domingo, 30 de setembro de 2018

Eugenia, de Francis Galton às Eleições de 2018 no Brasil

por José Gilbert Arruda Martins

A eugenia é a seleção dos seres humanos com base em suas características hereditárias com objetivo de melhorar as gerações futuras. 



O termo foi criado pelo cientista inglês Francis Galton (1822 - 1911), em 1883. A palavra eugenia deriva do grego e significa "bom em sua origem ou bem nascido".

Contexto histórico do século XIX.

Em 1860 durante uma forte crise nervosa, Francis Galton (1822-1911),  encontrou consolo ao ler a obra “A origem das espécies”.
 No ano de 1865, Galton publicou um livro, o “Talento Hereditário e Gênio” onde dizia:

“[..] as forças cegas da seleção natural, como agente propulsor do progresso, devem ser substituídas por uma seleção consciente e os homens devem usar todos os conhecimentos adquiridos pelo estudo e o processo da evolução nos tempos passados, a fim de promover o progresso físico e moral no futuro”.

Com outras palavras ele estava dizendo que deveria ser aplicado o melhoramento genético na população humana.

Há uma grande preocupação de que as técnicas usadas no melhoramento genético de plantas e animais sejam usadas nos homens.

Muitos pesquisadores declaram que existe um severo problema ético na eugenia, como por exemplo, o abuso da discriminação, pois ela resulta em uma categorização de quem é apto e quem não é apto para a reprodução.

Em diversos países foram propostas políticas de “higiene e profilaxia social”, com o objetivo de impedir a reprodução de pessoas que possuíam doenças consideradas hereditárias e, também, exterminar portadores de problemas físicos e mentais.

Um exemplo extremo de eugenia foi na Alemanha Nazista, comandada por Adolf Hitler, onde os nazistas almejavam extinguir as “raças humanas” ditas inferiores, deixando apenas as “raças nórdicas” (arianos) que eram consideradas “raças superiores”, resultando no Holocausto.

No Brasil, a Sociedade Paulista de Eugenia foi a primeira a ser fundada no ano de 1918. No 1° Congresso de Eugenismo, realizado na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1929, foi abordado o tema “O Problema Eugênico da Migração”. No Boletim de Eugenismo, foi proposto a exclusão das imigrações de pessoas não brancas. No ano de 1931 foi criada a Comissão Central de Eugenismo com os seguintes objetivos:

Manter o interesse dos estudos relacionados à questões eugênicas;
Disseminar o ideal de regeneração física, psíquica e moral do homem;

Prestigiar e ajudar as iniciativas científicas ou humanitárias relacionadas à eugenia.

Fontes:
http://www.ufrgs.br/bioetica/eugenia.htm
http://oglobo.globo.com/rio/mat/2007/04/01/295175645.asp

* Francis Galton (Birmingham, 16 de fevereiro de 1822 — Haslemere, Surrey, 17 de janeiro de 1911) foi um antropólogo, meteorologista, matemático e estatístico inglês.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40601996000100015


sexta-feira, 14 de setembro de 2018

CAIÇARAS, O TRADICIONAL POVO DO LITORAL BRASILEIRO

no Com Ciência



Por Allison Almeida, André Gobi e Guilherme Rodrigues
Apesar de toda a riqueza, a cultura caiçara pode ter o mesmo destino das tribos indígenas que habitavam o litoral. Se antes a questão era a colonização extrativista europeia, nas últimas décadas a especulação – na verdade, pirataria – imobiliária, o turismo de massa e as restrições à pesca e ao artesanato são as grandes ameaças.
Quando se pensa nos 7.363 quilômetros da costa brasileira é comum fazer uma associação direta com o turismo. O país tem um dos litorais mais paradisíacos e extensos do mundo. Além das belezas naturais, as praias, enseadas e ilhas abrigam inúmeras populações tradicionais. Antes dos europeus chegarem, o litoral brasileiro era repartido por diferentes tribos: Tupis, Tamoios, Tabajaras e Caetés são alguns dos grupos indígenas que viviam na costa e foram expulsos – alguns extintos.
Atualmente, mesmo com a maior parte da faixa litorânea utilizada para o turismo e outras atividades econômicas, principalmente a portuária e a pesqueira, o Brasil ainda abriga resquícios de comunidade tradicional no litoral. “Os caiçaras são uma mistura de povos indígenas já extintos, europeus de diversos países e negros, principalmente quilombolas que após processos de ocupação do interior devido aos diversos ciclos econômicos do Brasil colonial, ficaram relativamente isolados nessa estreita faixa de terra entre o mar e a serra, que se estende do sul do Paraná até o centro do Rio de Janeiro”, explica Antonio Carlos Diegues, fundador do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras da Universidade Estadual de São Paulo (Nupaub/USP).
Há, segundo Diegues, os “manesinhos da ilha”, em Florianópolis, e outras comunidades descendentes principalmente de açorianos em todo o litoral sul.  Caiçaras são encontrados na maior parte do litoral sudeste e, mais ao norte, podemos encontrar comunidades mais ligadas às raízes africanas, como os jangadeiros e os balseiros, por exemplo, na Bahia e no Maranhão, respectivamente.
O isolamento, no caso, era resultante das dificuldades de locomoção para os centros urbanos. A musicista e cientista social Kilza Setti foi uma das pioneiras a estudar a cultura caiçara, nos anos 1950. Ela relata um de seus primeiros encontros com nativos: “Os caiçaras praticavam em sua oralidade o português arcaico, misturado com muitas palavras de origem indígena”, conta.
Congada de Bastões, tradicional dança caiçara (crédito das fotos desta reportagem: Guilherme Rodrigues)
Com seus “causos”, histórias, costumes, culinária e música, os caiçaras contribuíram profundamente para a ampliação da diversidade cultural brasileira. A música popular caiçara é muito rica e fonte de estudos por todo o país. Dentro do repertório musical, os nativos constroem seus próprios instrumentos de forma muito rudimentar: rabecas, machetes, violas de machete e diversos tipos de tambores e instrumentos de percussão são encontrados nas comunidades, e utilizados em seus fandangos. “O povo caiçara no litoral sudeste guarda preciosas tradições religiosas e profanas. A dança da fita, congada, festa do divino, chiba, dança de São Gonçalo, entre diversas outras, são expressões culturais ainda comumente praticadas. Essas danças e músicas compõem o repertório de músicas caiçaras, o fandango”, explica Setti.
O fandango embala as noites de festejos. Ao som de uma espécie de orquestra que canta as músicas tradicionais, as mulheres agitam suas longas saias. Os homens realizam coreografias que lembram bastante a catira, espécie de sapateado comum no interior do país. Aos poucos, as crianças também entram na brincadeira e o fandango torna-se uma grande confraternização de toda a comunidade. “O fandango está profundamente ligado aos rituais agrários caiçaras, aos mutirões realizados durante a colheita principalmente do arroz, mais ao litoral sul de São Paulo e todo Paraná, e à confecção da farinha de mandioca no resto de seu território. Assim como na construção de suas casas, principalmente de pau a pique, que eram realizadas em conjunto. Primeiro se realizavam as tarefas diárias e, ao final, aconteciam os bailes e comemorações”, diz Antonio Diegues.
Seu Agostinho, artesão construtor de rabecas caiçaras, Cananeia (SP) [crédito das fotos desta reportagem: Guilherme Rodrigues]
Apesar de toda a riqueza, a cultura caiçara está seriamente ameaçada de ter o mesmo fim das tribos indígenas que habitavam o litoral brasileiro. Se antes a questão era a colonização europeia, agora a especulação imobiliária, o turismo de massa, de alto impacto social e ambiental, as restrições ambientais para os nativos praticarem a pesca e o artesanato são os grandes problemas.
As dificuldades dos caiçaras começaram com a construção da BR-101 na década de 1970 pelo governo militar. Todo o acesso ao litoral foi facilitado, dando novas perspectivas turísticas a cidades como Ubatuba (SP) e Parati (RJ). Porém, não foram realizados estudos sobre os impactos da construção da via na cultura local. “A realização da estrada trouxe progressos. Antes levávamos horas para chegar até a cidade. Porém nos trouxe uma série de problemas”, relembra Julio Cesar Mendes, folclorista e militante caiçara.
São Sebastião (SP): exemplo de ocupação do litoral por casas de veraneio [crédito das fotos desta reportagem: Guilherme Rodrigues]
As valorizadas terras do litoral foram alvo da ação da especulação imobiliária e dos grileiros. Boa parte da população tradicional local foi ludibriada por promessas financeiras e venderam seus terrenos por valores abaixo do mercado, mudando-se para a periferia das cidades litorâneas, migrando para outros centros urbanos ou até mesmo caindo na marginalidade. “O que houve nos anos 1970 não foi especulação, mas sim pirataria imobiliária, e é claro que eles [caiçaras] sairiam perdendo”, diz Kilza Setti.
“Meu avô trocou um terreno a beira-mar por um par de botas”. Esse impressionante relato é da militante caiçara Fátima Souza Santos, que narra como era a ação dos grileiros na época. “Eles seduziam os pescadores distribuindo presentes e dinheiro para ganhar a confiança do povo. Os grileiros convenceram meu avô a colocar o polegar direito num documento para trocar o terreno da família por um par de botas”, conta. Ainda hoje a especulação imobiliária é uma dor de cabeça para os nativos. Pelos altos valores do metro quadrado no litoral paulista, constantemente surgem propostas das mais diversas para que vendam casas e terrenos. A maioria já sucumbiu ao poder econômico, mas há caiçaras que permanecem e não estão dispostos a deixar suas raízes. “Aqui eu tenho de tudo. Não deixo o litoral por nada. Eu tenho a vida que eu quero. Pesco meu peixe, faço meus roçados quando é preciso. Se sair daqui, vou fazer o quê da vida? A natureza me dá tudo o que eu preciso. É a vida que eu pedi a Deus”, diz Altamiro dos Santos, pescador e morador da Praia Grande de Cajaiba, em Parati, há mais de 60 anos.
Orla da comunidade caiçara da Ilha Diana e Porto de Santos ao fundo [todas as fotos desta reportagem são de Guilherme Rodrigues]
Estereótipos, preconceitos e etnocentrismoA cultura caiçara é basicamente de subsistência. Em sua maioria, vivem em pequenas vilas onde praticam a pesca, a agricultura e o artesanato de acordo com suas necessidades individuais. Por conta dessa perspectiva cultural, foi inserida na sociedade uma espécie de senso comum pelo qual os caiçaras são cidadãos preguiçosos. “Quem está de fora da comunidade não percebe que os caiçaras têm um ritmo próprio que nada tem a ver com a agitação da cidade. Seguem o ritmo da natureza, da lua, das marés”, explica o antropólogo Antonio Carlos Diegues.
Além de estereótipos e preconceitos, a cultura caiçara sofre outra grave violência simbólica: a ação do etnocentrismo. A antropologia define etnocentrismo como a visão de quem considera os hábitos culturais de seu grupo superiores aos demais. Frequentemente, os pescadores têm embates com alguns grupos evangélicos, que não respeitam as tradições do folclore caiçara.
A peregrinação da Bandeira do Divino, principal festejo religioso caiçara, de tradição centenária, ilustra bem o embate. Em seu percurso pelas ruas e bairros de Ubatuba é comum a manifestação religiosa não ser mais aceita nas casas de alguns moradores que até pouco tempo atrás recebiam a peregrinação. “É complicado e magoa bastante”, diz o professor Domingos Santos, que é filho de caiçara. “De repente, chega uma religião afirmando que nossas músicas, nossa dança e nossa fé são pecados e que nós estamos errados? Que nossos amigos e parentes precisam se afastar da gente? Isso é muito sério”, desabafa.
Equilíbrio ambiental x cultura de subsistência: a questão caiçaraRenato Bueno é um dos carpinteiros mais procurados por pescadores do litoral norte de São Paulo. Pelas suas habilidosas e calejadas mãos é construída a canoa de madeira ou “canoa de um pau só” – um dos principais símbolos caiçaras. Apesar da fama local de sua profissão e de gostar do trabalho artesanal, Renato pensa em largar a profissão por conta das dificuldades para extração da madeira. “Está muito difícil. Para a construção de canoas, só trabalho com madeira morta. Mesmo assim a polícia ambiental me impede de trabalhar e exige um monte de licenças para a minha madeira. É muito difícil trabalhar assim.”.
Calafetação de barco de pesca artesanal caiçara (Praia do Pereque-Açu, Ubatuba, SP) [todas as fotos desta reportagem são de Guilherme Rodrigues]
A madeira que o artesão precisa para construir canoas vem de unidades de preservação ambiental, locais onde sua extração é proibida. O Parque Estadual da Serra do Mar, criado em 1977, com uma área de 332 mil hectares que se estende por 25 municípios paulistas – desde a divisa do estado com o Rio de Janeiro até o litoral sul de São Paulo – era um território caiçara. “Nos expulsaram, até hoje os pescadores esperam a indenização e agora não podemos nem retirar uma madeira para trabalhar”, relata o canoeiro.
O mesmo incômodo é apontado por pescadores e pequenos agricultores caiçaras. Segundo pescadores que conversaram com a reportagem, a fiscalização da polícia ambiental é ostensiva e sem espaço para qualquer espécie de diálogo. “Pescador está sendo tratado como um marginal”, exclama Wagner Klinke, presidente da colônia de pescadores da Cananéia (SP).
“O peixe é nosso sustento. Diferente da indústria, fazemos de tudo para preservá-lo. Mas a polícia ambiental não nos deixar retirar o suficiente para o sustento adequado de nossas famílias. Quem insiste acaba com os peixes e materiais de pesca apreendidos, inclusive barcos e canoas. Já teve colegas que já foram presos”, complementa Klinke.
Para o antropólogo Antonio Carlos Diegues, a mediação entre governo e a cultura caiçara precisa acontecer com bom senso, diálogo e conscientização e não com repressão e proibições. “Importamos um modelo de preservação norte-americano que não se aplica à realidade dos povos tradicionais brasileiros. De repente, famílias que conviviam harmonicamente com a Mata Atlântica e com o mar há várias gerações tiveram que procurar outras ocupações e muitos acabaram na marginalidade. Precisa existir bom senso, pois a pesca artesanal, por exemplo, é uma atividade de baixo impacto ambiental. Não há nos nativos a cultura de depredação, pois eles precisam sobretudo da natureza. Agora estão substituindo as canoas de madeira por material de fibra de vidro em nome da preservação, o que é um contrassenso. A canoa de fibra de vidro quando afunda fica no mar por até 500 anos”, opina o cientista social.
Procurada pela reportagem, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente do estado de São Paulo não quis se manifestar sobre o tema.
Allison Almeida é graduado em jornalismo (Unicap), pós-graduado em gestão e produção em jornalismo (Puccamp) e pós-graduando em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.
André Gobi é graduado em História (Unesp) e pós-graduando em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.
Guilherme Rodrigues é graduado em medicina veterinária (FAJ) e pós-graduando em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Por uma esquerda pós-apocalíptica

no Outras Palavras

Manifestação pró-direito ao aborto, na Argentina. Para Monedero, “A presença das mulheres nas ruas fez envelhecer todos os partidos políticos, inclusive os de esquerda


Juan Carlos Monedero, cofundador do Podemos, provoca: disputa civilizatória continua aberta; seria patético entregar os pontos antes da hora. O que falta é enxergar as novas insubmissões
Entrevista a Martín Granovsky  | Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel
Político e cientista político, professor da Universidade Complutense de Madri e cofundador de Podemos, esse espanhol de 55 anos é um dos pesquisadores europeus mais ligados aos temas latino-americanos. Esteve de passagem pela Argentina, a convite da Universidade Nacional de Quilmes (na região metropolitana de Buenos Aires), realizando também atividades em centros culturais e acadêmicos ligados aos movimentos sociais, como o Centro Cultural da Cooperação e a nova Universidade Metropolitana para a Educação e o Trabalho (UMET) (ambos na região central da capital argentina).
Há um ano, a principal agrupação da esquerda espanhola apresentou a primeira moção de censura contra o chefe de governo, Mariano Rajoy, do Partido Popular, de direita, modelo internacional para o presidente Mauricio Macri, da Argentina. Em primeiro de junho último, outra moção de censura acabou removendo Rajoy do cargo de primeiro ministro, colocando em seu lugar o social-democrata Pedro Sánchez. Monedero o comentou para o Página 12, de Buenos Aires:“Nós tínhamos grandes intuições e, sobretudo, a vontade firme de afastar Rajoy”.
A seguir, a entrevista.
Monedero: “Nem o poder é uno, nem o capital é uno, nem tudo está tão organizado assim; como também eles podem se equivocar, e não controlam tudo… Às vezes lhes brindamos um poder que eles não têm”
E ele, Rajoy, imaginava que seu fim político era possível?
TEXTO-MEIO
Rajoy contava com a estratégia da impunidade, em que já se escorava havia 15 anos. Eles controlavam os postos mais importantes do Judiciário, o Tribunal Constitucional [equivalente ao STF brasileiro], o Conselho Geral do Poder Judiciário [sem equivalente no Brasil] e o Tribunal Supremo [equivalente ao STJ]. Acreditavam que isso tudo lhes servia de garantia. E eu quero insistir em algo que serve também para a Argentina: eles nunca têm todo o poder. Não têm todos os juízes, não têm todos os procuradores.
Não conseguem realizar a velha ilusão do controle total…
Dentro do marxismo há uma velha discussão. As explicações demasiado estruturalistas tomam ao pé da letra a ideia de que o poder nada mais é que o conselho de administração dos interesses da burguesia, que é uma entidade fechada e que sempre obra em favor da glória maior da minoria dominante. Mas essas não são explicações verdadeiras. Nem o poder é uno, nem o capital é uno, nem tudo está tão organizado assim; como também eles podem se equivocar, e não controlam tudo… Às vezes lhes brindamos um poder que eles não têm. Uma boa parte de nossas sociedades democráticas existe por conta das nossas vitórias. Quando alguém faz um discurso excessivamente negativo ou muito sombrio está renunciando à sua parte de vitória.
A que parte de vitória se renunciaria, por exemplo?
Aos direitos trabalhistas, ao direito ao voto, à universalidade da lei, ao direito à livre manifestação e à greve, ao direito de se associar, ao direito à comunicação… Há uma série de coisas que ainda não perdemos. Eu compreendo que neste momento a Argentina está em risco. É claro que a Junta Militar [que governou o país durante a última ditadura], com a desculpa de lutar contra a insurgência [N. do T.: sobre esse termo e sobre a reação que inspira por parte do establishment, em termos geopolíticos, veja-se aqui], dinamitou o Estado de Direito. E é verdade que o atual governo quer dinamitar tudo o que diga respeito ao kirchnerismo. Mas isso não significa que simplesmente vá rolar na boa. Não é correto dizer que estamos como na ditadura. É verdade que a mídia mente e que não passa de empresas de comunicação a serviço do poder. Mas não é verdade que detenham toda a comunicação, que controlem toda a Internet, ou que não exista o Página 12. Com os discursos apocalípticos às vezes não fazemos mais que convidar à resignação. Certa esquerda até acredita que está sendo mais profunda e esperta quando faz análises muito pessimistas. No fundo ela acaba não mais que como refém do inimigo.
E qual seria a chave de análise realista?
Recusar o pensamento desejante [wishful thinkink].
Mas, por outro lado, não há política sem desejo…
Lembro-me de um cartaz aqui em Buenos Aires que dizia: “Menos realidades e mais promessas!” É a necessidade da esperança. Mas é preciso acertar nas esperanças! Marx ficou muito chateado com os communards de Paris, que em 1871 pretendiam assaltar os céus. “Vocês fizeram um mal diagnóstico”, lhes dizia. “Vocês estão lutando contra [o presidente Adolphe] Thiers em Versalhes e contra Bismarck na Prússia; são poucos, não têm o Exército, não têm os bancos; vão lhes massacrar”. Ao final, depois de dizer isso, foi comprar-lhes armas. Sempre temos que buscar o equilíbrio entre bons diagnósticos e uma boa leitura da correlação de forças. Com os meus alunos, eu uso o exemplo de Game of Thrones, uma série onde alguns companheiros postulam que Ned Stark é revolucionário porque é derrotado. Uns dizem que alguém derrotado não serve. Minha postulação é a contrária. Não existiria Game of Thrones se, ao final da primeira temporada, não pendurassem sua cabeça na ponta de uma lança. O martírio é o que permite alargar a base da emancipação. Mas isso também tem um problema. Significaria que temos que dar combate tão apenas para ter mártires? Teriam razão esses grupos que defendem que é preciso se imolar e que, se há baixas nos protestos, melhor então, porque assim se produzirão protestos ainda maiores?
Sua resposta?
Ela vem do que Walter Benjamin dizia: às vezes, quanto pior, pior. As contradições têm sempre uma saída: alargar a base da deliberação. Em cada decisão, aqueles que estão implicados devem opinar. Me lembro de quando era jovem e duvidava entre tão apenas optar pela objeção de consciência ao serviço militar ou, além disso, ser insubmisso, quer dizer, me negar inclusive a prestar o serviço social substitutivo. [N. do T.: Essas remissões dizem respeito ao “Movimento Insubmisso”, que tem suas raízes nos últimos anos do regime franquista, contra o seu serviço militar obrigatório. O movimento prosseguiu depois de aprovada a Lei de Objeção de Consciência, de 1984, que instituía o serviço social alternativo. Apenas em 2002 essas obrigações e as penalidades à sua contrariedade foram definitivamente abolidas na Espanha]. Se você incidisse na insubmissão, você ia a juízo, e havia muita probabilidade de que lhe condenassem a dois anos de cadeia e lhe inabilitassem [para emprego ou cargo público]. Era isso o que mais me preocupava, porque eu estava terminando a faculdade, sabia que ia estar entre os primeiros ― se não o primeiro ― da minha turma de formatura, que poderia ser professor, e que a inabilitação me impediria de ser docente. Um professor trotskista me disse que se eu não fosse insubmisso, eu era um covarde. Esse professor era um irresponsável!
O que você fez?
Fui insubmisso. Por sorte o juiz não me condenou. Outros colegas foram condenados. Do que me lembro bem é que, quando tomei a decisão, fiquei cinco dias de cama, doente, porque acreditei que estava arruinando a minha vida. Por outro lado, acabei depois dando todos os combates que me couberam na vida, e essa é uma maneira de ser decente.
O Podemos é um partido objetor ou insubmisso?
Procuramos ser responsáveis com o mandato de cinco milhões de votos [cerca de 24% do eleitorado espanhol]. As pessoas votaram em nós não só buscando sair do governo de Rajoy, mas também de suas políticas. Por isso, não tínhamos votado antes a favor de uma composição de governo entre Pedro Sánchez [social-democrata] e Albert Rivera, de Ciudadanos [neodireita liberal]. Sair do governo de Rajoy era uma urgência. Era desesperador ― como agora é na Argentina ― que, de novo, governasse uma camarilha de corruptos, que cortava todos os gastos sociais e manipulava a vontade pública e os meios de comunicação. A esperança às vezes se estreita consideravelmente. Se depois das barbaridades que Macri está fazendo, ele volta a ganhar as eleições, você vai dizer que esse é um momento obscuro na historia, compreensivelmente, sem qualquer espaço para o otimismo.
Não há perigo de se ficar com raiva da realidade?
Ficar com raiva da realidade é coisa de idiotas. A realidade é apenas um dado que você precisa entender. Nada é fácil. Na Espanha, a grande mídia deseja que o Podemos desapareça, porque desafia o poder. Nós, por outro lado, temos a obrigação de dialogar com a nossa base social. São cinco milhões de pessoas jovens, bem formadas, que partiram do 15-M, aquele 15 de maio de 2011, quando, na Porta do Sol, em Madrid, se ouvia: “não somos marionetes nas mãos de políticos e banqueiros”. Essas pessoas jovens se perguntam por que a Espanha não está onde deveria estar ao ser a quarta potência econômica da zona do euro. Eles se perguntam onde estão nossos prêmios Nobel, nossos cineastas, nossos literatos, nossas universidades de ponta… São gente do século 21. Não entendem essa Espanha centralista nem esses partidos políticos corruptos. Preste atenção na Argentina!
Em que, exatamente?
A presença das mulheres nas ruas fez envelhecer todos os partidos políticos, inclusive o peronismo [dos ex-presidentes Kirchner]. Essas mulheres produziram protestos e demandas que excederam a capacidade de previsão dos partidos. De todos. Não conseguiam acompanhar o que acontecia. Os partidos sempre calculam se determinadas decisões vão lhes custar votos. Por isso, o movimento social sempre os sobrepassa. Aconteceu na Espanha com o 15-M, o movimento dos indignados, que não apenas produziu o nascimento do Podemos, como também acabou transformando todos os partidos. As grandes lideranças políticas têm agora em torno de 40 anos, ou menos. Todas. Todos os partidos realizaram primárias, exceto Ciudadanos, que é um partido montado como as Spice Girls, um partido baseado em um desenho de laboratório. Quando, há quatro anos, falávamos de primárias obrigatórias, eles diziam que a gente não entendia de política. Eu lhe pergunto: alguém por aqui está tomando nota do movimento das mulheres? Não apenas da demanda pelo direito de interrupção voluntária da gravidez, mas do seu modo de se articular, da sua maneira de se expressar, da sua forma de mobilizar as redes… Do contrário, a sociedade argentina pode ir em uma direção, e os partidos vão ficar como estátuas.
Mais uma vez o desafio de interpretar a realidade e o de transformá-la…
Você precisa ter cuidado com uma coisa: na política, como dirigente, você tem mais informação que o resto das pessoas. Isso leva você a tomar decisões que a rua não entende. Se uma família faz um ajuste na sua economia e os pais tiram os filhos do colégio sem explicação, os filhos vão se aborrecer. Vão dizer que os pais são uns canalhas que não os amam. Se na hora da janta os pais lhes explicam, os filhos vão entender. Às vezes os políticos não têm tempo de explicar, ou então desprezam a cidadania porque acreditam que não vão ser compreendidos. O símbolo é aquela foto do Obama envelhecido quatro anos… em parte também porque todos os dias tinha que fazer uma lista de quem os fuzileiros tinham que executar, e isso é algo que te deixa de cabelo branco. Às vezes eu acho que Obama é um negro com a alma dos brancos. Mas a verdade é que, continuamente, você toma decisões com muito pouca liberdade. E se você não transmite os problemas à cidadania, ela vai se distanciar de você. Esse é o risco constante da política institucional. Só me ocorre uma vacina, que aprendi do Partido Social-Democrata Alemão, o SPD, quando Willy Brandt governava: diferenciar o partido, do grupo parlamentar e do governo. Eles não têm que se contaminar entre si. O partido não pode ser a correia de transmissão nem do governo nem do grupo parlamentar. Deve se dedicar a manter sua relação com o movimento social, a visitar os bairros, as universidades… Se você leva todos os quadros do partido para o governo, ou é sinal de que ele cresceu rápido demais ou de que não tem uma base suficiente, ou então porque o partido se encheu de arrivistas, que é um dos problemas do Morena do México [Movimento de Regeneração Nacional, frente de esquerda que conquistou a vitória eleitoral nas últimas eleições mexicanas, celebradas em 1º de julho último].
Mas, ao mesmo tempo, Andrés Manuel López Obrador tem uma vantagem: a partir de 1° de dezembro poderá governar com maioria em ambas as câmaras.
Lênin fez bem ou fez mal quando subiu ao trem em que os alemães o puseram em Zurique, para retornar à Rússia? Os alemães pensavam que Lênin desestabilizaria o governo dos czares, e isso os beneficiaria na guerra. Do ponto de vista de Lênin, a perspectiva era outra: “Sei por que esses canalhas estão fazendo isso, mas são os únicos que podem garantir a minha chegada, e depois eu poderei trabalhar para transformar a Revolução de Fevereiro de 1917 na de Outubro”. Quanto você se arrisca? Não apenas em subir no trem. Quanto você se arrisca ao ir aos estúdios de televisão do inimigo? Quanto você se arrisca entrando em um governo onde você não tem a maioria? Quanto você se arrisca ao apoiar, em sua moção de censura, um partido político que você contesta? Na Espanha, o Ciudadanos não nasceu porque o Partido Popular deixou de ser de direita, mas por conta da corrupção [do PP] e da necessidade de ganhar os votos deles. Mas o Podemos, sim, nasceu porque o PSOE havia deixado de ser de esquerda. Tem gente hoje que diz que só de se aproximar da social-democracia “traidora” você já está perdendo.
Sua aposta é arriscar…
Maquiavel dizia que mais vale agir e se equivocar do que não agir. A única vacina é a deliberação. Antes de decidir se apoiaríamos um governo de Sánchez com Rivera, do PSOE com Ciudadanos, perguntamos às bases. O mesmo aconteceu com a moção de censura. É arriscado, porque às vezes as bases se cansam de opinar. Mas não tem outro modo. E nós estamos indo muito bem com isso. Um momento de debilidade, como você sabe, foi quando Pablo Iglesias e Irene Montera compraram uma casa de campo a 30 quilômetros de Madri, a pagar em 30 anos. Não roubaram nada nem isso foi fruto de alguma propina. Simplesmente são duas pessoas jovens, com planos. Diante do ataque da mídia, perguntamos às bases se, por causa dessa casa de campo, Pablo e Irene deveriam continuar sendo dirigentes do Podemos. A parte mais extremada fez campanha para que fossem embora. Era uma irresponsabilidade suprema. Eu votei para que ficassem. Do contrário, com 30% dos votos a direita continuará governando eternamente. Mas sou consciente do que é trabalhar assim. Só que, nas bases, 200 mil pessoas votaram. É muito. É preciso confiar nas pessoas. É a única maneira que você tem de resistir à mídia, aos partidos, às rádios… O poder não contava com a nossa consulta. Derrubamos eles. A base se tornou corresponsável.
Você concorda com a visão que absolutiza o poder da grande mídia?
Nós a derrotamos várias vezes. Temos marcas entalhadas no revólver de quantas vezes derrotamos o grupo Prisa [N. do T.: proprietário do jornal El País, que faz de conta que é progressista], que é muito arrogante. Esse grupo está acostumado a pôr e tirar ministros e presidentes de governo, e não se deu conta de que nós não nos deixamos ser mandados por ninguém. Nem pelos donos do dinheiro nem pelos seus prepostos, como o grupo Prisa. Construíram uma briga interna onde pretenderam investir o número dois do partido como dirigente natural.
Íñigo Errejón.
Derrotamos essa contenda interna. Os derrotamos com as candidaturas em Madri. E os derrotamos no caso da casa de campo. Somos conscientes do poder. Até nos assustamos, porque nossas bases se nutrem da mídia privada. Uma parte importante dos militantes escuta a cadeia SER e lê o jornal El País. Assim, o risco de que nossos militantes dessem ouvido aos editoriais era alto. Mas nem! Por isso é que insisto que eles não têm todo o poder. A priori tudo indicaria que o que o grupo Prisa dissesse seria aquilo no que os nossos militantes iriam votar. E não foi isso que aconteceu. Poderíamos lembrar da campanha contra Bill Clinton no caso de Monica Lewinsky. Ele tornou a ganhar as eleições. A mídia tem um enorme poder de influência, mas não lhe daremos de presente, de forma prévia e determinista, a capacidade absoluta de determinar para onde vamos. Faço a mesma crítica para a Argentina. As pessoas estão num choro interminável, se queixando de que não podem fazer nada. Esse não é um discurso inteligente, mesmo que se pretenda adorná-lo com sutilezas intelectuais. É um discurso derrotista.
Colunista do jornal Página 12, de Buenos Aires, integrante do Conselho do Instituto Novos Paradigmas

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Direitos Humanos - Judiciário vingativo e moroso impede políticas de desencarceramento

no Rede Brasil Atual

Em estudo sobre o cumprimento de indultos do Dia das Mães para mulheres que não cometeram crimes graves, Pastoral Carcerária identificou que o Judiciário atua contra o Direito e decreto presidencial.

mulher presa
Milhares de mulheres, mesmo atendendo a todos as exigências, mesmo com ordem assinada pela presidência, não conseguiram o indulto

São Paulo – Ao lançar nesta quarta-feira (29) o relatório Em Defesa do Desencarceramento de Mulheres: Pesquisa sobre o impacto concreto do indulto do dia das mães de 2017, a Pastoral Carceráriaafirma que o benefício atingiu apenas 3 mil de 14 mil presas. "O abismo entre os números é alarmante”, afirma o documento.
Por meio da análise de dados coletados em diferentes esferas, foi possível encontrar os fatores causadores da discrepância. “A falta de identificação de casos por parte dos atores responsáveis, o baixo número de requerimentos de indulto realizados pelas Defensorias Públicas e as altas taxas de pedidos rejeitados pelos juízes responsáveis.” A atuação das Defensorias, por exemplo, ficou muito abaixo do esperado pela Pastoral, com apenas 513 pedidos naquele ano. Por sua vez, os juízes responsáveis pelas concessões rejeitaram 76,5% dos pedidos.
“Uma vez que os requisitos previstos no Decreto são bastantes claros e aos magistrados cabe apenas declarar a concessão presidencial, é de se estranhar margem tão grande de rejeição frente aos casos já identificados por outros autores. Esses dados sugerem que o Judiciário atravessa a atribuição da presidência”, afirma o relatório, ao lembrar que o indulto de dia das mães de 2017 foi regido por um decreto presidencial de 12 de abril de 2017, que determinou as condições para a efetivação dos indultos. Isso significa que milhares de mulheres, mesmo atendendo a todos as exigências, mesmo com ordem assinada pela presidência, não conseguiram o indulto por impedimento da Justiça.
Os esforços para que essas mulheres, que não cometeram crimes graves, consigam o indulto, é importante para ressocializar, além de funcionar como uma política pública de enfrentamento ao encarceramento em massa visto no país. “No lugar de ampliar e construir presídios, impõe-se a construção de um programa voltado à redução da população prisional e de suas mazelas”, afirma a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, assinada pelo Executivo em 2014.
Diante dessa estratégia, a Pastoral lamenta a postura do Judiciário. “A partir da constatação das prisões lotadas, das humilhações profundas e das interpretações judiciais vingativas, juntando com a morosidade judicial, nasceu (…) a necessidade de ações concretas para verificar se o indulto e outros direitos concedidos estava sendo de fato garantido.”
“Para que ferramentas como o indulto possam ser delineadas e efetivamente de acordo com as necessidades reais da população prisional, é preciso analisar como sua aplicação tem se dado na prática (…) Atrás de cada um dos números apresentados neste relatório, estão as dores, vidas e esperanças de tantas mulheres, famílias, filhos e filhas, pessoas que enxergam no indulto a possibilidade de uma vida fora do cárcere”, completa o estudo.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Índios: a trágica Educação “ofertada” pelo Estado

no Outras Palavras

Imagem: autor desconhecido

Há mais de 2 mil escolas indígenas no Brasil. Baseadas em pedagogias brancas, colonizam, domesticam e destroem uma forma de transmissão de saberes com a qual muito teríamos a aprender
Por Angela Pappiani | Fotos: Helio Nobre/ikore
Não consegui controlar o sentimento. Fiquei com pena das crianças, pequenas ainda, os menores com 3 ou 4 anos, naquele cercado de folhas de babaçu, no meio do pátio da aldeia. Os dias de julho no cerrado brasileiro são secos, 40 graus, derretendo os miolos e abaixo dos 10 graus nas madrugadas, com um sereno fino que deixa tudo molhado e gelado. Os meninos, com calçãozinho vermelho e sem camisetas, dormiam sobre esteiras trançadas de palha, com o céu estrelado sobre a cabeça. O fogo, no centro do círculo, era para aquecer. Mas eu, com blusa de lã e enrolada no cobertor, tiritava de frio. As mães e irmãs levavam comida e água algumas poucas vezes ao dia. E eles resistiam, firmes, levando a sério seu papel importante na cerimônia que se repete apenas a cada 15 anos, o Wai’a.
Essa é apenas uma das muitas provas de resistência por que passam os meninos do povo Xavante. Enfrentam privações, fome, sede, frio, calor, cansaço físico, medo, pressão psicológica. São treinados assim, em longas e duras provas para se tornarem adultos fortes e resistentes, guerreiros conhecedores do território, das estratégias de sobrevivência.
Exatamente o oposto do que nós, os warazu – os não indígenas, fazemos com nossos filhos. Muitas crianças nas cidades e campos, vivem realidades de privações que ainda incluem violência física, ausência de amor e amparo. Mas, de modo geral, tentamos proteger nossos filhos de qualquer adversidade, poupá-los de desconfortos e contrariedades, cercá-los de bens materiais e facilidades que, a nosso ver, melhoram a vida e criam oportunidades.
TEXTO-MEIO
Nas aldeias que conheci, mesmo nos lugares mais precários, onde se luta todo dia por um punhado de comida, pelo direito à água e a um pedaço de chão sob os pés, não falta amor e acompanhamento no processo de transformação das crianças em gente grande. Uma caminhada coletiva, com mães, pais, tios, primos, avós, todos juntos, participando da formação daqueles seres tão importantes, tão desejados, que sabem de suas origens e da missão que terão pela frente: guardar o seu lugar sagrado no mundo, mesmo que o lugar já não exista fisicamente.
As cerimônias que marcam a passagem do tempo são muitas: para receber o bebê que chega ao mundo, para lhe dar nome, para apresentá-lo aos espíritos e ancestrais, para proteger os dentes que nascem, para celebrar a primeira menstruação, para marcar a passagem ao mundo adulto, para formar os guerreiros e guerreiras. E cada povo tem seu jeito de lidar com essas passagens, de marcar cada um desses tempos: com cantos, danças, adornos, comidas especiais, grandes festas que reúnem várias aldeias. As provas e obstáculos estão presentes em cada uma delas.
Os bebês engatinham pelo chão de terra, se aproximam das fogueiras, brincam com formigas, dividem a refeição com o papagaio ou o macaco de estimação. Fazem parte, estão no mundo para conhecer todas as coisas, sentirem os limites e os perigos na pele e aprenderem as lições que só essa vivência permite.
Na aldeia Yanomami do Demini, duas meninas brincavam de fazer uma pequena fogueira, imitando a mãe que cozinhava ao lado. As duas tinham mais ou menos 3 e 5 anos de idade. Um desentendimento entre as duas virou briga. A menor veio chorando até a mãe, reclamando da irmã. A mãe pegou o facão, desses grandes, usados para tudo, e entregou à menina que saiu correndo atrás da outra. Eu, que presenciava a cena, fiquei gelada. A menor correu atrás da irmã, gritando, com raiva, arrastando o facão pesado por um tempo e desistiu. A outra riu, se aproximou, e as duas voltaram a brincar. A mãe continuava nos seus afazeres, tranquila. Eu perguntei sobre os riscos do que havia acontecido. Ela, generosa e paciente, me explicou: a menor se sentira poderosa com o facão na mão, ela era mais fraca e lenta que a outra, nunca a alcançaria nem teria forças para erguer o facão e machucar a irmã, que, no esforço, sua raiva havia se aplacado rápido e cada uma tivera sua lição. Sabedoria Yanomami para lidar com os filhos.
Nos anos de convivência com tantas aldeias, nunca vi uma dessas crianças machucada com gravidade, nenhum acidente fatal. As crianças nas aldeias aprendem os limites do seu ambiente, convivem com o rio, com o fogo, com a chuva, com a enchente, sobem em árvore, andam descalças na mata. Escapam das cobras, das onças, dos marimbondos porque os avós contam histórias que as preparam e rezam para protegê-las. O que mata as crianças nas aldeias é o sarampo, a pneumonia, a malária, a diarreia, a subnutrição, o agrotóxico na água e no ar, os acidentes dos caminhões precários. Causas externas, violência que envolve os territórios e vai se banalizando.
E as crianças nas aldeias trabalham, porque o trabalho é o que mantém a vida, que promove o desenvolvimento, o aprendizado, a noção do coletivo. Crianças participam de todas as tarefas da casa, carregam os irmãos menores, vão para a roça com as mães, pegam lenha e água, pescam, caçam, trançam esteiras e balaios, fazem adornos e panelas. E isso as faz membros de um povo, parte fundamental do coletivo, lhes dá um lugar, as ensina sobre matemática, geografia, história, ciência, economia, medicina, arquitetura. Quanto conhecimento é passado nas brincadeiras, nos momentos de compartilhar o trabalho e as histórias! O experimentar constrói noções fundamentais, aguça a curiosidade, faz pensar, exercita a memória, as habilidades. Nas brincadeiras, crianças imitam os adultos com criatividade e muita alegria.
Aos poucos, as escolas formais foram chegando às aldeias. Em algumas, era reivindicação do povo indígena; em outras, imposição do sistema. Mas, de qualquer forma, o que desejavam era o que prevê a Constituição: “uma educação escolar específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária”. Direito conquistado com muita luta e que, como outros direitos, ficou só no papel. O ministério da Educação tem a responsabilidade de construir as políticas públicas para a educação e a execução nas áreas indígenas fica a cargo dos governos estaduais e municipais, onde o preconceito e os conflitos são mais presentes. Se a questão da educação escolar já é complicada a nível nacional a coisa complica ainda mais diante da diversidade de povos indígenas e realidades em cada região do país.
Até meados do século 20, o modelo de escola que existia em algumas áreas indígenas era o da missão religiosa que retirava crianças do convívio da família e as confinava em internatos onde eram proibidas de falar seu idioma e praticar sua cultura. Ali recebiam formação religiosa e aprendiam um ofício que as capacitava para se “integrarem ao mundo”, como cidadãos produtivos. Sofriam abusos físicos e psicológicos. Crianças eram entregues a famílias de brancos, muitas vezes de militares, para que fossem criadas distantes de seus territórios, de suas raízes. O plano do Estado era de acabar definitivamente com os povos indígenas, com sua diversidade cultural, construindo uma única nação, com uma única língua e cultura. O plano falhou. Felizmente os povos indígenas foram mais fortes, organizados e resistentes do que se podia imaginar. Independente das perdas irreparáveis que sofreram, conseguiram se erguer e buscar novas estratégias de sobrevivência diante da nação que seguia seu plano de desenvolvimento.
Até que outro modelo de escola chegou, dessa vez dentro das aldeias, com prédios de alvenaria, caixas fechadas e quentes que isolam as crianças da natureza, que moldam seus corpos livres ao formato da cadeira, que introduzem outra noção de tempo, o tempo parado, imóvel, sem família, sem brincadeira, sem questionamento, sem aprendizado. O tempo de olhar a nuca do companheiro, sem poder falar, ouvindo um professor, que muitas vezes nem fala o seu idioma, repetir fórmulas e conceitos totalmente alienígenas.
Durante muito tempo, algumas aldeias resistiram à entrada das escolas. Tinham medo da influência de fora, da presença dos professores não indígenas. As mães chegavam a impedir que os filhos fossem para aula. Mas aos poucos, essas comunidades resistentes foram vencidas. Muitas delas conseguiram interferir no esquema que chegava pronto, de fora, construindo materiais próprios, na sua língua, formando professores, apesar de todas as dificuldades. Mesmo essas experiências inovadoras sofrem com as regras e burocracias, com papeis a serem preenchidos, documentos e exigências do sistema que muitas vezes são impossíveis de serem cumpridas.
Em comunidades menos preparadas para enfrentar as mudanças provocadas pela escola, o que se vê são professores exercendo seu poder como os novos donos do conhecimento, confrontando os anciãos e a tradição, a merenda escolar distribuindo achocolatados e bolachas recheadas, crianças afastadas das práticas tradicionais e de suas raízes, sem conseguirem se apropriar dos novos instrumentos. E como consequência da influência da escola e de uma nova maneira de enxergar o mundo, temos crianças e jovens perdidos, sem se enquadrarem no mundo dos brancos e distantes da cultura de seu povo, com aspirações materiais que não podem alcançar e sem perspectivas dentro das aldeias.

As comunidades mais tradicionais e fortalecidas conseguem conviver com a escola mantendo os rituais, as reclusões das crianças e jovens, o tempo do aprendizado em família. Nessas aldeias, professores buscam a formação oferecida pelo Estado ao mesmo tempo que adaptam esse conhecimento de fora às necessidades e aspirações da comunidade. São criativos na construção de materiais próprios na língua indígena, usando os recursos e tecnologias para fortalecer sua forma de estar no mundo e a luta pelos direitos.
Difícil imaginar o que vem pela frente em tempos de tanto retrocesso e desrespeito aos povos tradicionais enquanto o Mercado se torna o grande senhor de tudo e todos. Podemos fazer nossa parte, apoiando os povos indígenas, contribuindo para reflexões, questionamentos e ações que transformem essa realidade.