terça-feira, 4 de setembro de 2018

Por uma esquerda pós-apocalíptica

no Outras Palavras

Manifestação pró-direito ao aborto, na Argentina. Para Monedero, “A presença das mulheres nas ruas fez envelhecer todos os partidos políticos, inclusive os de esquerda


Juan Carlos Monedero, cofundador do Podemos, provoca: disputa civilizatória continua aberta; seria patético entregar os pontos antes da hora. O que falta é enxergar as novas insubmissões
Entrevista a Martín Granovsky  | Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel
Político e cientista político, professor da Universidade Complutense de Madri e cofundador de Podemos, esse espanhol de 55 anos é um dos pesquisadores europeus mais ligados aos temas latino-americanos. Esteve de passagem pela Argentina, a convite da Universidade Nacional de Quilmes (na região metropolitana de Buenos Aires), realizando também atividades em centros culturais e acadêmicos ligados aos movimentos sociais, como o Centro Cultural da Cooperação e a nova Universidade Metropolitana para a Educação e o Trabalho (UMET) (ambos na região central da capital argentina).
Há um ano, a principal agrupação da esquerda espanhola apresentou a primeira moção de censura contra o chefe de governo, Mariano Rajoy, do Partido Popular, de direita, modelo internacional para o presidente Mauricio Macri, da Argentina. Em primeiro de junho último, outra moção de censura acabou removendo Rajoy do cargo de primeiro ministro, colocando em seu lugar o social-democrata Pedro Sánchez. Monedero o comentou para o Página 12, de Buenos Aires:“Nós tínhamos grandes intuições e, sobretudo, a vontade firme de afastar Rajoy”.
A seguir, a entrevista.
Monedero: “Nem o poder é uno, nem o capital é uno, nem tudo está tão organizado assim; como também eles podem se equivocar, e não controlam tudo… Às vezes lhes brindamos um poder que eles não têm”
E ele, Rajoy, imaginava que seu fim político era possível?
TEXTO-MEIO
Rajoy contava com a estratégia da impunidade, em que já se escorava havia 15 anos. Eles controlavam os postos mais importantes do Judiciário, o Tribunal Constitucional [equivalente ao STF brasileiro], o Conselho Geral do Poder Judiciário [sem equivalente no Brasil] e o Tribunal Supremo [equivalente ao STJ]. Acreditavam que isso tudo lhes servia de garantia. E eu quero insistir em algo que serve também para a Argentina: eles nunca têm todo o poder. Não têm todos os juízes, não têm todos os procuradores.
Não conseguem realizar a velha ilusão do controle total…
Dentro do marxismo há uma velha discussão. As explicações demasiado estruturalistas tomam ao pé da letra a ideia de que o poder nada mais é que o conselho de administração dos interesses da burguesia, que é uma entidade fechada e que sempre obra em favor da glória maior da minoria dominante. Mas essas não são explicações verdadeiras. Nem o poder é uno, nem o capital é uno, nem tudo está tão organizado assim; como também eles podem se equivocar, e não controlam tudo… Às vezes lhes brindamos um poder que eles não têm. Uma boa parte de nossas sociedades democráticas existe por conta das nossas vitórias. Quando alguém faz um discurso excessivamente negativo ou muito sombrio está renunciando à sua parte de vitória.
A que parte de vitória se renunciaria, por exemplo?
Aos direitos trabalhistas, ao direito ao voto, à universalidade da lei, ao direito à livre manifestação e à greve, ao direito de se associar, ao direito à comunicação… Há uma série de coisas que ainda não perdemos. Eu compreendo que neste momento a Argentina está em risco. É claro que a Junta Militar [que governou o país durante a última ditadura], com a desculpa de lutar contra a insurgência [N. do T.: sobre esse termo e sobre a reação que inspira por parte do establishment, em termos geopolíticos, veja-se aqui], dinamitou o Estado de Direito. E é verdade que o atual governo quer dinamitar tudo o que diga respeito ao kirchnerismo. Mas isso não significa que simplesmente vá rolar na boa. Não é correto dizer que estamos como na ditadura. É verdade que a mídia mente e que não passa de empresas de comunicação a serviço do poder. Mas não é verdade que detenham toda a comunicação, que controlem toda a Internet, ou que não exista o Página 12. Com os discursos apocalípticos às vezes não fazemos mais que convidar à resignação. Certa esquerda até acredita que está sendo mais profunda e esperta quando faz análises muito pessimistas. No fundo ela acaba não mais que como refém do inimigo.
E qual seria a chave de análise realista?
Recusar o pensamento desejante [wishful thinkink].
Mas, por outro lado, não há política sem desejo…
Lembro-me de um cartaz aqui em Buenos Aires que dizia: “Menos realidades e mais promessas!” É a necessidade da esperança. Mas é preciso acertar nas esperanças! Marx ficou muito chateado com os communards de Paris, que em 1871 pretendiam assaltar os céus. “Vocês fizeram um mal diagnóstico”, lhes dizia. “Vocês estão lutando contra [o presidente Adolphe] Thiers em Versalhes e contra Bismarck na Prússia; são poucos, não têm o Exército, não têm os bancos; vão lhes massacrar”. Ao final, depois de dizer isso, foi comprar-lhes armas. Sempre temos que buscar o equilíbrio entre bons diagnósticos e uma boa leitura da correlação de forças. Com os meus alunos, eu uso o exemplo de Game of Thrones, uma série onde alguns companheiros postulam que Ned Stark é revolucionário porque é derrotado. Uns dizem que alguém derrotado não serve. Minha postulação é a contrária. Não existiria Game of Thrones se, ao final da primeira temporada, não pendurassem sua cabeça na ponta de uma lança. O martírio é o que permite alargar a base da emancipação. Mas isso também tem um problema. Significaria que temos que dar combate tão apenas para ter mártires? Teriam razão esses grupos que defendem que é preciso se imolar e que, se há baixas nos protestos, melhor então, porque assim se produzirão protestos ainda maiores?
Sua resposta?
Ela vem do que Walter Benjamin dizia: às vezes, quanto pior, pior. As contradições têm sempre uma saída: alargar a base da deliberação. Em cada decisão, aqueles que estão implicados devem opinar. Me lembro de quando era jovem e duvidava entre tão apenas optar pela objeção de consciência ao serviço militar ou, além disso, ser insubmisso, quer dizer, me negar inclusive a prestar o serviço social substitutivo. [N. do T.: Essas remissões dizem respeito ao “Movimento Insubmisso”, que tem suas raízes nos últimos anos do regime franquista, contra o seu serviço militar obrigatório. O movimento prosseguiu depois de aprovada a Lei de Objeção de Consciência, de 1984, que instituía o serviço social alternativo. Apenas em 2002 essas obrigações e as penalidades à sua contrariedade foram definitivamente abolidas na Espanha]. Se você incidisse na insubmissão, você ia a juízo, e havia muita probabilidade de que lhe condenassem a dois anos de cadeia e lhe inabilitassem [para emprego ou cargo público]. Era isso o que mais me preocupava, porque eu estava terminando a faculdade, sabia que ia estar entre os primeiros ― se não o primeiro ― da minha turma de formatura, que poderia ser professor, e que a inabilitação me impediria de ser docente. Um professor trotskista me disse que se eu não fosse insubmisso, eu era um covarde. Esse professor era um irresponsável!
O que você fez?
Fui insubmisso. Por sorte o juiz não me condenou. Outros colegas foram condenados. Do que me lembro bem é que, quando tomei a decisão, fiquei cinco dias de cama, doente, porque acreditei que estava arruinando a minha vida. Por outro lado, acabei depois dando todos os combates que me couberam na vida, e essa é uma maneira de ser decente.
O Podemos é um partido objetor ou insubmisso?
Procuramos ser responsáveis com o mandato de cinco milhões de votos [cerca de 24% do eleitorado espanhol]. As pessoas votaram em nós não só buscando sair do governo de Rajoy, mas também de suas políticas. Por isso, não tínhamos votado antes a favor de uma composição de governo entre Pedro Sánchez [social-democrata] e Albert Rivera, de Ciudadanos [neodireita liberal]. Sair do governo de Rajoy era uma urgência. Era desesperador ― como agora é na Argentina ― que, de novo, governasse uma camarilha de corruptos, que cortava todos os gastos sociais e manipulava a vontade pública e os meios de comunicação. A esperança às vezes se estreita consideravelmente. Se depois das barbaridades que Macri está fazendo, ele volta a ganhar as eleições, você vai dizer que esse é um momento obscuro na historia, compreensivelmente, sem qualquer espaço para o otimismo.
Não há perigo de se ficar com raiva da realidade?
Ficar com raiva da realidade é coisa de idiotas. A realidade é apenas um dado que você precisa entender. Nada é fácil. Na Espanha, a grande mídia deseja que o Podemos desapareça, porque desafia o poder. Nós, por outro lado, temos a obrigação de dialogar com a nossa base social. São cinco milhões de pessoas jovens, bem formadas, que partiram do 15-M, aquele 15 de maio de 2011, quando, na Porta do Sol, em Madrid, se ouvia: “não somos marionetes nas mãos de políticos e banqueiros”. Essas pessoas jovens se perguntam por que a Espanha não está onde deveria estar ao ser a quarta potência econômica da zona do euro. Eles se perguntam onde estão nossos prêmios Nobel, nossos cineastas, nossos literatos, nossas universidades de ponta… São gente do século 21. Não entendem essa Espanha centralista nem esses partidos políticos corruptos. Preste atenção na Argentina!
Em que, exatamente?
A presença das mulheres nas ruas fez envelhecer todos os partidos políticos, inclusive o peronismo [dos ex-presidentes Kirchner]. Essas mulheres produziram protestos e demandas que excederam a capacidade de previsão dos partidos. De todos. Não conseguiam acompanhar o que acontecia. Os partidos sempre calculam se determinadas decisões vão lhes custar votos. Por isso, o movimento social sempre os sobrepassa. Aconteceu na Espanha com o 15-M, o movimento dos indignados, que não apenas produziu o nascimento do Podemos, como também acabou transformando todos os partidos. As grandes lideranças políticas têm agora em torno de 40 anos, ou menos. Todas. Todos os partidos realizaram primárias, exceto Ciudadanos, que é um partido montado como as Spice Girls, um partido baseado em um desenho de laboratório. Quando, há quatro anos, falávamos de primárias obrigatórias, eles diziam que a gente não entendia de política. Eu lhe pergunto: alguém por aqui está tomando nota do movimento das mulheres? Não apenas da demanda pelo direito de interrupção voluntária da gravidez, mas do seu modo de se articular, da sua maneira de se expressar, da sua forma de mobilizar as redes… Do contrário, a sociedade argentina pode ir em uma direção, e os partidos vão ficar como estátuas.
Mais uma vez o desafio de interpretar a realidade e o de transformá-la…
Você precisa ter cuidado com uma coisa: na política, como dirigente, você tem mais informação que o resto das pessoas. Isso leva você a tomar decisões que a rua não entende. Se uma família faz um ajuste na sua economia e os pais tiram os filhos do colégio sem explicação, os filhos vão se aborrecer. Vão dizer que os pais são uns canalhas que não os amam. Se na hora da janta os pais lhes explicam, os filhos vão entender. Às vezes os políticos não têm tempo de explicar, ou então desprezam a cidadania porque acreditam que não vão ser compreendidos. O símbolo é aquela foto do Obama envelhecido quatro anos… em parte também porque todos os dias tinha que fazer uma lista de quem os fuzileiros tinham que executar, e isso é algo que te deixa de cabelo branco. Às vezes eu acho que Obama é um negro com a alma dos brancos. Mas a verdade é que, continuamente, você toma decisões com muito pouca liberdade. E se você não transmite os problemas à cidadania, ela vai se distanciar de você. Esse é o risco constante da política institucional. Só me ocorre uma vacina, que aprendi do Partido Social-Democrata Alemão, o SPD, quando Willy Brandt governava: diferenciar o partido, do grupo parlamentar e do governo. Eles não têm que se contaminar entre si. O partido não pode ser a correia de transmissão nem do governo nem do grupo parlamentar. Deve se dedicar a manter sua relação com o movimento social, a visitar os bairros, as universidades… Se você leva todos os quadros do partido para o governo, ou é sinal de que ele cresceu rápido demais ou de que não tem uma base suficiente, ou então porque o partido se encheu de arrivistas, que é um dos problemas do Morena do México [Movimento de Regeneração Nacional, frente de esquerda que conquistou a vitória eleitoral nas últimas eleições mexicanas, celebradas em 1º de julho último].
Mas, ao mesmo tempo, Andrés Manuel López Obrador tem uma vantagem: a partir de 1° de dezembro poderá governar com maioria em ambas as câmaras.
Lênin fez bem ou fez mal quando subiu ao trem em que os alemães o puseram em Zurique, para retornar à Rússia? Os alemães pensavam que Lênin desestabilizaria o governo dos czares, e isso os beneficiaria na guerra. Do ponto de vista de Lênin, a perspectiva era outra: “Sei por que esses canalhas estão fazendo isso, mas são os únicos que podem garantir a minha chegada, e depois eu poderei trabalhar para transformar a Revolução de Fevereiro de 1917 na de Outubro”. Quanto você se arrisca? Não apenas em subir no trem. Quanto você se arrisca ao ir aos estúdios de televisão do inimigo? Quanto você se arrisca entrando em um governo onde você não tem a maioria? Quanto você se arrisca ao apoiar, em sua moção de censura, um partido político que você contesta? Na Espanha, o Ciudadanos não nasceu porque o Partido Popular deixou de ser de direita, mas por conta da corrupção [do PP] e da necessidade de ganhar os votos deles. Mas o Podemos, sim, nasceu porque o PSOE havia deixado de ser de esquerda. Tem gente hoje que diz que só de se aproximar da social-democracia “traidora” você já está perdendo.
Sua aposta é arriscar…
Maquiavel dizia que mais vale agir e se equivocar do que não agir. A única vacina é a deliberação. Antes de decidir se apoiaríamos um governo de Sánchez com Rivera, do PSOE com Ciudadanos, perguntamos às bases. O mesmo aconteceu com a moção de censura. É arriscado, porque às vezes as bases se cansam de opinar. Mas não tem outro modo. E nós estamos indo muito bem com isso. Um momento de debilidade, como você sabe, foi quando Pablo Iglesias e Irene Montera compraram uma casa de campo a 30 quilômetros de Madri, a pagar em 30 anos. Não roubaram nada nem isso foi fruto de alguma propina. Simplesmente são duas pessoas jovens, com planos. Diante do ataque da mídia, perguntamos às bases se, por causa dessa casa de campo, Pablo e Irene deveriam continuar sendo dirigentes do Podemos. A parte mais extremada fez campanha para que fossem embora. Era uma irresponsabilidade suprema. Eu votei para que ficassem. Do contrário, com 30% dos votos a direita continuará governando eternamente. Mas sou consciente do que é trabalhar assim. Só que, nas bases, 200 mil pessoas votaram. É muito. É preciso confiar nas pessoas. É a única maneira que você tem de resistir à mídia, aos partidos, às rádios… O poder não contava com a nossa consulta. Derrubamos eles. A base se tornou corresponsável.
Você concorda com a visão que absolutiza o poder da grande mídia?
Nós a derrotamos várias vezes. Temos marcas entalhadas no revólver de quantas vezes derrotamos o grupo Prisa [N. do T.: proprietário do jornal El País, que faz de conta que é progressista], que é muito arrogante. Esse grupo está acostumado a pôr e tirar ministros e presidentes de governo, e não se deu conta de que nós não nos deixamos ser mandados por ninguém. Nem pelos donos do dinheiro nem pelos seus prepostos, como o grupo Prisa. Construíram uma briga interna onde pretenderam investir o número dois do partido como dirigente natural.
Íñigo Errejón.
Derrotamos essa contenda interna. Os derrotamos com as candidaturas em Madri. E os derrotamos no caso da casa de campo. Somos conscientes do poder. Até nos assustamos, porque nossas bases se nutrem da mídia privada. Uma parte importante dos militantes escuta a cadeia SER e lê o jornal El País. Assim, o risco de que nossos militantes dessem ouvido aos editoriais era alto. Mas nem! Por isso é que insisto que eles não têm todo o poder. A priori tudo indicaria que o que o grupo Prisa dissesse seria aquilo no que os nossos militantes iriam votar. E não foi isso que aconteceu. Poderíamos lembrar da campanha contra Bill Clinton no caso de Monica Lewinsky. Ele tornou a ganhar as eleições. A mídia tem um enorme poder de influência, mas não lhe daremos de presente, de forma prévia e determinista, a capacidade absoluta de determinar para onde vamos. Faço a mesma crítica para a Argentina. As pessoas estão num choro interminável, se queixando de que não podem fazer nada. Esse não é um discurso inteligente, mesmo que se pretenda adorná-lo com sutilezas intelectuais. É um discurso derrotista.
Colunista do jornal Página 12, de Buenos Aires, integrante do Conselho do Instituto Novos Paradigmas

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Direitos Humanos - Judiciário vingativo e moroso impede políticas de desencarceramento

no Rede Brasil Atual

Em estudo sobre o cumprimento de indultos do Dia das Mães para mulheres que não cometeram crimes graves, Pastoral Carcerária identificou que o Judiciário atua contra o Direito e decreto presidencial.

mulher presa
Milhares de mulheres, mesmo atendendo a todos as exigências, mesmo com ordem assinada pela presidência, não conseguiram o indulto

São Paulo – Ao lançar nesta quarta-feira (29) o relatório Em Defesa do Desencarceramento de Mulheres: Pesquisa sobre o impacto concreto do indulto do dia das mães de 2017, a Pastoral Carceráriaafirma que o benefício atingiu apenas 3 mil de 14 mil presas. "O abismo entre os números é alarmante”, afirma o documento.
Por meio da análise de dados coletados em diferentes esferas, foi possível encontrar os fatores causadores da discrepância. “A falta de identificação de casos por parte dos atores responsáveis, o baixo número de requerimentos de indulto realizados pelas Defensorias Públicas e as altas taxas de pedidos rejeitados pelos juízes responsáveis.” A atuação das Defensorias, por exemplo, ficou muito abaixo do esperado pela Pastoral, com apenas 513 pedidos naquele ano. Por sua vez, os juízes responsáveis pelas concessões rejeitaram 76,5% dos pedidos.
“Uma vez que os requisitos previstos no Decreto são bastantes claros e aos magistrados cabe apenas declarar a concessão presidencial, é de se estranhar margem tão grande de rejeição frente aos casos já identificados por outros autores. Esses dados sugerem que o Judiciário atravessa a atribuição da presidência”, afirma o relatório, ao lembrar que o indulto de dia das mães de 2017 foi regido por um decreto presidencial de 12 de abril de 2017, que determinou as condições para a efetivação dos indultos. Isso significa que milhares de mulheres, mesmo atendendo a todos as exigências, mesmo com ordem assinada pela presidência, não conseguiram o indulto por impedimento da Justiça.
Os esforços para que essas mulheres, que não cometeram crimes graves, consigam o indulto, é importante para ressocializar, além de funcionar como uma política pública de enfrentamento ao encarceramento em massa visto no país. “No lugar de ampliar e construir presídios, impõe-se a construção de um programa voltado à redução da população prisional e de suas mazelas”, afirma a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, assinada pelo Executivo em 2014.
Diante dessa estratégia, a Pastoral lamenta a postura do Judiciário. “A partir da constatação das prisões lotadas, das humilhações profundas e das interpretações judiciais vingativas, juntando com a morosidade judicial, nasceu (…) a necessidade de ações concretas para verificar se o indulto e outros direitos concedidos estava sendo de fato garantido.”
“Para que ferramentas como o indulto possam ser delineadas e efetivamente de acordo com as necessidades reais da população prisional, é preciso analisar como sua aplicação tem se dado na prática (…) Atrás de cada um dos números apresentados neste relatório, estão as dores, vidas e esperanças de tantas mulheres, famílias, filhos e filhas, pessoas que enxergam no indulto a possibilidade de uma vida fora do cárcere”, completa o estudo.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Índios: a trágica Educação “ofertada” pelo Estado

no Outras Palavras

Imagem: autor desconhecido

Há mais de 2 mil escolas indígenas no Brasil. Baseadas em pedagogias brancas, colonizam, domesticam e destroem uma forma de transmissão de saberes com a qual muito teríamos a aprender
Por Angela Pappiani | Fotos: Helio Nobre/ikore
Não consegui controlar o sentimento. Fiquei com pena das crianças, pequenas ainda, os menores com 3 ou 4 anos, naquele cercado de folhas de babaçu, no meio do pátio da aldeia. Os dias de julho no cerrado brasileiro são secos, 40 graus, derretendo os miolos e abaixo dos 10 graus nas madrugadas, com um sereno fino que deixa tudo molhado e gelado. Os meninos, com calçãozinho vermelho e sem camisetas, dormiam sobre esteiras trançadas de palha, com o céu estrelado sobre a cabeça. O fogo, no centro do círculo, era para aquecer. Mas eu, com blusa de lã e enrolada no cobertor, tiritava de frio. As mães e irmãs levavam comida e água algumas poucas vezes ao dia. E eles resistiam, firmes, levando a sério seu papel importante na cerimônia que se repete apenas a cada 15 anos, o Wai’a.
Essa é apenas uma das muitas provas de resistência por que passam os meninos do povo Xavante. Enfrentam privações, fome, sede, frio, calor, cansaço físico, medo, pressão psicológica. São treinados assim, em longas e duras provas para se tornarem adultos fortes e resistentes, guerreiros conhecedores do território, das estratégias de sobrevivência.
Exatamente o oposto do que nós, os warazu – os não indígenas, fazemos com nossos filhos. Muitas crianças nas cidades e campos, vivem realidades de privações que ainda incluem violência física, ausência de amor e amparo. Mas, de modo geral, tentamos proteger nossos filhos de qualquer adversidade, poupá-los de desconfortos e contrariedades, cercá-los de bens materiais e facilidades que, a nosso ver, melhoram a vida e criam oportunidades.
TEXTO-MEIO
Nas aldeias que conheci, mesmo nos lugares mais precários, onde se luta todo dia por um punhado de comida, pelo direito à água e a um pedaço de chão sob os pés, não falta amor e acompanhamento no processo de transformação das crianças em gente grande. Uma caminhada coletiva, com mães, pais, tios, primos, avós, todos juntos, participando da formação daqueles seres tão importantes, tão desejados, que sabem de suas origens e da missão que terão pela frente: guardar o seu lugar sagrado no mundo, mesmo que o lugar já não exista fisicamente.
As cerimônias que marcam a passagem do tempo são muitas: para receber o bebê que chega ao mundo, para lhe dar nome, para apresentá-lo aos espíritos e ancestrais, para proteger os dentes que nascem, para celebrar a primeira menstruação, para marcar a passagem ao mundo adulto, para formar os guerreiros e guerreiras. E cada povo tem seu jeito de lidar com essas passagens, de marcar cada um desses tempos: com cantos, danças, adornos, comidas especiais, grandes festas que reúnem várias aldeias. As provas e obstáculos estão presentes em cada uma delas.
Os bebês engatinham pelo chão de terra, se aproximam das fogueiras, brincam com formigas, dividem a refeição com o papagaio ou o macaco de estimação. Fazem parte, estão no mundo para conhecer todas as coisas, sentirem os limites e os perigos na pele e aprenderem as lições que só essa vivência permite.
Na aldeia Yanomami do Demini, duas meninas brincavam de fazer uma pequena fogueira, imitando a mãe que cozinhava ao lado. As duas tinham mais ou menos 3 e 5 anos de idade. Um desentendimento entre as duas virou briga. A menor veio chorando até a mãe, reclamando da irmã. A mãe pegou o facão, desses grandes, usados para tudo, e entregou à menina que saiu correndo atrás da outra. Eu, que presenciava a cena, fiquei gelada. A menor correu atrás da irmã, gritando, com raiva, arrastando o facão pesado por um tempo e desistiu. A outra riu, se aproximou, e as duas voltaram a brincar. A mãe continuava nos seus afazeres, tranquila. Eu perguntei sobre os riscos do que havia acontecido. Ela, generosa e paciente, me explicou: a menor se sentira poderosa com o facão na mão, ela era mais fraca e lenta que a outra, nunca a alcançaria nem teria forças para erguer o facão e machucar a irmã, que, no esforço, sua raiva havia se aplacado rápido e cada uma tivera sua lição. Sabedoria Yanomami para lidar com os filhos.
Nos anos de convivência com tantas aldeias, nunca vi uma dessas crianças machucada com gravidade, nenhum acidente fatal. As crianças nas aldeias aprendem os limites do seu ambiente, convivem com o rio, com o fogo, com a chuva, com a enchente, sobem em árvore, andam descalças na mata. Escapam das cobras, das onças, dos marimbondos porque os avós contam histórias que as preparam e rezam para protegê-las. O que mata as crianças nas aldeias é o sarampo, a pneumonia, a malária, a diarreia, a subnutrição, o agrotóxico na água e no ar, os acidentes dos caminhões precários. Causas externas, violência que envolve os territórios e vai se banalizando.
E as crianças nas aldeias trabalham, porque o trabalho é o que mantém a vida, que promove o desenvolvimento, o aprendizado, a noção do coletivo. Crianças participam de todas as tarefas da casa, carregam os irmãos menores, vão para a roça com as mães, pegam lenha e água, pescam, caçam, trançam esteiras e balaios, fazem adornos e panelas. E isso as faz membros de um povo, parte fundamental do coletivo, lhes dá um lugar, as ensina sobre matemática, geografia, história, ciência, economia, medicina, arquitetura. Quanto conhecimento é passado nas brincadeiras, nos momentos de compartilhar o trabalho e as histórias! O experimentar constrói noções fundamentais, aguça a curiosidade, faz pensar, exercita a memória, as habilidades. Nas brincadeiras, crianças imitam os adultos com criatividade e muita alegria.
Aos poucos, as escolas formais foram chegando às aldeias. Em algumas, era reivindicação do povo indígena; em outras, imposição do sistema. Mas, de qualquer forma, o que desejavam era o que prevê a Constituição: “uma educação escolar específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária”. Direito conquistado com muita luta e que, como outros direitos, ficou só no papel. O ministério da Educação tem a responsabilidade de construir as políticas públicas para a educação e a execução nas áreas indígenas fica a cargo dos governos estaduais e municipais, onde o preconceito e os conflitos são mais presentes. Se a questão da educação escolar já é complicada a nível nacional a coisa complica ainda mais diante da diversidade de povos indígenas e realidades em cada região do país.
Até meados do século 20, o modelo de escola que existia em algumas áreas indígenas era o da missão religiosa que retirava crianças do convívio da família e as confinava em internatos onde eram proibidas de falar seu idioma e praticar sua cultura. Ali recebiam formação religiosa e aprendiam um ofício que as capacitava para se “integrarem ao mundo”, como cidadãos produtivos. Sofriam abusos físicos e psicológicos. Crianças eram entregues a famílias de brancos, muitas vezes de militares, para que fossem criadas distantes de seus territórios, de suas raízes. O plano do Estado era de acabar definitivamente com os povos indígenas, com sua diversidade cultural, construindo uma única nação, com uma única língua e cultura. O plano falhou. Felizmente os povos indígenas foram mais fortes, organizados e resistentes do que se podia imaginar. Independente das perdas irreparáveis que sofreram, conseguiram se erguer e buscar novas estratégias de sobrevivência diante da nação que seguia seu plano de desenvolvimento.
Até que outro modelo de escola chegou, dessa vez dentro das aldeias, com prédios de alvenaria, caixas fechadas e quentes que isolam as crianças da natureza, que moldam seus corpos livres ao formato da cadeira, que introduzem outra noção de tempo, o tempo parado, imóvel, sem família, sem brincadeira, sem questionamento, sem aprendizado. O tempo de olhar a nuca do companheiro, sem poder falar, ouvindo um professor, que muitas vezes nem fala o seu idioma, repetir fórmulas e conceitos totalmente alienígenas.
Durante muito tempo, algumas aldeias resistiram à entrada das escolas. Tinham medo da influência de fora, da presença dos professores não indígenas. As mães chegavam a impedir que os filhos fossem para aula. Mas aos poucos, essas comunidades resistentes foram vencidas. Muitas delas conseguiram interferir no esquema que chegava pronto, de fora, construindo materiais próprios, na sua língua, formando professores, apesar de todas as dificuldades. Mesmo essas experiências inovadoras sofrem com as regras e burocracias, com papeis a serem preenchidos, documentos e exigências do sistema que muitas vezes são impossíveis de serem cumpridas.
Em comunidades menos preparadas para enfrentar as mudanças provocadas pela escola, o que se vê são professores exercendo seu poder como os novos donos do conhecimento, confrontando os anciãos e a tradição, a merenda escolar distribuindo achocolatados e bolachas recheadas, crianças afastadas das práticas tradicionais e de suas raízes, sem conseguirem se apropriar dos novos instrumentos. E como consequência da influência da escola e de uma nova maneira de enxergar o mundo, temos crianças e jovens perdidos, sem se enquadrarem no mundo dos brancos e distantes da cultura de seu povo, com aspirações materiais que não podem alcançar e sem perspectivas dentro das aldeias.

As comunidades mais tradicionais e fortalecidas conseguem conviver com a escola mantendo os rituais, as reclusões das crianças e jovens, o tempo do aprendizado em família. Nessas aldeias, professores buscam a formação oferecida pelo Estado ao mesmo tempo que adaptam esse conhecimento de fora às necessidades e aspirações da comunidade. São criativos na construção de materiais próprios na língua indígena, usando os recursos e tecnologias para fortalecer sua forma de estar no mundo e a luta pelos direitos.
Difícil imaginar o que vem pela frente em tempos de tanto retrocesso e desrespeito aos povos tradicionais enquanto o Mercado se torna o grande senhor de tudo e todos. Podemos fazer nossa parte, apoiando os povos indígenas, contribuindo para reflexões, questionamentos e ações que transformem essa realidade.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Argentina: nada será como antes

no Outras Palavras


Uma semana depois, balanço da jornada que quase levou à aprovação do direito ao aborto indica: lutas feministas tornaram-se mais fortes que nunca, espalham-se pelo continente e desafiam promiscuidade entre religião e Estado
Por Fernanda Paixão e Antônio Ferreira, do Coletivo Passarinho
Na madrugada da quinta-feira 9 de agosto, depois de mais de 17 horas de pronunciamentos, o Senado argentino vetou o projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez (IVA). A longa jornada de mobilização nas imediações do Congresso desde as primeiras horas do dia 8 de Aborto, ou “8A”, como se intitulou a data histórica, terminava com o rechaço decidido por 24 senadores e 14 senadoras. Nas ruas, o lado dos lenços azuis “pró-vida”, à direita do edifício do Congresso, não economizou fogos de artifício e cartazes alçados com os dizeres “Cristo venceu”. O lema “Que seja lei”, difundido nos últimos meses por toda Argentina junto com a maré verde pró-aborto legal, ao final da noite deu lugar com força ao “Será lei”. Talvez não hoje, mas amanhã, como ressaltaram em seus discursos senadores que votaram pelo “sim”, como Pino Solanas e a ex-presidenta Cristina Kirchner. O projeto, que já foi apresentado ao Congresso Nacional sete vezes, agora espera o início das sessões legislativas de 2019 para ser apresentado novamente.
Na manhã seguinte, em contraste com um 8 de agosto coberto de chuva, abriu-se um dia estranhamente ensolarado. O aborto seguia na clandestinidade, deixando em jogo a vida, a saúde e a autonomia das mulheres de todo um país. Porém, aquela jornada épica de quase 2 milhões de pessoas que passaram todo o dia sob uma incessante chuva e sensação térmica de 2ºC, mostrou com clareza que alguma coisa estava fora da velha ordem. O país foi tomado pelos lenços verdes, símbolo da Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito. Até o mais reacionário dos senadores antidireitos e pró-aborto clandestino pôde sentir que este rio que tudo arrasta não vai parar.
Foto de Vivian Ribeiro, do Coletivo Passarinho
A maré verde
Tanto nesse 8A quanto na vigília daquele 13 de junho, quando o projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados, os arredores à esquerda do Congresso se transformaram em um espaço e contexto de sororidade, onde milhares de mulheres desconhecidas encontravam algo em comum, profundamente familiar. O microcosmos da avenida Callao, entre a avenida Corrientes e a rua Sarmiento, estava repleto de tendas de diversas organizações, como o Nenhuma a Menos, a Assembleia Popular Feminista (APF) e a Não Tão Diferentes, organização de mulheres em situação de rua.
TEXTO-MEIO
O movimento de mulheres conseguiu enraizar socialmente o tema da legalização do aborto. Levou o assunto para a rua, escolas, hospitais e, sobretudo, para dentro das famílias. Furou o bloqueio da mídia hegemônica e conseguiu pautar o debate. Desmantelou a separação entre o público e o privado, que sempre se prestou para reforçar o machismo, politizando a sala de jantar. Fez irromper uma identidade feminista forte, descentralizada, que alimentou as ações cotidianas com alegria e energia desmedidas. Daí a pujança do 8A e a convicção desse verso tão cantado em coro feminino: “Abaixo o patriarcado, que vai cair, que vai cair”.
A luta pela legalização do aborto na Argentina é a ponta de um iceberg que tem por debaixo décadas de organização feminista. A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal foi gestada nos Encontros Nacionais de Mulheres de Rosário e Mendoza e lançada oficialmente em 28 de maio de 2005, no Dia Internacional de Ação pela Saúde das Mulheres. De lá pra cá, o movimento foi incansável no debate científico-universitário e nas discussões sobre políticas públicas para mulheres. Construiu um mote claro: “Educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar e aborto legal para não morrer”.
Assim, a questão do aborto legal entrou na agenda dos direitos humanos e da democracia, e foi incorporada por diversas outras organizações denominadas “socorristas”, que cumprem um importante papel de dar assistência a mulheres que desejam realizar um aborto, enquanto a lei não sai.
“O compartilhamento de experiências é necessário entre as mulheres que vivenciam uma gravidez indesejada. As equipes de saúde que prestam informações relevantes a quem opta por realizar um aborto são criminalizadas”, afirma Yamila, integrante da Assembleia Popular Feminista, destacando o papel do Protocolo ILE (Protocolo para a Atenção Integral das Pessoas com Direito a Interrupção Legal da Gravidez), que foi base para determinar o reconhecimento do aborto por lei no Brasil: casos de estupro, risco de vida da mãe e anencefalia do feto.
Foto de Nuria Alvarez, do Coletivo Passarinho
Um novo cenário
A grande maré verde contou com a ocupação de escolas por estudantes secundaristas para exigir a aprovação do projeto, como ocorreu na Escola Superior de Educação Artística Rogelio Yrurtia, na cidade de Buenos Aires. No colégio Católico Instituto Padre Márquez os alunos foram obrigados a colar cartazes “pró-vida” e a resposta foi uma chuva de lenços verdes. Professores encurralados ou encorajados pela audácia das jovens não tiveram como fugir do debate. O aborto teve que entrar na pauta escolar. Nas manifestações e diariamente nas ruas é comum ver meninas jovens com seu grupo de amigas, todas com os lenços – ou pañuelos – verdes, com argumentos muito claros sobre o que significa a legalização do aborto na sociedade.
A linguagem inclusiva também ganhou espaços antes inimagináveis. Cresceu nos coletivos militantes, em parte do jornalismo, especialmente o contra-hegemônico, e em círculos literários. Antes com o “x”, de “xs estudantxs”, e agora com o “e”, de “es menines”, desnuda como a linguagem corrente sedimentou em sua própria estrutura concepções patriarcais, heteronormativas e binárias. Para além dos binarismos, a nova linguagem busca transpor os gêneros.
Tudo isso não seria possível sem a força comunicativa da campanha. Ao contrário do Brasil, a Argentina não possui um sistema de meios de comunicação tão concentrado e unidimensional. Seja pela sua tradição mais igualitária e democrática ou por avanços da lei de meios de comunicação durante o período kirchnerista, há algum espaço para o dissenso. Exemplos disso são o Página 12, jornal impresso diário com perfil de esquerda; a C5N, uma rede de televisão privada claramente contrária ao governo Macri, e diversas redes de rádios com perfil crítico. Mesmo nos canais televisivos do establishment existe uma tradição de debate aberto entre diversas correntes de pensamento. Tudo isso somado a uma pujante rede de meios de comunicação alternativos e à difusão do movimento pelas redes sociais permitiu que a questão ganhasse corpo, transformando-se em um debate público de massas.
Foto de Vivian Ribeiro, do Coletivo Passarinho
Mulheres contra os direitos das mulheres
Com maioria de votos contrários do bloco Cambiemos, do atual governo, a lei foi rejeitada com 38 votos negativos contra 31 a favor. Como se poderia prever, as mulheres não são maioria na mesa. Contudo, o corpo do Senado argentino atualmente é conformado por 30 mulheres e 40 homens, uma relação bastante equilibrada considerando que a presença de mulheres nas cadeiras altas no âmbito político normalmente representa uma porcentagem ínfima em comparação aos homens. Enquanto na Argentina a presença de mulheres representa 41,7% do Senado, no Brasil são 14,8%. A Argentina é um dos poucos países da América Latina que contempla em maior número mulheres na política, inclusive na presidência do parlamento – neste caso, quem coloca a Argentina nesse posto é a vice-presidente Gabriela Michetti, confessamente contrária à lei do aborto. Durante os meses prévios à sessão que iria presidir, Michetti arriscou manobras para atrasar a votação do projeto e soltou frases polêmicas sobre a questão do aborto mesmo em casos de estupro: “Você pode dar depois em adoção depois e fica tudo bem. Há dramas maiores na vida”.
O 8A foi marcado pela prevalência final das cadeiras representadas em vermelho nos telões que transmitiam a sessão para a multidão do lado de fora, e o voto feminino no Senado se dividiu: de 28 mulheres votantes, 14 optaram pelo “sim” e 14 pelo “não”. As duas senadoras que se abstiveram foram Eugenia Caltafamo, do partido Unidad Justicialista, do estado de San Luis, que não se apresentou por estar de licença-maternidade; e a senadora Lucila Crexell, do Movimiento Popular Neuquino, de Neuquén, que mesmo presente pediu abstenção. Ela buscava a aprovação de um projeto intermediário que contemplasse a despenalização, mas não a legalização da prática.
A maioria das que vetaram o projeto sustentava “argumentos” pouco fundamentados sobre o início da vida e sobre o conceito de maternidade. Entre afirmações como “não li o projeto de lei”, proferida pela senadora Cristina López Valverde, de San Juan, do partido Frente Todos, e que “uma mulher que está em uma gravidez não desejada precisa de alternativas que não ponham em risco a vida de seu filho”, da senadora de Tucumán Silvia Elías de Pérez, da Unión Cívica Radical, a postura em negativa de senadoras mulheres foi decisiva para o resultado no Senado. Com justificativas tão vazias quanto contraditórias, seus discursos só parecem levemente menos absurdos do que os de senadores homens que acreditam poder opinar sobre a gravidez e até sobre o que representa um estupro para uma mulher. Em um momento inacreditável da sessão, o senador de Salta, Rodolfo Urtubey, do partido Justicialista, deixou uma multidão chocada com sua exposição: “O estupro nem sempre representa uma violência contra a mulher. Por exemplo, nos casos de abuso intrafamiliar. Não é o estupro clássico”. Já se espalham petições denunciando o senador por apologia ao estupro.
Foto: Nuria Alvarez, do Coletivo Passarinho
Macrismo polivalente
Nem tudo são flores neste processo de ascendência do movimento feminista e de discussão sobre o aborto legal. A situação se complexifica quando se verifica que o próprio presidente Maurício Macri foi quem habilitou o debate no Congresso Nacional em seu discurso de abertura das sessões legislativas deste ano. Por ironia do destino, um projeto cujo debate legislativo foi barrado durante os mais de 10 anos de kirchnerismo foi disparado por um governo neoliberal do tipo Robin Hood às avessas, que promove um ajuste brutal sobre o povo argentino e inicia mais um ciclo de dependência descarada, com a predominância dos interesses do setor financeiro e agro-exportador.
Independentemente dos objetivos íntimos do presidente (promover uma cortina de fumaça para a crise brutal pela qual passa Argentina; buscar aproximação com um setor das classes médias liberais e progressistas ou contribuir para um feito histórico equiparável ao que significou a aprovação do casamento igualitário durante o governo de Cristina), o fato concreto é que a discussão legislativa do projeto deu vazão a um processo que já deixou marcas irreversíveis na sociedade argentina. Essas marcas ultrapassam ainda os limites do país hermano, em uma repercussão expansiva de uma campanha pela legalização do aborto por toda a América Latina, que se faz notar especialmente pelo fato de que a Argentina sequer é o primeiro país a levantar o assunto: o Uruguai mesmo, ali ao lado, conquistou a aprovação da lei em 2012.
Macri, com seu pragmatismo neoliberal, fez questão de deixar claro que individualmente era contra a legalização do aborto. Agora, juntamente com alguns de seus correligionários do Cambiemos, busca eximir-se de responsabilidade, afastando-se dos resultados da votação. Tenta ocultar que dos 25 senadores que compõem o bloco Cambiemos, 17 votaram contra o projeto. Entretanto, a forma cínica e burlesca como Gabriela Michetti conduziu os trabalhos legislativos, insultando senadores pró-legalização e comemorando a rejeição do projeto, dá conta de como sob o macrismo, o liberalismo e o medievalismo da Opus Dei convivem em harmonia.
Foto: Nuria Alvarez
Reação e contrarreação
O deputado da esquerda trotskista Nicolas Del Caño, quando da sessão que aprovou a legalização na Câmara dos Deputados disse que “em um Senado dominado diretamente por governadores feudais do Partido Justicialista, do Cambiemos e de partidos provinciais, não seria fácil a sanção da lei”. E realmente, após a aprovação parcial do projeto na Câmara, a reação foi imediata. Luciana Rosende e Werner Pertot, em minucioso artigo sobre o tema, contam como se deu essa reviravolta. Segundo as autoras, “a partir de 13 de junho os setores antidireitos redobraram a aposta. A Igreja assumiu uma posição beligerante, as ONGs religiosas ativaram seus contatos nos meios de comunicação, aumentaram sua pressão sobre o governo e sobre o bloco de oposição. E começaram a ser vistos mais lenços azuis com o lema ‘Salvemos as duas vidas’”. A concertação entre o conservadorismo das elites provinciais, as ações performáticas do grupos “pró-vida” e a intelligentsia dos quadros médicos e de juristas da Universidade Católica e Universidade Austral, esta última da Opus Dei, foram imprescindíveis para garantir o “não” no Senado.
Entretanto, a derrota da legalização do aborto abriu o caminho para outro debate. Colocou na ordem do dia a discussão sobre a laicidade do estado – diferente do Brasil, a Argentina sequer se declara um Estado laico. Junto aos lenços verdes surgiram os lenços laranjas da Campanha Nacional pelo Estado Laico, que diz: “Igreja e Estado Assuntos Separados”. Veio à tona a questão do financiamento estatal da Igreja Católica e do pagamento dos salários dos bispos por parte do Estado, ancorados em leis editadas durante a ditadura militar argentina, por Rafael Videla. Nora Cortiñas, uma das mães da Praça de Maio, disse sem meias palavras que “durante a ditadura a Igreja não se importava com as duas vidas, davam choques elétricos na vagina de mulheres grávidas e a Igreja abençoava os voos da morte”.
Na linha discursiva dos que votaram pelo “não”, principalmente entre os senadores homens, há uma perda do que chamam de “paz social”. Ter mulheres nas ruas pedindo por seus direitos balança as estruturas, provocando receio. Sempre foi assim – um dos grandes “argumentos” contra o sufrágio feminino era que seria muito trabalhoso “ensinar às mulheres a importância do voto”, um eufemismo risível que deixa exposto em carne viva o medo da perda de controle. É que na ação coletiva as mulheres retiram o patriarcado da sua posição naturalizada e de perigosa invisibilidade. De repente, o poder masculino aparece como violência e força bruta. E certamente não é agradável tomar consciência da sua própria condição de opressor.
Octavio Salazar, professor de Direito Constitucional da Universidade de Córdoba e autor do livro El hombre que (no) deberíamos ser, fala que “nós, homens, temos medo do feminismo porque nos revela coisas de nós mesmos que não gostamos de conhecer”. Talvez o grande medo que inspira a reação machista é que as mulheres empoderadas venham a fazer com os homens o que eles sempre fizeram sob a benção do patriarcado.
Foto: Vivian Ribeiro, do Coletivo Passarinho
Não se pode parar o vento
A onda verde se espalhou pela América Latina. A pauta está instalada com uma força nunca antes vista e a mensagem é clara: a campanha continua. Os lenços verdes chegaram a diversos países e vêm se espalhando pelo Brasil, onde o tema já está instalado no Supremo Tribunal Federal, apesar da imprevisibilidade do resultado do julgamento. As últimas audiências dos dias 3 e 6 de agosto, presididas pela ministra Rosa Weber, já são vistas como um grande passo.
Dois dias depois da rejeição da lei, a campanha oficial publicou uma mensagem exaltando a conquista inédita e histórica de colocar em pauta a problemática das mulheres e de se fazer ouvir as vozes feministas. Enfatizou a importância de não votar nos políticos que se abstiveram ou foram contrários ao direito das mulheres a decidir. A campanha convocou aos chamados “pañuelazos” – manifestações em que todas levantam seus lenços verdes em um símbolo coletivo de demanda por uma lei do aborto seguro e gratuito –, na América Latina e no mundo; e também a que todas estejam presentes no Encontro Nacional de Mulheres, a acontecer este ano na província de Chubut, no sul do país.
Ao reforçar a necessidade de um Estado laico, o comunicado joga luz sobre um assunto profundamente necessário, reforçando a importância dessa campanha, representada pelos lenços laranjas. Talvez mais ainda no Brasil, onde religião e política andam cada vez mais juntas. O grito vem das ruas, e como bem se anda dizendo entre os grupos feministas nesses últimos dias: nunca nada nos foi dado de mão beijada.