigativa da comunicação” (ESCOSTEGUY, 2001, p. 92).
Desta forma o aporte da Hegemonia de Gramsci aparece nos Estudos
Culturais como ponto fundamental para avançar na discussão do cultural,
agora livre das limitações estruturais, por um lado, e das indefinições
culturalistas, por outro.
Esta ultrapassagem, ancorada em Gramsci, vai
permitir o entendimento de contextos históricos e de formações sociais
como ativamente produzidas por indivíduos e por grupos sociais, mas ainda
assim mantendo, mesmo que de maneira não contundente, a tensão entre as
estruturas e os sujeitos.
A estrutura dinâmica de análise histórica permite ao pensamento de
Gramsci, e aos Estudos Culturais, voltar-se às relações de força no terreno
concreto da luta e do desenvolvimento político e social. E nesta relação de
forças não há totalidades, vitória de um lado ou outro ou mesmo a total
incorporação. O que há é uma questão relacional, um equilíbrio instável em
um processo contínuo de formação e superação.
Hall destaca que a ideia
de vitória total da burguesia sobre as classes trabalhadoras ou “[...] a total incorporação da classe trabalhadora ao projeto burguês é totalmente estranha
à definição de hegemonia de Gramsci” (2003[2006]b, p. 292).
Para Hall, ao invés da vitória, Gramsci observa diferentes estágios em
que consciência, organização e unidade de classe podem se desenvolver.
O último deles, o momento da hegemonia, vai além da solidariedade
econômica pura e alcança os interesses dos grupos subordinados e se propaga
pela sociedade, “[...] promovendo a unidade intelectual, moral, econômica
e política [...]” (HALL, 2003[2006]b, p. 293), propõe as questões em torno
das quais as lutas acontecem e cria a hegemonia do grupo social principal
sobre os vários grupos subordinados.
Hegemonia e Teoria das Elites
Temos claro que as contribuições de Gramsci são originais e surgem no
ambiente político e intelectual da Itália das primeiras décadas do século
XX, terreno extremamente fértil para um pensamento social pertinente à
época e que perdura até a contemporaneidade.
É neste mesmo contexto
que a principal obra de Pareto, o Traité de Sociologie Générale, de 1917,
portanto anterior aos principais escritos de Gramsci, surge como influência
importante. Além disso, é possível afirmar que Antonio Gramsci foi leitor e
crítico da obra de Vilfrido Pareto e o pensamento deste teve papel importante
na formação do conceito de Hegemonia, assim como nas idéias acerca da
questão política dos intelectuais.
Gramsci explicita a sua maneira de trabalhar em uma carta à cunhada
Tatiana Schucht, em 1930, nela esclarece o quanto seria difícil para ele
pensar de maneira desinteressada: “Comumente é necessário colocar-me
desde um ponto de vista dialógico ou dialético, caso contrário não sinto
nenhum estímulo intelectual” (GRAMSCI apud ALIAGA, 2009, p. 6).
Assim estabelece profícuo diálogo com a obra de diversos pensadores,
mesmo que não haja abundantes referências a eles em seus escritos.
As referências diretas à Teoria das Elites nos Cadernos do Cárcere são
raras e uma leitura pouco atenta pode mesmo tomar a sua importância como
secundária, entretanto “[...] estas referências possuem notável agudeza
crítica, envolvendo algumas das temáticas fundamentais da teoria política
enfrentada por Gramsci no cárcere” (ALIAGA, 2009, p. 3).
Em uma das poucas referências diretas a Pareto nos Cadernos do Cárcere,
Gramsci diz que a Teoria das Elites é,
“[...] uma tentativa de interpretar o fenômeno histórico dos intelectuais
e a sua função na vida estatal e social [...]”, e uma forma de esclarecer o
processo pelo qual lideranças de classes subalternas acabam por defender
as estruturas vigentes, enquanto se mantêm como dirigentes de “[...] um
grupo subalterno, que não conquistou ainda a consciência de sua força e
das suas possibilidades e modos de desenvolvimento” (GRAMSCI apud
SCHLESENER, 2007, p. 5).
Enquanto, na Teoria das Elites é possível estabelecer as tomadas de decisão do homem a partir dos resíduos e derivações, Gramsci enxerga aí
a fase de primitivismo nas relações entre as classes que deve ser superada.
As aproximações possíveis entre a Teoria das Elites e o conceito
de Hegemonia – este também disperso nos escritos grasmcianos – são
constantes, assim como os tensionamentos. Estes últimos podem ser
compreendidos mais pelo posicionamento ideológico de Gramsci, que opera
a partir de categorias marxistas, do que por divergências na leitura feita por
ele e Pareto do contexto imediato que analisam.
Assim que se aproximam
aquilo que é apresentado como a circulação das elites por Pareto, e para
Gramsci “questão política dos intelectuais”.
Pareto aponta a circulação das elites como um dos fatores que faz com
que a sociedade se caracterize pela mútua dependência dos elementos
que a compõem. Estes elementos são situados em um ambiente variável,
ecológico, internacional e histórico. Ao lado da circulação das elites coloca
as derivações, resíduos e os interesses como outros fatores determinantes
para as relações sociais. Como se trata de fatores variáveis, as sociedades
também são diferentes entre si.
Os grupos sociais, em Pareto – sejam eles quais forem – têm suas
elites, e entre os membros dessas diversas elites se destacam determinados
indivíduos. Tais indivíduos não são, necessariamente, os mesmos que
compõem a elite dirigente, havendo, assim, uma elite não-governamental e
uma elite governamental.
Em sentido amplo a elite é definida fora de toda consideração moral; a
circulação das elites é a mobilidade social que afeta em toda a sociedade
o grupo social dirigente. Toda sociedade é caracterizada pela natureza
social de sua elite governamental que se impôs como dirigente à camada
inferior, seja pela força, seja pela astúcia, pois toda elite política seja ela
leoa ou raposa, luta pela vida. (FREITAS, 2011b, p. 4-5).
Gramsci destaca a existência de intelectuais em todas as classes sociais,
e que estes seriam os responsáveis pela sua condução. Na elaboração do
conceito de Hegemonia Gramsci aponta que o dirigente de Estado e de
Governo está relacionado às classes sociais. Primeiro, lança a ideia como
questão, perguntando se os intelectuais são um grupo autônomo ou se cada
grupo tem seus próprios intelectuais, para em seguida responder:
Todo grupo social, nascendo sobre terreno originário de uma função
essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo
tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão
homogeneidade e consciência da própria função, no campo econômico.
(GRAMSCI apud ALIAGA, 2009, p. 5).
Cada classe social, portanto, cria seus próprios intelectuais que,
diferentes dos intelectuais tradicionais, que têm atitude regressiva, teriam
ação progressiva ligada às necessidades econômicas, políticas e éticas.
É
fundamental apontar, neste ponto, que para Gramsci a ideia de intelectual vai além de uma visão tradicional, elitista, e desta forma todas as camadas
sociais têm intelectuais, que devem assumir o papel de esclarecer e conduzir
as classes a que pertencem na luta com as classes dominantes.
A elite de
intelectuais é definida não em contraste com a massa, mas na ligação orgânica
com a classe a que pertence, e tem função diretiva e organizativa, com o
objetivo de criar novos estratos intelectuais vindos das classes populares.
É assim que uma parte da massa, mesmo que subalterna, é dirigente e
responsável (ALIAGA, 2009, p. 10). Esta dinâmica pressupõe sempre o
antagonismo entre a classe dominante e as classes subalternas.
Para Pareto os conflitos sociais surgem em todas as camadas sociais e
entre os mais diferentes grupos, e não apenas entre as classes definidas na
relação entre capital e trabalho, ou entre dominantes e dominados.
Pareto
apresenta como não estáticos os grupos sociais e as elites de cada um deles.
“É a circulação das elites que move a história particular das sociedades pela
mudança que provoca, e não a luta de classes” (FREITAS, 2011b, p. 5).
A
circulação é o movimento pelo qual espaços são abertos para que indivíduos
que constituem a elite de um grupo ascendam a outros grupos, e assim
mantenham a aparente unidade social.
A importância da circulação das elites, necessária à evolução histórica,
se dá pelos novos valores, comportamento econômicos e sociais e pelo novo
dinamismo coletivo que daí resulta, o que leva a processos de mobilidade
social que equilibram a alternância do poder nas sociedades hierarquizadas.
Gramsci admite esta circulação, mas a toma como um problema a ser
superado para o fortalecimento da sociedade civil. Trata a circulação
como cooptação de lideranças populares e denomina “transformismo” a
retirada às classes trabalhadoras das condições de emancipação política
(SCHLESENER, 2007, p. 4).
Fundamental apontar que na circulação das elites os movimentos sociais
dela advindos independem dos sistemas sociais – capitalismo, socialismo,
feudalismo. Pareto trata, primordialmente, das características que considera
intrínsecas aos homens em sociedade.
Daí que as condições para a circulação
das elites são dadas desde os interesses, e estes surgem das derivações e
resíduos. “Os interesses são o conjunto de tendências, instintivas e racionais
que impulsionam os indivíduos e coletividades “a se apropriar dos bens
materiais úteis, ou somente agradáveis para a vida assim como procurar a
consideração e honra” (PARETO apud FREITAS, 2011b, p. 4).
Os resíduos, conceito fundamental para a teoria paretiana, são as razões
últimas dos seres humanos, as motivações despidas de toda a racionalidade,
os motivos que, de fato, levam às ações individuais e/ou coletivas. Pareto os
divide em seis classes: instinto das combinações; persistência dos agregados;
necessidade de manifestar os sentimentos por meio de atos exteriores;
resíduos relacionados com a sociabilidade; integridade dos indivíduos e dos
seus dependentes; e os resíduos sexuais.
Estas classes, por sua vez, foram
por ele subdivididas em gêneros.
Para justificar e dar a aparência racional aos resíduos o homem cria
narrativas que dão conta das atitudes tomadas. É o que Pareto chama de derivações, que variam de acordo com o contexto social, histórico e mesmo
as condições do ambiente.
As derivações são os elementos variáveis do conjunto constituído
pela conduta humana e seu acompanhamento verbal. Representam, na
linguagem de Pareto, o equivalente do que chamamos normalmente
de ideologia, ou teoria justificativa. São os diferentes meios de ordem
verbal, pelos quais os indivíduos e os grupos dão uma lógica aparente ao
que, na verdade, não tem lógica, ou nem tanto quanto os atores gostariam
de fazer crer. (ARON, 2008, p. 640-641).
A teoria paretiana faz a leitura das relações sociais a partir da natureza
humana, o que fica evidente ao olhar atento acerca dos resíduos e derivações.
Enquanto, a primeira categoria trata das motivações humanas, em que
devem ser elencados os gostos e vontades pessoais, e mesmo as vaidades e
egoísmos, cabe à segunda categoria criar as narrativas que dão a aparência
racional às motivações, seja através dos mitos ou novas organizações sociais.
Gramsci constrói seu pensamento desde bases racionais, que para Pareto
não são possíveis de ser consideradas de maneira exclusiva. Para Gramsci é
preciso haver o debate exaustivo e transparente para levar adiante o projeto
de uma democracia socialista, o que implica na expressão do pensamento
livre e aberto, que neste contexto:
não se caracteriza pela autonomia do pensamento individual, mas pela
elaboração de uma concepção de mundo coletiva e continuamente
reformulada pela política. É esta prática que gera condições para o grupo
social decidir sobre seu próprio destino e contribuir para a gestação de
uma nova sociabilidade. (SCHLESENER, 2007, p. 3).
Pareto, por seu turno, é pessimista com as chances de poder haver
democracia e, especialmente, de se conseguir chegar a algum grau de
socialismo autêntico. Aquilo que para Gramsci é ponto crucial para uma nova
sociabilidade, a percepção lógica para uma nova constituição social desde
o debate exaustivo e transparente, é em Pareto razão de crítica, pois seria
motivado por uma crença, sendo assim não-lógico, logo um resíduo e gerador
de derivações.
O argumento de Pareto é exemplificado por revolucionários que
lutam para mudar um sistema social que lhes parece opressivo. A finalidade
é implantar um sistema de liberdade, mas ao tomarem o poder acabam por
instaurar um sistema opressor com consequência imprevisíveis (FREITAS,
2011b, p. 4)2
.
Para além dos tensionamentos há as convergências e, principalmente, o
que parecem ser contribuições tomadas por Gramsci da obra de Pareto. É
certo que tal inferência deve ser tomada desde as elaborações de Gramsci
que, como destacado, ofereceu uma reflexão original que parte da leitura
crítica daqueles que o precederam. Assim, é possível ver no conceito de
Hegemonia de Gramsci a estrutura social apresentada por Pareto em sua
Teoria das Elites, mas revista a partir de uma leitura dialética-materialista.
2
Aqui vale a questão levantada por
Rêgo, para quem Gramsci poderia
estar superestimando a figura do
homem como “bom selvagem” rousseauniano,
ao invés de uma visão
mais realista do “homem como lobo
do homem” hobbesiano: “Não seria
o Estado-ético apenas conseqüência
da projeção desse tipo ideal de
homem? e portanto uma sociedade
capaz de ser viável apenas na hipótese
remota de ser composta por
anjos e não por homens?” (RÊGO,
1991, s/p).
Pareto nos Estudos Culturais
A apropriação do conceito de Hegemonia pelos Estudos Culturais
representou para este paradigma a possibilidade de ultrapassar as leituras
dualistas e economicistas das relações sociais. Ao deter-se sobre as leituras
feitas nos Estudos Culturais, tanto na vertente britânica como latino americana,
surge não somente o relevo que o pensamento de Gramsci ganhou,
mas o quanto as percepções a partir dele levadas a efeito se aproximam das
idéias presentes na Teoria da Elites tal como concebidas por Pareto.
Ao buscar maneiras de superar o determinismo do econômico sobre as
relações sociais, tal como proposto pelo marxismo clássico, os Estudos Culturais
buscam alternativas, encontradas em Gramsci. E a clivagem a que submetem
seus conceitos torna possível enxergar as estruturas e relações elitistas.
Hall
(2003[2006]c, p. 273) argumenta que entre os problemas do econômico está a
incapacidade de assegurar a correspondência e fornecer modos de raciocínio a
classes específicas. Isso ocorre por que categorias ideológicas são desenvolvidas,
geradas e transformadas de acordo com leis próprias, apesar de serem geradas a
partir de materiais específicos. Outra razão é o que Hall considera a necessária
abertura do desenvolvimento histórico à prática e luta, o que leva à necessidade
de reconhecer a realidade indeterminada do político.
Neste sentido a apreensão buscada pelos Estudos Culturais é por uma abordagem
que privilegie uma indeterminação relativa, que seja científica ao mesmo tempo
em que considere elementos que não são necessariamente científicos:
É científica porque compreende a si mesma como determinada e por que busca
desenvolver uma prática teoricamente informada. Mas não é científica no sentido
de que os resultados políticos e as conseqüências da condução das lutas políticas
estejam escritos nas estrelas econômicas. (HALL, 2003[2006]c, p. 273).
Neste posicionamento, que nos Estudos Culturais encontrou ancoragem no
pensamento gramsciano, é possível identificar a estrutura social pensada na Teoria
das Elites, em especial as indeterminações que são consideradas desde os resíduos
e tomam corpo racional nas derivações.
Trata-se da apreensão de Pareto de que os
indivíduos reunidos em sociedade agem por motivações não racionais, mas dão
corpo racional às narrativas que constroem. Os Estudos Culturais não assumem
esta irracionalidade como base, mas o paradigma busca a indeterminação ancorada
no material para construir as bases de sua leitura do social.
Da mesma maneira ao se apropriarem da formulação de Gramsci sobre os
intelectuais é possível enxergar as elites – para Pareto – constituídas nos diferentes
grupos sociais e sobre a sociedade como um tudo.
Hall ao abordar as disputas
entre classes tal como expostas por Gramsci, retoma a necessidade do proletariado
se tornar dirigente através de um “sistema de alianças”, o que acaba por colocar
“[...] na agenda certas questões estratégicas críticas, como as convenções nas quais
uma classe como a camponesa poderia vencer uma luta nacional não pela coerção,
mas pela ‘conquista do consentimento’” (HALL, 2003[2006]b, p. 295).
Podemos, aqui, retomar a formulação de Pareto, para quem os meios de governo, e de acesso a ele, pode se dar pela força ou a astúcia, ou seja, a
transposição da oposição entre leões e as raposas, uma categorização paretiana
pertinente tanto a indivíduos como a grupos sociais.
A analogia entre as ações
políticas dos seres humanos e duas raças animais faz se aproximarem decisões,
tomadas no âmbito social, e desejos e impulsos não racionais.
Na América Latina Martín-Barbero e Garcia Canclini realizam leituras
da Hegemonia de Gramsci – e de aspectos importantes de sua obra para
este conceito – que também se aproximam das contribuições de Pareto, em
especial da Teoria das Elites.
No ambiente latino americano, especialmente,
é preciso salientar que a agenda principal é pensar a comunicação a partir
da cultura, e neste sentido ganha relevo a ideia de fugir do reducionismo do
materialismo mecanicista e buscar as indeterminações nas relações sócio culturais.
Por esta abordagem o termo cultura significará
“[...] a produção de fenômenos que contribuem, mediante a representação
ou reelaboração simbólica das estruturas materiais, para compreensão,
reprodução ou transformação do sistema social, ou seja, a cultura diz
respeito a todas as práticas e instituições dedicadas à administração,
renovação e reestruturação do sentido” (GARCIA CANCLINI apud
ESCOSTEGUY, 2001, p. 94).
A ênfase dada, no contexto latino americano assim como no britânico, às
determinações estruturais tanto quanto a indeterminações individuais, não
obscurece a presença da estrutura social proposta por Pareto, em que as elites
de grupos e as elites dirigentes da sociedade têm papel fundamental.
A leitura de
Gramsci, depois assumida pelos Estudos Culturais, as mantém, mesmo que sob
os olhares de um marxismo que, apesar de renegar o ortodoxismo materialista,
dirige os olhares para outros lugares que não aqueles para onde olhava Pareto.
Os diferentes contextos, seja o das primeiras décadas do século XX na
Itália e da emergência de regimes socialistas, ou do final do século e início do
XXI, não fazem desaparecer as formas de organização social, e as motivações
humanas fundamentais para entendê-las.
As vontades, os desejos e paixões
ainda são pontos fundamentais para compreender as dinâmicas sociais, mesmo
que submergidos diante de exigências de racionalidade científica.
É neste ponto
que a sociologia de Pareto pode ser vista nas formulações contemporâneas que
fogem de determinismos, esta uma atitude reivindicada pelos Estudos Culturais.
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1
Doutor em Sociedade e Cultura
(UFAM); mestre em Comunica-
ção Social (PUCRS); professor de
Jornalismo na Universidade Federal
de Rondônia, UNIR, campus de
Vilhena. Pesquisador do Mapa Cultural
de Rondônia (UNIR-CNPq) e
do Interfaces (UFAM-CNPq)