quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Quem controla o orçamento secreto?

 Em 2022, seis partidos concentram 81% das emendas do relator – todos aliados de Bolsonaro. Arthur Lira foi quem mais indicou repasses. Usuários externos, aqueles “apadrinhados” por parlamentares, abocanharam 31,2% dos recursos

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O orçamento secreto movimentou entre 2020 e outubro de 2022 R$ 45 bilhões de empenhos e R$ 28 bilhões de pagamentos, considerando compromissos assumidos e pagos em cada ano somados aos pagamentos de valores empenhados desde 2020, os chamados “restos a pagar pagos”.

Tabela 1: Valores do orçamento secreto (valores correntes)


Fonte: Siga Brasil/Senado  (data da extração: 24 de outubro de 2022).
Elaboração: Inesc e Observatório do Clima.

Para 2023 estão previstos no Projeto de Lei Orçamentária (PLOA 2023) mais R$ 19 bilhões. Isto significa, por exemplo, que a cada R$ 100 reais de recursos separados para despesas não obrigatórias – como o combate ao desmatamento, ao abuso e violência sexual contra crianças ou para saneamento urbano, entre tantas outras políticas – pelo menos R$ 15 serão distribuídos seguindo a vontade de um pequeno grupo de deputados e senadores com base em critérios políticos e partidários nada transparentes.

A apuração dos valores executados pelo orçamento secreto, incluindo os pagamentos dos restos a pagar pagos, só é possível porque os dados estão consolidados no portal Siga Brasil/Senado com uma marcação denominada RP9 (Resultado Primário 9), uma forma de classificação da despesa pública utilizada para separar a execução das despesas que tiveram como origem valores indicados pelo parlamentar relator do orçamento de outros gastos que também impactam no chamado Resultado Primário[1].

As emendas de relator estão concentradas na função saúde, que representou 57,4% dos R$ 28,79 bilhões já pagos; seguido da função urbanismo, com 11,53%; da assistência social, com 5%, e da educação com 4,68% (Siga/Senado).

Ainda que gastos mais elevados com saúde sejam de inegável urgência e relevância, os critérios políticos de destinação das emendas de relator representam um desvio inconstitucional e sem precedentes dos critérios estabelecidos para repartição dos recursos públicos destinados a esta política. Desvio semelhante ocorre com os recursos destinados à assistência social e educação. Como já alertou o Tribunal de Contas da União (TCU), estas políticas públicas se sujeitam a um regime jurídico-constitucional que exige critérios objetivos de escolha dos destinatários e repasse de recursos do orçamento da União. Assim, as emendas RP9 não são compatíveis com os princípios, diretrizes e objetivos constitucionais que norteiam o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (Suas) (TC 008.731/2022-5).

Não menos grave é a instrumentalização das demais políticas para a realização de pagamentos a prefeituras, bem como a pessoas jurídicas privadas que resultam no favorecimento de iniciativas ligadas a grupos políticos e partidários.

Exemplo sintomático é a execução da ação ligada ao Ministério da Cidadania, voltada ao desenvolvimento de atividades e apoio a projetos e eventos de esporte, educação, lazer e inclusão social, que deveria atender a todo o país. Esta ação tem sido utilizada para viabilizar a execução de emendas de relator que se concentram em poucos beneficiários e lugares. É o caso da ONG denominada Instituto Carioca de Atividades (ICA), que acumula em 2022 R$ 20 milhões empenhados e R$ 12 milhões pagos. De 2020 a 2022 a mesma ONG recebeu R$ 98 milhões em emendas, principalmente emendas de relator. O cruzamento de dados que apresentamos a seguir permitiu identificar quem indicou os recursos executados em benefício da ONG, são eles, Hugo Leal (PSD), Daniel Silveira (PTB) e Nicodemos de Carvalho Mota, este último sendo ele próprio o diretor administrativo do Instituto Carioca de Atividades, segundo página do Linkedin.

Escolhas metodológicas para o cruzamento de bases de dados

Embora classificado com o marcador RP9, o orçamento continua secreto, porque não existe hoje uma base pública de informação que relacione os valores indicados pelos deputados, senadores e usuários externos com os pagamentos efetivamente realizados. Ou seja, não é possível saber, de maneira oficial, quem indicou os valores pagos pelo Executivo federal.

A partir de 2021, por decisão do Supremo Tribunal Federal  (STF), começaram a ser publicadas no site da Comissão Mista de Orçamento (CMO) listas com os nomes dos parlamentares e suas respectivas indicações  de valores e beneficiários. Em 2022, já foram publicadas 56 listas com o nome de quem indica (deputado, senador e usuário externo, “qualquer pessoa” pode indicar beneficiários), o favorecido indicado (nome e CNPJ), a partir de qual órgão será executada a despesa, e o valor indicado, entre outras informações. Mas estas listas são publicadas uma a uma, em planilhas de Excel, e sequer trazem os partidos dos quais os deputados e senadores fazem parte.

Com o propósito de demonstrar o caráter político da falta de transparência do Executivo e Legislativo, bem como do uso do recurso público, o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e o Observatório do Clima elaboraram um levantamento inédito, revelando o que é possível hoje saber sobre a execução deste orçamento entre janeiro e outubro de 2022.

O cruzamento de dados teve como objetivo juntar duas bases diferentes: a lista consolidada de indicações de emendas publicada pela Comissão Mista de Orçamento (Lista CMO) e a base de dados da execução das emendas (RP9) disponibilizada na plataforma Siga Brasil do Senado federal. Os dados foram cruzados a partir dos CNPJs indicados (CMO) e beneficiados (Siga).

Acesse a planilha com as bases e o cruzamento de dados

O levantamento seguiu os seguintes passos:

  • Foram reunidas todas as 56 listas publicadas pela CMO em uma só planilha, e foram acrescidos manualmente os partidos dos deputados e senadores que fizeram indicações de recursos para o ano de 2022.
  • Foi extraído do Portal Siga Brasil a execução das emendas RP9, com o filtro de CNPJs beneficiados por cada pagamento, incluindo os valores empenhados e pagos entre janeiro e outubro de 2022. Desta forma, não foram considerados os valores pagos referentes a restos a pagar pagos.
  • Foi feito o cruzamento de dados utilizando as duas bases a partir do CNPJ. Desta forma, foram correlacionadas as indicações para cada CNPJ com a respectiva execução orçamentária do RP9 para este mesmo CNPJ. O cruzamento utilizou a linguagem de programação (python).

Não foram considerados os valores relativos a restos a pagar pagos em 2022 (R$ 4,3 bilhões) que resultaram de indicações realizadas em anos anteriores, conforme valores apresentados na tabela 2.

No cruzamento que resulta, assim, da junção de duas bases, foram identificadas perda de dados/valores: i) de R$ 1,1 bilhões, em relação ao que foi indicado na lista da CMO; ii) de R$ 572 milhões de empenhos e R$ 129 milhões de pagamentos em relação aos valores da base de execução utilizada (Siga Brasil). As perdas de valores em função do cruzamento são registradas na tabela 2.

Tabela 2: Valores nas bases originais (CMO e Siga), valores capturados pelo cruzamento de dados e perdas de valores (dados de 2022)

Fonte: Siga Brasil/Senado  (data da extração: 24 de outubro de 2022).
Elaboração: Inesc e Observatório do Clima.


Para 2023 estão previstos no Projeto de Lei Orçamentária (PLOA 2023) mais R$ 19 bilhões. Isto significa, por exemplo, que a cada R$ 100 reais de recursos separados para despesas não obrigatórias – como o combate ao desmatamento, ao abuso e violência sexual contra crianças ou para saneamento urbano, entre tantas outras políticas – pelo menos R$ 15 serão distribuídos seguindo a vontade de um pequeno grupo de deputados e senadores com base em critérios políticos e partidários nada transparentes.

A apuração dos valores executados pelo orçamento secreto, incluindo os pagamentos dos restos a pagar pagos, só é possível porque os dados estão consolidados no portal Siga Brasil/Senado com uma marcação denominada RP9 (Resultado Primário 9), uma forma de classificação da despesa pública utilizada para separar a execução das despesas que tiveram como origem valores indicados pelo parlamentar relator do orçamento de outros gastos que também impactam no chamado Resultado Primário[1].

As emendas de relator estão concentradas na função saúde, que representou 57,4% dos R$ 28,79 bilhões já pagos; seguido da função urbanismo, com 11,53%; da assistência social, com 5%, e da educação com 4,68% (Siga/Senado).

Ainda que gastos mais elevados com saúde sejam de inegável urgência e relevância, os critérios políticos de destinação das emendas de relator representam um desvio inconstitucional e sem precedentes dos critérios estabelecidos para repartição dos recursos públicos destinados a esta política. Desvio semelhante ocorre com os recursos destinados à assistência social e educação. Como já alertou o Tribunal de Contas da União (TCU), estas políticas públicas se sujeitam a um regime jurídico-constitucional que exige critérios objetivos de escolha dos destinatários e repasse de recursos do orçamento da União. Assim, as emendas RP9 não são compatíveis com os princípios, diretrizes e objetivos constitucionais que norteiam o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (Suas) (TC 008.731/2022-5).

Não menos grave é a instrumentalização das demais políticas para a realização de pagamentos a prefeituras, bem como a pessoas jurídicas privadas que resultam no favorecimento de iniciativas ligadas a grupos políticos e partidários.

Exemplo sintomático é a execução da ação ligada ao Ministério da Cidadania, voltada ao desenvolvimento de atividades e apoio a projetos e eventos de esporte, educação, lazer e inclusão social, que deveria atender a todo o país. Esta ação tem sido utilizada para viabilizar a execução de emendas de relator que se concentram em poucos beneficiários e lugares. É o caso da ONG denominada Instituto Carioca de Atividades (ICA), que acumula em 2022 R$ 20 milhões empenhados e R$ 12 milhões pagos. De 2020 a 2022 a mesma ONG recebeu R$ 98 milhões em emendas, principalmente emendas de relator. O cruzamento de dados que apresentamos a seguir permitiu identificar quem indicou os recursos executados em benefício da ONG, são eles, Hugo Leal (PSD), Daniel Silveira (PTB) e Nicodemos de Carvalho Mota, este último sendo ele próprio o diretor administrativo do Instituto Carioca de Atividades, segundo página do Linkedin.

Escolhas metodológicas para o cruzamento de bases de dados

Embora classificado com o marcador RP9, o orçamento continua secreto, porque não existe hoje uma base pública de informação que relacione os valores indicados pelos deputados, senadores e usuários externos com os pagamentos efetivamente realizados. Ou seja, não é possível saber, de maneira oficial, quem indicou os valores pagos pelo Executivo federal.

A partir de 2021, por decisão do Supremo Tribunal Federal  (STF), começaram a ser publicadas no site da Comissão Mista de Orçamento (CMO) listas com os nomes dos parlamentares e suas respectivas indicações  de valores e beneficiários. Em 2022, já foram publicadas 56 listas com o nome de quem indica (deputado, senador e usuário externo, “qualquer pessoa” pode indicar beneficiários), o favorecido indicado (nome e CNPJ), a partir de qual órgão será executada a despesa, e o valor indicado, entre outras informações. Mas estas listas são publicadas uma a uma, em planilhas de Excel, e sequer trazem os partidos dos quais os deputados e senadores fazem parte.

Com o propósito de demonstrar o caráter político da falta de transparência do Executivo e Legislativo, bem como do uso do recurso público, o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e o Observatório do Clima elaboraram um levantamento inédito, revelando o que é possível hoje saber sobre a execução deste orçamento entre janeiro e outubro de 2022.

O cruzamento de dados teve como objetivo juntar duas bases diferentes: a lista consolidada de indicações de emendas publicada pela Comissão Mista de Orçamento (Lista CMO) e a base de dados da execução das emendas (RP9) disponibilizada na plataforma Siga Brasil do Senado federal. Os dados foram cruzados a partir dos CNPJs indicados (CMO) e beneficiados (Siga).

Acesse a planilha com as bases e o cruzamento de dados

O levantamento seguiu os seguintes passos:

  • Foram reunidas todas as 56 listas publicadas pela CMO em uma só planilha, e foram acrescidos manualmente os partidos dos deputados e senadores que fizeram indicações de recursos para o ano de 2022.
  • Foi extraído do Portal Siga Brasil a execução das emendas RP9, com o filtro de CNPJs beneficiados por cada pagamento, incluindo os valores empenhados e pagos entre janeiro e outubro de 2022. Desta forma, não foram considerados os valores pagos referentes a restos a pagar pagos.
  • Foi feito o cruzamento de dados utilizando as duas bases a partir do CNPJ. Desta forma, foram correlacionadas as indicações para cada CNPJ com a respectiva execução orçamentária do RP9 para este mesmo CNPJ. O cruzamento utilizou a linguagem de programação (python).

Não foram considerados os valores relativos a restos a pagar pagos em 2022 (R$ 4,3 bilhões) que resultaram de indicações realizadas em anos anteriores, conforme valores apresentados na tabela 2.

No cruzamento que resulta, assim, da junção de duas bases, foram identificadas perda de dados/valores: i) de R$ 1,1 bilhões, em relação ao que foi indicado na lista da CMO; ii) de R$ 572 milhões de empenhos e R$ 129 milhões de pagamentos em relação aos valores da base de execução utilizada (Siga Brasil). As perdas de valores em função do cruzamento são registradas na tabela 2.

Tabela 2: Valores nas bases originais (CMO e Siga), valores capturados pelo cruzamento de dados e perdas de valores (dados de 2022)

Fonte: Siga (extração de dados 24 de outubro de 2022), lista CMO e cruzamento de dados.
Elaboração: Inesc e Observatório do Clima.

A checagem de dados demonstrou que a perda de valores pode ser atribuída, principalmente, ao desencontro de CNPJs entre as duas bases; ou seja, não execução de valores indicados (perda de R$ 1,1 bilhão) ou execução de valores para CNPJs sem correspondente na lista de indicações (perda de R$ 572 milhões em valores empenhados e R$ 189 milhões em valores pagos).

Em relação às perdas de valores empenhados e pagos cabe citar um exemplo. Em 2022 foi feito empenho de R$ 77,35 milhões e pagamento no valor de R$ 15,36 milhões para a empresa Construmaster Construção e Locação de Máquinas LTDA (CNPJ: 12463759000190), localizada no Maranhão, para realização de serviços de pavimentação de rodovias. Esta execução (que pode ser localizada na planilha de dados, na aba “base SIGA”) não foi capturada pelo cruzamento, uma vez que o CNPJ não possui correspondente na lista da CMO, ou seja, não aparece nenhuma indicação para este beneficiário/CNPJ.

O cruzamento demonstrou grande ocorrência de casos em que mais de uma pessoa/deputado/senador de mais de um partido indica um mesmo CNPJ como beneficiário, situação que predomina na execução de recursos da saúde. Nestes casos, os valores da execução por CNPJ beneficiário só podem ser individualizados a partir da atribuição manual de valores entre parlamentares e usuários externos que realizaram a indicação.

Diante disto, que só reforça o caráter secreto do orçamento, optou-se por um tratamento manual da base a fim de atribuir, quando possível, os valores pagos às respectivas indicações, de forma individualizada. Para tanto foram adotados como critérios:

  • Distribuição dos valores pagos entre as indicações nos casos em que a somatória dos valores indicados é igual ou muito próxima ao valor pago e/ou quando a somatória dos valores pagos é superior aos valores indicados;
  • Não distribuição da execução entre indicações quando os valores pagos são inferiores aos valores indicados; onde não há correspondência de valor que permita correlacionar o pagamento a uma ou mais indicações; ou onde um valor pago é igual a um mesmo valor indicado por mais de um parlamentar e/ou usuário externo;
  • Atribuição preferencial de valores de execução a deputados e senadores em detrimento de indicações de usuários externos.

Desta forma, a Coluna D do cruzamento atribui linha a linha os pagamentos efetivamente realizados às respectivas indicações de parlamentares e usuários externos, quando possível. Isto significa que em muitos casos não foi possível atribuir valores, o que resultou na não atribuição de execução no valor de R$ 957 milhões.

O objetivo do presente levantamento foi o de demonstrar o caráter político da falta de transparência das emendas de relator e, também, estimular as pessoas a se apropriarem desta base de dados que, apesar de limitada no tempo, dado que abarca somente recursos pagos de janeiro a 24 de outubro de 2022, é notadamente reveladora do controle do orçamento público por partidos e pessoas.

Os resultados do cruzamento de dados:

No cruzamento foi possível atribuir individualmente emendas pagas no valor de R$ 5,88 bilhões (Coluna D). Como os valores pagos no cruzamento somaram R$ 6,8 bilhões (Coluna C), registra-se que não foi possível atribuir individualmente o valor de R$ 1 bilhão.

Dos R$ 5,88 bilhões de valores atribuídos tem-se que:

  • Seis partidos (PP, PL, PSD, MDB, UNIÃO E REPUBLICANOS) concentram 81% do total executado por indicação de partidos.
  • Usuários externos controlam sozinhos 31,3% dos recursos pagos.

O cruzamento de dados mostrou que a possibilidade de usuários externos realizar indicações de emendas, fato já amplamente noticiado pela imprensa, tem sido intensamente utilizada para mascarar a execução de elevados valores, o que seria factível caso não houvessem padrinhos – partidos e parlamentares – por trás de tais indicações.  Vale notar que consta no presente levantamento as execuções atribuídas, por exemplo, a Roberto Rodrigues uma das pessoas presas na operação quebra ossos.

Tabela 3: Síntese das indicações e execuções por partido (valores indicados e pagos de janeiro a outubro de 2022)

Fonte: Siga (extração de dados 24 de outubro de 2022), lista CMO e cruzamento de dados.
Elaboração: Inesc e Observatório do Clima.


Os maiores executores do orçamento secreto

A planilha que resultou do cruzamento de dados das listas da CMO com os dados orçamentários do Siga também permite a identificação de quais deputados, senadores e usuários externos tiveram os CNPJs por eles indicados beneficiados pela execução orçamentária.

No topo da lista da execução do orçamento secreto aparece o deputado Arthur Lira (PP/AL) que indicou R$ 134,52 milhões em emendas para CNPJs que tiveram uma execução de R$ 127,2 milhões.

Em segundo e quarto lugar na lista de quem mais executa o orçamento secreto estão dois usuários externos cujos nomes já foram identificados pela imprensa por terem indicados valores elevados, sem que se soubesse, contudo, quais os montantes pagos associados às indicações. São eles: Carlos Guilherme Pereira Junior e Dener Bolonha.

Tabela 4 – Os maiores executores do orçamento secreto

Fonte: Siga (extração de dados 24 de outubro de 2022), lista CMO e cruzamento de dados.
Elaboração: Inesc e Observatório do Clima.

Os dados aqui revelados foram produzidos ao longo de três semanas de trabalho, exigiram a utilização de linguagem de programação e um extenso trabalho manual (Coluna D) de atribuição de valores executados às indicações, demonstrando o caráter político e inaceitável da falta de transparência e do destino de uma parcela cada vez maior do orçamento público federal sem o amparo legal.


[1] Além do chamado RP 9 existem as despesas primárias obrigatórias (RP1), as despesas primárias discricionárias (RP2), as despesas financeiras (RP0) e outras formas de emenda parlamentar: emendas individuais (RP6), emendas de bancada (RP7) e emendas de comissão (RP8).










sexta-feira, 25 de novembro de 2022

A ESCOLA SEM MANUAL DE INSTRUÇÃO

 O paradigma da transmissão de saber tornou a sala de aula um baluarte de certezas e ordem. Mas podemos recriá-la como espaço de crítica e experimentação, onde a teoria é amiga dos saberes mundanos. Isso vale para escolas – e para a vida

Por 

Imagem: Rui Palha

Por Antonio Lafuente | Tradução: Rôney Rodrigues

Na sala de aula a transmissão do saber é considerada um fato inquestionável. O saber é transmitido dos professores aos alunos, dos centros para as periferias e das metrópoles para as colônias. Todo o aparato educacional, desde seus manuais ou leis até suas salas de aula ou prédios, reivindica a certeza da transmissão com fé cega.

Não é fácil questionar o axioma civilizacional de que o conhecimento vai daqueles que sabem aos que não sabem, dos de cima para os de baixo e, já em termos geopolíticos, do norte para o sul. E assim facilmente as práticas de tutelagem, as políticas de dependência e as economias de escassez são legitimadas. A ordem precisa de regras tão simples quanto eficientes. Se a gravitação universal descreve como os corpos caem, a da transmissão global prescreve como os conhecimentos circulam.

Os livros são repositórios de certezas; os professores, mentores daquilo que é certo; as salas de aula, caixas de ressonância sincronizadas; e as escolas, baluartes da melhor ordem possível. Cada aula é uma confirmação da estabilidade que necessitamos e as provas é de que estamos no caminho certo. A transmissão do saber é o fio que costura tudo, a seiva que alimenta o organismo e a pedra que sustenta a construção.

Temos evidências, no entanto, de que as coisas poderiam ser contadas de outra forma. Há alguns dias eu estava lendo um texto do meu amigo brasileiro, Moises Alves de Oliveira, que descreve o que significou a introdução do ensino de química experimental nas escolas do Brasil. Desde o final do século XIX, tornou-se constante a prática de adquirir instrumentos científicos em escolas de todo o mundo para, assim, estimular os alunos a entrarem em contato com a natureza experimental de certos saberes. Supõe-se que os alunos replicaram experimentos e verificaram o que seu manual sentenciava.

Os experimentos então, vistos a partir da sala de aula, eram o meio utilizado pelos cientistas para confirmar suas teorias e os alunos aprendizes do certo. Em química, no entanto, com frequência acontecia de os reagentes necessários estivessem vencidos, contaminados ou degradados. Os professores tiveram então que suprir essas deficiências inovando os procedimentos para conseguir que os resultados se aproximassem o máximo possível do que prescrevia o manual de instruções.

Os professores pensavam que sua função consistia em confirmar o que já era sabido. Falhar era impossível. E, quando isso era inevitável, atribuíam o fracasso incipiente à sua incapacidade de replicar ou à sua incompetência em atuar como um verdadeiro acadêmico. O sistema conspirava para que as regras fossem cumpridas e que fosse rechaçada qualquer sombra de incerteza. Os professores eram obrigados a mostrar que em sua sala de aula as leis da natureza também era cumpridas. E eles se ajustavam para conseguir isso. E para alcançá-lo, obrigaram-se a um exercício de inovação que convertia a sala de aula em um verdadeiro espaço de experimentação.

A sala de aula deixava de ser um espaço concebido para a transmissão de saber e convertia em um espaço de produção. Já não se trabalhava para confirmar o que se sabia, mas para entender as condições de produção dos fatos confiáveis. Os professores não atuavam como técnicos de laboratório submissos e neutros. Eles não eram um simulacro de cientistas, pois as circunstâncias os obrigavam a operar como fazem os pesquisadores profissionais. Tiveram que abrir mão do propósito prescrito e inventar como trabalhar a partir do aproximado, do incompleto e do provisório.

Eles descobriram o usual nas práticas experimentais. Aprenderam que na ciência não existe o perfeito e que tudo permanece sempre em aberto: nada é absoluto ou definitivo. Para o nosso professor de química citado, ensinar não era transmitir o que já se sabia, mas experimentar o que era possível. Ensinar deixou de ser um ofício retórico e se converteu, como nos ensina Jorge Larrosa, em um trabalho para artesões. Aprender, como consequência, não era replicar, mas refazer, reconfigurar ou redesenhar.

O exemplo do professor de química brasileiro não é anedótico. Recordamo-lo porque nos convida a considerar a sala de aula como um espaço crítico, um lugar onde nunca ocorrem as condições ideais de replicação imaginadas nos gabinetes ministeriais ou nos manuais de instruções. Um lugar, então, onde os professores estão sempre improvisando, onde a cada dia a ordem ameaçada é restaurada, onde tudo é instável, inseguro e inefável. A sala de aula seria então um dos espaços por excelência da crítica.

Passamos décadas pensando em como fazer manuais de instruções. É fundamental para organizações industriais ou administrativas que a mediação entre produtos e usuários seja feita por um simples manual de instruções. Isso poupa muito trabalho e muito tempo. Um bom manual de instruções estabiliza o mundo, cria a ilusão de que as coisas funcionam e de que tudo está sob controle. Os fatos, porém, demonstram que os usuários não entendemos o que nos dizem e que estamos sempre improvisando. Não é que eles estejam mal redatados ou que não tenha havido inteligência em sua construção. Não é isso. O problema é que o usuário médio a quem são direcionados não existe. Não é que sejamos estúpidos, mas sim que somos muito criativos. Os manuais de instruções, inclusive os interativos, assumem que a linguagem não é polissêmica, que o leitor é imparcial e que as circunstâncias são neutras. Mas isso nunca ocorre. Tampouco na sala de aula.

As máquinas geram seu mundo. Nos colocam a seu serviço. E esperam que o façamos sem resistência. Um manual de uso não se limita a nos dizer como usar uma máquina corretamente, mas contém o germe de um princípio de subordinação. Nos treina para aceitar que só é possível o mundo garantido pelas infraestruturas. E por isso faz tanto sentido falar de infraestruturas como garantia dos nossos direitos e como epítome da economia dos cuidados. O fato dos manuais de instruções parecerem pouco claros, assim como a relutância em obedecê-los, contém a esperança de que as coisas possam ser diferentes de como os projetistas as imaginaram. O que sabemos é que a relação entre humanos e máquinas não é entendida como uma interação entre duas entidades independentes, mas devemos imaginá-la como uma relação de coprodução mútua.

Na sala de aula quase nunca acontece o que quem fez os materiais didáticos imaginou. O imprevisível sempre acontece. Nunca impera isso que chamamos de normalidade. O normal é uma ficção burocrática, distante e abstrata, como conta Paulo Freire em El maestro sin recetas. E embora todo o panorama educacional esteja repleto de leis, portarias, instruções, manuais e materiais didáticos, a verdade é que deveríamos entender melhor o que acontece na sala de aula, assumindo que o caos é o contexto onde a educação acontece. E mais do que censurar os professores que não sabem, não entendem ou não se esforçam, deveríamos imaginá-los como atores experientes em inovação pedagógica.

A sala de aula, então, não seria um espaço para transmitir o saber, mas sim para experimentar com os manuais de instrução e com a precariedade de materiais, das temporalidades e dos resultados. Nada é como foi imaginado, mesmo que se pareça, e reconhecer essa nuance equivale a admitir que não improvisamos por ignorância, mas por responsabilidade. O paradigma da transmissão teria de ser substituído pelo da experimentação. À escola não iríamos à escola para adicionar novos conteúdos, mas para adaptá-los às nossas circunstâncias.

E se vale a pena na escola, deve valer na vida. As escolas, de repente, estariam cheias de pessoas talentosas e dedicadas, em vez de ocupadas por pessoas preguiçosas, obsoletas e reformáveis. A sala de aula não seria imaginada como mais um espaço de escassez, mas como um espaço criativo, emergente e inovador. As leis, como outros manuais de instruções, em vez de focarem na suposta necessidade de mudar a vida na sala de aula, deveriam se reconciliar com a ideia de que a experimentação é o motor do que ali acontece. E isso implica confiar, porque o melhor dos livros de receitas e de qualquer outra forma de ensinar é que nos obrigam a improvisar para que eles sejam adaptados ao contexto em que vivemos. E chamamos isso de aprendizado.



quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Gilberto Carvalho: “Para não repetir 2013 e 2016”

 Ex-ministro de Lula aponta: diante da inédita direita militante, será preciso ir além da inclusão econômica e apostar na participação social. Diálogo com as periferias e os evangélicos é crucial, com projeto de educação e comunicação popular

Por aPública



Gilberto Carvalho em entrevista a Marina Amaral, na Pública

Fundador do PT e um dos amigos mais próximos de Lula, o filósofo e cientista político Gilberto Carvalho se tornou conhecido por seu papel de articulador entre os movimentos sociais e a sociedade civil organizada nos governos Lula e Dilma. Ex-ministro de ambos, Gilberto diz que está acompanhando Lula no processo de transição, mas jura que não vai para o novo governo “embora seja uma tentação enorme”; ele diz que prefere atuar como interface entre o PT e o governo no projeto que considera o mais importante do momento: a educação popular, nos moldes de Paulo Freire, para estimular a participação social das parcelas não organizadas da população.

“O governo Lula foi um governo poroso, que se abriu para a sociedade, mas a participação social foi limitada porque atendeu a uma elite, à sociedade organizada, com consciência e experiência de organização. Nós não conseguimos dialogar com a grande massa.” Para ele, os protestos de 2013 e “a ausência de gente para defender o nosso projeto diante do impeachment” demonstram, “que a inclusão foi econômica, bem feita, meritória, mas não houve a inclusão cidadã”, diz. 

Uma preocupação ainda mais relevante quando “a cara da sociedade brasileira se divide entre os que elegem Lula e os que elegeram a Damares, o Magno Malta, a Zambelli. A gente acha risível o que eles estão fazendo [os protestos contra o resultado das eleições] mas que é um sinal do que vem pela frente. Bolsonaro sai como um líder popular de direita. O que não acontecia há muito tempo no Brasil. Um líder de direita que é popular, que fala como Lula a linguagem popular, tem hábitos populares na loucura dele e tudo”, diz.

Para o diretor da Escola Nacional de Formação do PT, o partido envelheceu e perdeu contato com as periferias hoje “ocupadas pelo tráfico, pela milícia e pelos neopentecostais”. “Não é mais o mundo do ABC, do movimento sindical, da carteira assinada, é o mundo da informalidade, desse salto de comunicação que a Internet trouxe, como é que nós vamos pensar essa participação?”

É com esse público, especialmente com os evangélicos, que a esquerda tem que aprender a dialogar, diz. “Durante a campanha, o Lula resistiu muito a essa ideia de que tinha que se comunicar especificamente com esse grupo. Ele dizia: ‘eu sou candidato de todos, eu vou falar pra todos. Porque o evangélico também é operário, dona de casa, estudante’. A mudança veio no final do segundo turno, com a carta aos evangélicos, mas sempre com resistência de Lula. 

“Aquela carta foi um parto, ele não queria. Teve uma tarde que uma senadora do Maranhão, a Eliziane Gama, o enfrentou e disse: ‘O senhor não pode por causa de um capricho pôr a perder uma eleição. Porque eu sou crente e estou vendo o que está acontecendo’. Aí ele acabou cedendo. “ O Lula tem uma fé pessoal muito fundada, herança da mãe, dona Lindu, mas ele tem um pudor ético muito grande em usar a fé como elemento eleitoreiro. Ele falava pra gente: ‘Eu não ponho o pé numa igreja numa campanha eleitoral’. Ele não quer se aproveitar da fé do povo, é muito bonito, mas ao mesmo tempo ele radicaliza isso e não leva em conta no que se transformou o Brasil”.

Para Gilberto, sem esse diálogo com os evangélicos e um projeto sólido de educação popular – o que inclui também um novo projeto de comunicação – “o risco de repetir 2013, e 2016 sobretudo, está dado”. Confira a entrevista. 

Como o governo Lula está tratando da articulação com os movimentos sociais, com a sociedade civil, com a reconstrução dos conselhos com a participação da sociedade civil?

Já fizemos a reunião com os sindicalistas e, depois do Egito, Lula quer fazer uma reunião com os movimentos sociais, o que denota claramente a vontade dele de fazer um governo com forte participação social. Se já era importante esse tema antes, agora eu diria que ele é essencial, dramaticamente importante. Porque em 2003 quando a gente assume, você tem uma herança do PSDB, e por tradição nossa, fizemos um governo de importante participação social. O Lula se orgulha muito disso, ele sempre fala das 113 conferências, dos conselhos que nós revitalizamos ou criamos, ele fala das negociações coletivas, das audiências públicas para todos os temas mais importantes e do fato do Palácio ter tido uma porta aberta. Assim que a gente chega a Brasília ele dá uma ordem: ‘esse Palácio não pode dispensar ninguém que vier aqui sem um atendimento. Se vier elogiar, é bem vindo, se vier demandar vamos ouvir, se vier xingar vamos ouvir’. Na época eu era chefe de gabinete e nós criamos uma equipe de recepção das pessoas na porta do Palácio. Para ali vai de tudo. Vai desde grandes movimentações para protestar, até ameaçando invadir, até pessoas que vem celebrar, pedir. Então foi um governo poroso, um governo que se abriu para a sociedade. Agora foi limitada essa participação porque atendeu a uma elite da sociedade organizada, a elite de consciência, de experiência de organização, de movimentos sociais em geral. Nós não conseguimos dialogar com a grande massa. Naquele período, aparentemente, isso não fez muita falta. Porque a abundância das conquistas econômicas – aumento do salário mínimo, salário mínimo para os idosos, Minha Casa, Minha Vida, Bolsa Família – atendeu a uma grande demanda e houve uma satisfação da sociedade. Tanto que ele sai com aquela aprovação absurda de 87%. Mas essa ausência de uma comunicação com a grande massa se revela quando bate a crise.

Os protestos de 2013?

Sim, em 2013, quando com inspiração e financiamento dos americanos, surge MBL, Vem pra Rua, aquela coisa toda. Aquela massa que foi beneficiada, perde com muita facilidade, passa para o outro lado, porque ela não tinha consciência. Não tinha uma leitura da realidade que pudesse distinguir as coisas. E aquele povo que nós tiramos da miséria, da pobreza, que de alguma forma passa a ter hábitos de uma classe média baixa, já imediatamente absorve os valores dessa classe média: o individualismo, o apreço à violência contra o outro, o sexismo, o desprezo pelo pobre, aquela coisa típica da classe média que agora está amarelada pelo país afora. A ausência de gente para defender o nosso projeto diante do impeachment foi outra demonstração que a inclusão foi econômica, bem feita, meritória, mas não houve a inclusão cidadã. As pessoas foram presas fáceis dessa mentalidade e de outro fenômeno que cresceu exponencialmente, também no nosso tempo, que são as religiões neopentecostais, que ocuparam o espaço de uma parte importantíssima da periferia do Brasil.

E como dialogar com essa população agora com a radicalização do bolsonarismo e a desconfiança em relação ao PT?

Nós temos que repensar o conceito de participação. Temos que ir além do que chamo de elite, a sociedade organizada, dialogar com outra massa, evidentemente muitíssimo mais numerosa, que não tem a cultura de participação mas que se organiza de alguma forma. Eu estou falando aqui da juventude, você viu que maravilha foi agora a participação deles nessa campanha. A pergunta que nós temos que nos fazer é: essa energia maravilhosa que brotou nessa campanha ela vai ser desperdiçada? Ela vai se perder quando voltar para o cotidiano ou nós vamos conseguir transformá-la numa força capaz de movimentar uma turbina, impulsionar o avanço do país? Qual é a forma de nos comunicarmos com os evangélicos, que pode abrir uma cunha para a gente ter pelo menos um setor aliado? Porque hoje a periferia do Brasil não está mais ocupada pelas CEBs (comunidades eclesiais de base, ligadas à Igreja Católica progressista), nem pelas Pastorais. Ela está ocupada pelos neopentecostais, pelo tráfico e pela milícia. Não é mais o mundo do ABC, do movimento sindical, da carteira assinada, é o mundo da informalidade, desse salto de comunicação que a Internet trouxe, como é que nós vamos pensar essa participação?

Parece um salto grande também para um governo. Vocês tem alguns modelos estudados, de outros países, por exemplo?

Nós estamos pesquisando, tentando levantar, em termos de América Latina, a Espanha, que tem alguns avanços nessa área. Porque se nós não fizermos isso, o risco de repetir 2013, e 2016 sobretudo, está dado. O Brasil que sai da eleição não é um Brasil de cara boa. Porque 2 milhões [de votos de diferença] não é nada. Podia ter ido para o outro lado. Qualquer incidente que tivesse ocorrido, ou qualquer bobagem que o Bolsonaro tivesse deixado de fazer…Ele nos ajudou. Então a cara da sociedade brasileira se divide entre os que elegem Lula e os que elegeram a Damares, o Magno Malta, a Zambelli. A gente acha risível o que eles estão fazendo [os protestos contra o resultado das eleições] mas que é um sinal do que vem pela frente. Bolsonaro sai como um líder popular de direita. O que não acontecia há muito tempo no Brasil. Um líder de direita que é popular, que fala como Lula a linguagem popular, tem hábitos populares na loucura dele e tudo.

Você acha que isso já está sendo levado em consideração durante essa transição de governo?

Levar em consideração até que é fácil, o difícil é dar consequência a isso.

Não se trata apenas de retomar a participação civil, portanto, o que já parece uma tarefa e tanto.  

Essa retomada, felizmente, a gente faz com o pé nas costas. Tem movimentos que dão conta disso. Nós lançamos a ideia dos comitês populares que também vão nessa perspectiva. 

Como funcionam os comitês populares?

A ideia é criar células – já foram criadas, mas queremos criar muitas – células por bairro que procurem organizar a população, mais ou menos como eram as comunidades eclesiais de base, só que sem o caráter religioso. É você criar um ambiente familiar em pequenos grupos pra olhar a realidade, analisar a realidade, no velho método do Paulo Freire: educação a partir da luta e da vida política. A gente começou isso em vários estados, pegou muito na campanha, fazia os vira-votos, fazia as conversas com o povo. Mas é um número muito pequeno ainda frente à necessidade. A ideia é que esses comitês se articulem com a sociedade organizada, mas nós temos que entrar dentro da cultura popular para buscar formas de também seduzir e atrair e conseguir organizar essa juventude e toda essa gente que não se adequa ao nosso modo tradicional de fazer política. Nós vamos ter que dar tratos à bola.

E quem está pensando nisso, Gilberto? É uma tarefa mais do governo ou do PT?

Mistura-se, aí é que está. E é nossa tarefa identificar o que é governo e o que é sociedade. No governo passado nós tivemos um pequeno núcleo chamado Recid – Rede de Educação Cidadã, que funcionava dentro da Secretaria Geral da Presidência onde eu estava. E ele fazia um trabalho interessante, de ir nas pontas, juntar as pessoas, nós tínhamos 50 pessoas liberadas no Brasil todo para fazer trabalho e educação popular. Funciona assim: você vai inaugurar um “Minha Casa, Minha Vida”. Então você vai lá para conscientizar as pessoas, de onde estava vindo aquele dinheiro, porque aquele dinheiro estava indo pra ele e não para uma grande empresa ou para pagar dívida, fazer uma formação de consciência de classe. Nós queríamos ampliar isso. O Lula está muito interessado, mais do que antes. 

Na sua opinião, o Lula ficou mais próximo dos movimentos sociais depois das vigílias em Curitiba, quando ele estava preso?

Isso teve muito impacto nele. A prisão ajudou o Lula a entender quem são os amigos verdadeiros, os que são aliados táticos, estratégicos, os oportunistas. Ele sabe muito bem, isso é coisa dele, quem ligou e quem não ligou pra saber dele nesse tempo. 

E agora os movimentos sociais participam da transição, né? O MST, o MTST, os movimentos por saúde, educação, meio ambiente e o pessoal da memória e verdade, que ficou bem esquecido nesse período.

Sim, voltam, todos vão participar. E os movimentos ambientais agora com muito mais força. Tem outro aspecto do amadurecimento do Lula e do nosso projeto. Em relação ao modelo de desenvolvimento, a cabeça do Lula era uma em 2003 e outra agora. Agora ele leva mais em conta essa questão do equilíbrio, de uma visão mais holística. Eu diria que o conflito que ele teve com a Marina [Silva, ex-ministra do meio ambiente] será muito menor agora.  

O Lula também anunciou a criação do ministério de Assuntos Indígenas, já se falou em secretaria dos assuntos religiosos, vocês estão pensando em criar novas estruturas que atendam essa demanda social? Vai voltar, por exemplo, um Ministério de Direitos Humanos? Mulheres e Igualdade Racial terão sua própria estrutura?

É um tema que ainda não está muito bem amarrado. O que eu posso lhe dizer com certeza é que Ministério da Mulher, do Negro, Direitos Humanos terão unidades próprias. Assim como esse ministério que estamos chamando de Povos Originários, em que o Lula quer incluir, além dos indígenas, os quilombolas, os ribeirinhos, os povos da floresta. E essa questão dos Assuntos Religiosos que você citou nós temos que amadurecer mais. Há países, como o México, que tem o Departamento de Religiões. Sabemos que esse é um tema que precisamos dar atenção, mas não sei se é o caso de um ministério. Na antiga Secretaria dos Direitos Humanos, por exemplo, tinha uma secretaria de diversidade religiosa. E, de fato, nós temos que encarar de frente esse fenômeno, não apenas da intolerância, mas também de encontrar um espaço de diálogo com as neopentecostais. Nós não podemos mais subestimar ou ignorar como fizemos. Durante a campanha, o Lula resistiu muito a essa ideia de que tinha que se comunicar especificamente com esse grupo. Ele dizia: eu sou candidato de todos, eu vou falar pra todos. Por que o evangélico também é operário, dona de casa, estudante. Mas aí no segundo turno, quando uma parte dessas lideranças jogou pesado, ameaçando desequilibrar a disputa…

Aí veio aquela carta aos evangélicos…

Aquela carta foi um parto, ele não queria. Teve uma tarde que uma senadora do Maranhão, a Eliziane Gama, o enfrentou e disse: “O senhor não pode por causa de um capricho pôr a perder uma eleição. Porque eu sou crente e estou vendo o que está acontecendo”. Aí ele acabou cedendo, disse pra ela: “então você faz a carta”. Aí fizemos: eu, Eliziane, Marina ajudou muito, e um grupo de pastores, e ele concordou em assinar mas não queria fazer o lançamento da carta. A gente montou o ato à revelia e eu avisei ele na noite da véspera: “Olha vão ter 200 pastores no ato”. Ele reclamou mas acabou indo (risos). E foi importante. Eu conto essa história meio anedótica para dizer o seguinte: a esquerda passou a ignorar a periferia, essa que é a questão importante. Nós fomos perdendo a periferia à medida que aliados fortes, que nos puxavam para a periferia, foram se fragilizando: as comunidades eclesiásticas, os movimentos de base.

E o próprio partido, não?

O partido, sobretudo. Nós fomos nos burocratizando, dando ênfase ao trabalho institucional achando que governando a gente muda o país. Isso não é verdade. O que muda pra valer é a luta na rua, é a briga por direitos. E os evangélicos foram ocupando esse espaço, de forma admirável, competente, a ponto de serem muitas vezes o único recurso que o pobre tem pra ter um nome, pra ser reconhecido, botar uma roupinha nova, pra receber uma cesta básica, um consolo, tirar o pai da cachaça, o jovem da droga. Como é que você vai contra um negócio deste? 

Mas o PT, mesmo o Lula, já teve uma proximidade com lideranças de igrejas neopentecostais no passado. O que mudou?

Mas é um equívoco. A gente fazia uma aproximação por cima. Quando a gente estava no Estado, interessava a eles ter essa relação. Quando a barca vira, eles pulam pro outro lado. Mas com a base nós não tínhamos contato. Quer dizer, havia algum contato. Em 2020, nós tivemos 20 mil candidatos a vereador no país e 2 mil e pouco eram evangélicos. Então tem uma certa presença, mas não é uma presença pra valer. E aí tem que entender uma coisa: os movimentos sociais, MAB, MST, tiveram origem e foram fortemente estimulados pelo trabalho de base da Igreja progressista. Quando o papa João Paulo II faz aquele trágico acordo com o [Ronald] Reagan e passam a perseguir a Teologia da Libertação, eles sabiam o que estavam fazendo, os americanos. Eles cortaram uma fonte dos movimentos sociais de toda a América Latina e ao mesmo tempo mandaram os neopentecostais para cá. De tal sorte que agora, o jogo se inverteu: a fonte da direita popular também é a igreja mas uma outra igreja. O desafio que se coloca para nós é o seguinte: qual é a possibilidade de fazer surgir, estimular, no meio evangélico, correntes progressistas? Quando a gente mostra que a nossa proposta tem muito a ver com o evangelho – justiça, fraternidade, solidariedade. O Bolsonaro não tem nada a ver com esses valores. Essa é a contradição: a direita é anti evangélica. Essa aproximação que houve entre eles é de puro oportunismo. As cúpulas ganharam muito recurso, muita isenção tributária, muita licença pra rádio e televisão, e passaram a ter acesso direto ao Palácio, o que é muito importante pra eles.  

Voltando um pouco aquela questão do Lula, porque ele não queria fazer um discurso específico para os evangélicos?

O Lula é uma pessoa curiosa sob muitos aspectos. Ele tem uma fé pessoal muito fundada, herança da mãe, dona Lindu, mas ele não tem uma fé comunitária, celebrativa. Ele respeita as igrejas, acha importante, mas ao mesmo tempo não está no coletivo. Além do mais, ele tem um pudor ético muito grande em usar a fé como elemento eleitoreiro. Ele falava pra gente: “Me convidem pra ir ao Círio [de Nazaré] à Aparecida [do Norte] mas fora da campanha eleitoral. Não me peçam que eu jamais vou. Eu não ponho o pé numa igreja numa campanha eleitoral”. Ele não quer se aproveitar da fé do povo, é muito bonito, mas ao mesmo tempo ele radicaliza isso e não leva em conta no que se transformou o Brasil. 

Você acha que ele iria como presidente em uma Marcha para Jesus?

Jamais. E pra eles é importante. Você veja, o Bolsonaro não tem um comportamento de um cristão mas o fato de ele ir a uma igreja, de se batizar no Rio Jordão, falar em Deus toda hora, basta pra eles. Mas estou dizendo tudo isso para falar o seguinte: a nova participação social tem que contemplar esses aspectos. Se não, ela não é participação efetiva.

E esse trabalho de base que você vem falando não passa mais do que pelo governo por reavivar a militância do próprio partido pra fazer esse diálogo?

Passa. Só que esse reavivamento não se faz num estalar de dedos. E o governo pode ser um estimulador. Eu não acho que o governo tem que ser um grande educador popular, mas ele pode induzir, estimular, constituir desafios que a militância se sinta chamada a construir. Mesma coisa vale para a comunicação, e já que estou na Pública, tenho que falar disso. A maneira como nos relacionamos com a imprensa, nos governos Lula e Dilma, foi um desastre. Tivemos uma política de submissão aos grandes meios, fizemos uma política republicana, entre aspas, da chamada mídia técnica. Onde ganhava verba quem tinha mais audiência. Nós congelamos – não estimulamos – o surgimento de novos meios, cooperativas de jornalismo. Demos muito dinheiro, muita licença para funcionamento dos meios, insisto, de forma submissa. Tanto nesse caso como na nomeação de ministros acho que em vez de ter consciência de classe nós tivemos complexo de classe. E vamos ter que mudar porque sem a comunicação você não consegue fazer educação em massa. 

Mas já tem uma nova política de comunicação sendo pensada?

Ainda não discutimos isso no concreto como vai mudar isso. Lula verbaliza a necessidade dessa mudança. Claro que agora é outro mundo, porque a Internet passou a forçar uma democratização que não podemos ignorar. E sem a comunicação não temos condição de fazer uma educação de massa. Minha opinião: acho que temos que ser um governo ousado e lançar metas mobilizadoras. Por exemplo: por que não mobilizar os jovens universitários para um projeto de educação popular para combater o analfabetismo e o analfabetismo funcional, para fazer brigadas de trabalho nas periferias?

E a juventude do PT, vocês estão ouvindo? Eu me lembro que em 2013, eles se queixaram muito de que não foram ouvidos quando começaram as manifestações de junho. Você imagina um papel para eles nesse governo?

Nós nunca conseguimos resolver bem essa questão. Aparentemente tem uma contradição: quando você traz o jovem para dentro da estrutura partidária a tendência é ele envelhecer e entrar na lógica da burocratização. As juventudes que eu vejo que deram mais certo politicamente, foram as juventudes ligadas a movimentos. Como o pessoal do Levante, por exemplo. É uma outra pegada. A juventude do PT se queixa, com razão, mas ao mesmo tempo, salvo raras exceções, ela não consegue inovar, tomar iniciativas. Tem uma lógica da estrutura partidária que termina podando a juventude. E não quero responsabilizá-los por esse tipo de trabalho de massa que precisamos porque não seria justo. O país mudou muito. Pela primeira vez, além de um líder de direita popular, temos direita militante. A gente estava habituado a enfrentar uma direita que tinha máquina, comunicação e dinheiro.

Mas não a rua. 

Exatamente. Nossas estruturas envelheceram perto do que acontece hoje. Se nós não conseguirmos ampliar a consciência, dialogar com a massa, o risco de uma conflagração é muito grande. O risco de Bolsonaro voltar, os boicotes. Então estamos inquietos e preocupados com isso. Não é que a gente não valorize a participação da sociedade organizada, pelo contrário. Vamos dinamizar esses canais e isso será muito importante. Mas não dá pra ficar nisso, tem que abranger, tem que massificar, tem que disputar a leitura da realidade.

E isso significa também um trabalho intenso nas redes sociais, certo?

Muito. Sem dúvida. A nossa escola (Escola de Formação Política do PT) tomou uma iniciativa de fazer uma plataforma de participação no programa de governo. Não foi uma coisa que teve muita repercussão, mas teve muita participação, muitas propostas chegaram. Há um desejo de participação e as redes são uma forma muito adequada, facilitam muito. 

E quem está centralizando essa questão do diálogo com as massas, como você diz? Tem um grupo dentro do PT?

É uma questão que está brotando de muitos lados. Agora na transição vamos ter que montar um grupo específico para a participação social. E vamos ter que pedir para a sociedade nos orientar. Vamos precisar ouvir muita gente. Uma das coisas mais importantes que aconteceram na campanha, especialmente a partir da segunda semana do segundo turno, foram as chamadas atividades autogestionadas. Sem o partido participar e às vezes sem o partido local. Fabricando bandeirinhas, cartazes, se mobilizando para os vira votos. Isso ajudou muito a campanha. Uma das coisas. Claro que sem o Lula a gente não ganharia a eleição. Mas essa frente muito ampla que envolveu a sociedade, esse sentimento de que era preciso votar contra o Bolsonaro, mesmo que não fosse pelo Lula, e a militância foram muito importantes. 

E como fica essa frente ampla no governo diante das demandas dos movimentos sociais, da militância, por um governo de esquerda?

É preciso ter clareza que não é um governo nem socialista nem do PT. É o governo de uma frente que se formou pra tirar o país da desgraça. E a partir de agora há que se fazer essa transição. Essa transição pode dar em uma Simone Tebet, num Alckmin em alguém mais à esquerda. Cada um deles representa uma linha. Aí tem uma disputa. Um embate que pode ser enriquecedor se a gente trabalhar respeitando o capital de ter um Alckmin, ter uma Simone. E ir construindo essa participação social para aprofundar o debate democrático. Olha, uma amiga de São Luiz do Maranhão me contava que, na campanha, ela e um grupo foram panfletar na feira e teve quatro donos de bancas que não aceitaram os panfletos. Eles tiveram a pachorra de esperar a feira esvaziar e foram conversar com os quatro. Um disse que não voltava no Lula porque era patrão e não peão, os outros três disseram coisas como “meu pastor me proibiu votar na esquerda, meu pastor disse que se eu votar no Lula vou ser excluído da Santa Ceia”. Um povo que é suscetível a esse tipo de argumento, precisa ter uma educação que desenvolva seu poder de crítica, sua autonomia, por isso insisto na importância da educação popular. 

E você pensa em atuar nessa área no partido ou no governo?

Essa é uma pergunta… Eu hoje estou no partido, estou voltando pro partido. Porque acho essencial. Mas pretendo trabalhar no partido em parceria com o governo nesse processo de educação popular, vai ter que ter uma interface. Tem um problema que é o seguinte: governo não é neutro, governo é cooptador, ele absorve, ele é como aquelas máquinas de moer cana. O risco é você entrar cheio de suco e sair um bagaço para dar conta das finanças, da organização, da burocracia, do pragmatismo necessário. A tendência é a máquina te comer pelos micropoderes, você ser seduzido por isso, pela gravata que em Brasília te torna doutor. Manter a qualidade política, da democracia, é um desafio imenso. Quando o Lula fala em orçamento participativo na dimensão de um país como o Brasil, não é brincadeira. Mas tem um ano para organizar, porque seria para 2024, e também uma experiência acumulada. 

A dos orçamentos participativos em São Paulo, Porto Alegre…

Sim, mas essa experiência foi se empobrecendo. As prefeituras do PT foram caindo em uma progressiva mesmice, houve uma mediocrização dos nossos quadros. Nós tínhamos os nossos generais que foram formados durante a ditadura. Eles trouxeram para o PT o acúmulo e a formação que tiveram naquele processo de 20 anos de luta. Tivemos também a chegada do sindicalismo combativo, que também tinha quadros. E a outra vertente, da qual eu faço parte, o povo dos movimentos sociais, da Igreja. Essa confluência foi um presente que o PT recebeu, gente pronta para a formulação. Mas nós não conseguimos dar continuidade a esse processo. Nós começamos a fazer educação popular lá no começo, tivemos a ousadia de criar um instituto, Paulo Freire participou: era o Instituto Cajamar que eu presidi por 4 anos. Mas só sobreviveu enquanto tinha dinheiro internacional, Solidariedade, centrais sindicais, Igreja. Quando acabou esse dinheiro, em 1990, 1991, com a queda do muro de Berlim, o partido que gastava dinheiro em eleições não quis gastar dinheiro com formação política. O instituto fechou, passou-se um longo tempo sem nada, depois criou-se a Fundação Perseu Abramo mas que tem outro objetivo, é mais um think tank, de pesquisa avançada. Depois, refundou-se a escola mas como um pequeno departamento dentro da fundação. Agora que estamos tentando retomar. 

E o Instituto Lula? Que papel terá agora?

O Instituto Lula atuava mais na formulação de políticas, agora vamos ter que rediscutir. A ausência dessa formação fez com que, depois desses generais – uns morreram, uns tombaram como o José Genoíno, outros nos traíram como o Palocci – o partido perdesse conteúdo. O núcleo que está hoje em torno do Lula é bom, lutador, mas não tem esse acúmulo. Nem de luta nem de formação teórica. E nós fomos jogando nosso povo na arena dos leões da política institucional sem ter uma consistência político-ideológica para resistir às tentações da máquina. O PT foi perdendo um teor de formulação que agora dá trabalho recuperar. Por isso que eu estou querendo não ir para o governo, embora a tentação seja enorme, para focar nesse projeto de educação e comunicação popular. Ao meu ver, é dele que depende a democracia e a evolução das lutas sociais.

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