sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Argentina: nada será como antes

no Outras Palavras


Uma semana depois, balanço da jornada que quase levou à aprovação do direito ao aborto indica: lutas feministas tornaram-se mais fortes que nunca, espalham-se pelo continente e desafiam promiscuidade entre religião e Estado
Por Fernanda Paixão e Antônio Ferreira, do Coletivo Passarinho
Na madrugada da quinta-feira 9 de agosto, depois de mais de 17 horas de pronunciamentos, o Senado argentino vetou o projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez (IVA). A longa jornada de mobilização nas imediações do Congresso desde as primeiras horas do dia 8 de Aborto, ou “8A”, como se intitulou a data histórica, terminava com o rechaço decidido por 24 senadores e 14 senadoras. Nas ruas, o lado dos lenços azuis “pró-vida”, à direita do edifício do Congresso, não economizou fogos de artifício e cartazes alçados com os dizeres “Cristo venceu”. O lema “Que seja lei”, difundido nos últimos meses por toda Argentina junto com a maré verde pró-aborto legal, ao final da noite deu lugar com força ao “Será lei”. Talvez não hoje, mas amanhã, como ressaltaram em seus discursos senadores que votaram pelo “sim”, como Pino Solanas e a ex-presidenta Cristina Kirchner. O projeto, que já foi apresentado ao Congresso Nacional sete vezes, agora espera o início das sessões legislativas de 2019 para ser apresentado novamente.
Na manhã seguinte, em contraste com um 8 de agosto coberto de chuva, abriu-se um dia estranhamente ensolarado. O aborto seguia na clandestinidade, deixando em jogo a vida, a saúde e a autonomia das mulheres de todo um país. Porém, aquela jornada épica de quase 2 milhões de pessoas que passaram todo o dia sob uma incessante chuva e sensação térmica de 2ºC, mostrou com clareza que alguma coisa estava fora da velha ordem. O país foi tomado pelos lenços verdes, símbolo da Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito. Até o mais reacionário dos senadores antidireitos e pró-aborto clandestino pôde sentir que este rio que tudo arrasta não vai parar.
Foto de Vivian Ribeiro, do Coletivo Passarinho
A maré verde
Tanto nesse 8A quanto na vigília daquele 13 de junho, quando o projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados, os arredores à esquerda do Congresso se transformaram em um espaço e contexto de sororidade, onde milhares de mulheres desconhecidas encontravam algo em comum, profundamente familiar. O microcosmos da avenida Callao, entre a avenida Corrientes e a rua Sarmiento, estava repleto de tendas de diversas organizações, como o Nenhuma a Menos, a Assembleia Popular Feminista (APF) e a Não Tão Diferentes, organização de mulheres em situação de rua.
TEXTO-MEIO
O movimento de mulheres conseguiu enraizar socialmente o tema da legalização do aborto. Levou o assunto para a rua, escolas, hospitais e, sobretudo, para dentro das famílias. Furou o bloqueio da mídia hegemônica e conseguiu pautar o debate. Desmantelou a separação entre o público e o privado, que sempre se prestou para reforçar o machismo, politizando a sala de jantar. Fez irromper uma identidade feminista forte, descentralizada, que alimentou as ações cotidianas com alegria e energia desmedidas. Daí a pujança do 8A e a convicção desse verso tão cantado em coro feminino: “Abaixo o patriarcado, que vai cair, que vai cair”.
A luta pela legalização do aborto na Argentina é a ponta de um iceberg que tem por debaixo décadas de organização feminista. A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal foi gestada nos Encontros Nacionais de Mulheres de Rosário e Mendoza e lançada oficialmente em 28 de maio de 2005, no Dia Internacional de Ação pela Saúde das Mulheres. De lá pra cá, o movimento foi incansável no debate científico-universitário e nas discussões sobre políticas públicas para mulheres. Construiu um mote claro: “Educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar e aborto legal para não morrer”.
Assim, a questão do aborto legal entrou na agenda dos direitos humanos e da democracia, e foi incorporada por diversas outras organizações denominadas “socorristas”, que cumprem um importante papel de dar assistência a mulheres que desejam realizar um aborto, enquanto a lei não sai.
“O compartilhamento de experiências é necessário entre as mulheres que vivenciam uma gravidez indesejada. As equipes de saúde que prestam informações relevantes a quem opta por realizar um aborto são criminalizadas”, afirma Yamila, integrante da Assembleia Popular Feminista, destacando o papel do Protocolo ILE (Protocolo para a Atenção Integral das Pessoas com Direito a Interrupção Legal da Gravidez), que foi base para determinar o reconhecimento do aborto por lei no Brasil: casos de estupro, risco de vida da mãe e anencefalia do feto.
Foto de Nuria Alvarez, do Coletivo Passarinho
Um novo cenário
A grande maré verde contou com a ocupação de escolas por estudantes secundaristas para exigir a aprovação do projeto, como ocorreu na Escola Superior de Educação Artística Rogelio Yrurtia, na cidade de Buenos Aires. No colégio Católico Instituto Padre Márquez os alunos foram obrigados a colar cartazes “pró-vida” e a resposta foi uma chuva de lenços verdes. Professores encurralados ou encorajados pela audácia das jovens não tiveram como fugir do debate. O aborto teve que entrar na pauta escolar. Nas manifestações e diariamente nas ruas é comum ver meninas jovens com seu grupo de amigas, todas com os lenços – ou pañuelos – verdes, com argumentos muito claros sobre o que significa a legalização do aborto na sociedade.
A linguagem inclusiva também ganhou espaços antes inimagináveis. Cresceu nos coletivos militantes, em parte do jornalismo, especialmente o contra-hegemônico, e em círculos literários. Antes com o “x”, de “xs estudantxs”, e agora com o “e”, de “es menines”, desnuda como a linguagem corrente sedimentou em sua própria estrutura concepções patriarcais, heteronormativas e binárias. Para além dos binarismos, a nova linguagem busca transpor os gêneros.
Tudo isso não seria possível sem a força comunicativa da campanha. Ao contrário do Brasil, a Argentina não possui um sistema de meios de comunicação tão concentrado e unidimensional. Seja pela sua tradição mais igualitária e democrática ou por avanços da lei de meios de comunicação durante o período kirchnerista, há algum espaço para o dissenso. Exemplos disso são o Página 12, jornal impresso diário com perfil de esquerda; a C5N, uma rede de televisão privada claramente contrária ao governo Macri, e diversas redes de rádios com perfil crítico. Mesmo nos canais televisivos do establishment existe uma tradição de debate aberto entre diversas correntes de pensamento. Tudo isso somado a uma pujante rede de meios de comunicação alternativos e à difusão do movimento pelas redes sociais permitiu que a questão ganhasse corpo, transformando-se em um debate público de massas.
Foto de Vivian Ribeiro, do Coletivo Passarinho
Mulheres contra os direitos das mulheres
Com maioria de votos contrários do bloco Cambiemos, do atual governo, a lei foi rejeitada com 38 votos negativos contra 31 a favor. Como se poderia prever, as mulheres não são maioria na mesa. Contudo, o corpo do Senado argentino atualmente é conformado por 30 mulheres e 40 homens, uma relação bastante equilibrada considerando que a presença de mulheres nas cadeiras altas no âmbito político normalmente representa uma porcentagem ínfima em comparação aos homens. Enquanto na Argentina a presença de mulheres representa 41,7% do Senado, no Brasil são 14,8%. A Argentina é um dos poucos países da América Latina que contempla em maior número mulheres na política, inclusive na presidência do parlamento – neste caso, quem coloca a Argentina nesse posto é a vice-presidente Gabriela Michetti, confessamente contrária à lei do aborto. Durante os meses prévios à sessão que iria presidir, Michetti arriscou manobras para atrasar a votação do projeto e soltou frases polêmicas sobre a questão do aborto mesmo em casos de estupro: “Você pode dar depois em adoção depois e fica tudo bem. Há dramas maiores na vida”.
O 8A foi marcado pela prevalência final das cadeiras representadas em vermelho nos telões que transmitiam a sessão para a multidão do lado de fora, e o voto feminino no Senado se dividiu: de 28 mulheres votantes, 14 optaram pelo “sim” e 14 pelo “não”. As duas senadoras que se abstiveram foram Eugenia Caltafamo, do partido Unidad Justicialista, do estado de San Luis, que não se apresentou por estar de licença-maternidade; e a senadora Lucila Crexell, do Movimiento Popular Neuquino, de Neuquén, que mesmo presente pediu abstenção. Ela buscava a aprovação de um projeto intermediário que contemplasse a despenalização, mas não a legalização da prática.
A maioria das que vetaram o projeto sustentava “argumentos” pouco fundamentados sobre o início da vida e sobre o conceito de maternidade. Entre afirmações como “não li o projeto de lei”, proferida pela senadora Cristina López Valverde, de San Juan, do partido Frente Todos, e que “uma mulher que está em uma gravidez não desejada precisa de alternativas que não ponham em risco a vida de seu filho”, da senadora de Tucumán Silvia Elías de Pérez, da Unión Cívica Radical, a postura em negativa de senadoras mulheres foi decisiva para o resultado no Senado. Com justificativas tão vazias quanto contraditórias, seus discursos só parecem levemente menos absurdos do que os de senadores homens que acreditam poder opinar sobre a gravidez e até sobre o que representa um estupro para uma mulher. Em um momento inacreditável da sessão, o senador de Salta, Rodolfo Urtubey, do partido Justicialista, deixou uma multidão chocada com sua exposição: “O estupro nem sempre representa uma violência contra a mulher. Por exemplo, nos casos de abuso intrafamiliar. Não é o estupro clássico”. Já se espalham petições denunciando o senador por apologia ao estupro.
Foto: Nuria Alvarez, do Coletivo Passarinho
Macrismo polivalente
Nem tudo são flores neste processo de ascendência do movimento feminista e de discussão sobre o aborto legal. A situação se complexifica quando se verifica que o próprio presidente Maurício Macri foi quem habilitou o debate no Congresso Nacional em seu discurso de abertura das sessões legislativas deste ano. Por ironia do destino, um projeto cujo debate legislativo foi barrado durante os mais de 10 anos de kirchnerismo foi disparado por um governo neoliberal do tipo Robin Hood às avessas, que promove um ajuste brutal sobre o povo argentino e inicia mais um ciclo de dependência descarada, com a predominância dos interesses do setor financeiro e agro-exportador.
Independentemente dos objetivos íntimos do presidente (promover uma cortina de fumaça para a crise brutal pela qual passa Argentina; buscar aproximação com um setor das classes médias liberais e progressistas ou contribuir para um feito histórico equiparável ao que significou a aprovação do casamento igualitário durante o governo de Cristina), o fato concreto é que a discussão legislativa do projeto deu vazão a um processo que já deixou marcas irreversíveis na sociedade argentina. Essas marcas ultrapassam ainda os limites do país hermano, em uma repercussão expansiva de uma campanha pela legalização do aborto por toda a América Latina, que se faz notar especialmente pelo fato de que a Argentina sequer é o primeiro país a levantar o assunto: o Uruguai mesmo, ali ao lado, conquistou a aprovação da lei em 2012.
Macri, com seu pragmatismo neoliberal, fez questão de deixar claro que individualmente era contra a legalização do aborto. Agora, juntamente com alguns de seus correligionários do Cambiemos, busca eximir-se de responsabilidade, afastando-se dos resultados da votação. Tenta ocultar que dos 25 senadores que compõem o bloco Cambiemos, 17 votaram contra o projeto. Entretanto, a forma cínica e burlesca como Gabriela Michetti conduziu os trabalhos legislativos, insultando senadores pró-legalização e comemorando a rejeição do projeto, dá conta de como sob o macrismo, o liberalismo e o medievalismo da Opus Dei convivem em harmonia.
Foto: Nuria Alvarez
Reação e contrarreação
O deputado da esquerda trotskista Nicolas Del Caño, quando da sessão que aprovou a legalização na Câmara dos Deputados disse que “em um Senado dominado diretamente por governadores feudais do Partido Justicialista, do Cambiemos e de partidos provinciais, não seria fácil a sanção da lei”. E realmente, após a aprovação parcial do projeto na Câmara, a reação foi imediata. Luciana Rosende e Werner Pertot, em minucioso artigo sobre o tema, contam como se deu essa reviravolta. Segundo as autoras, “a partir de 13 de junho os setores antidireitos redobraram a aposta. A Igreja assumiu uma posição beligerante, as ONGs religiosas ativaram seus contatos nos meios de comunicação, aumentaram sua pressão sobre o governo e sobre o bloco de oposição. E começaram a ser vistos mais lenços azuis com o lema ‘Salvemos as duas vidas’”. A concertação entre o conservadorismo das elites provinciais, as ações performáticas do grupos “pró-vida” e a intelligentsia dos quadros médicos e de juristas da Universidade Católica e Universidade Austral, esta última da Opus Dei, foram imprescindíveis para garantir o “não” no Senado.
Entretanto, a derrota da legalização do aborto abriu o caminho para outro debate. Colocou na ordem do dia a discussão sobre a laicidade do estado – diferente do Brasil, a Argentina sequer se declara um Estado laico. Junto aos lenços verdes surgiram os lenços laranjas da Campanha Nacional pelo Estado Laico, que diz: “Igreja e Estado Assuntos Separados”. Veio à tona a questão do financiamento estatal da Igreja Católica e do pagamento dos salários dos bispos por parte do Estado, ancorados em leis editadas durante a ditadura militar argentina, por Rafael Videla. Nora Cortiñas, uma das mães da Praça de Maio, disse sem meias palavras que “durante a ditadura a Igreja não se importava com as duas vidas, davam choques elétricos na vagina de mulheres grávidas e a Igreja abençoava os voos da morte”.
Na linha discursiva dos que votaram pelo “não”, principalmente entre os senadores homens, há uma perda do que chamam de “paz social”. Ter mulheres nas ruas pedindo por seus direitos balança as estruturas, provocando receio. Sempre foi assim – um dos grandes “argumentos” contra o sufrágio feminino era que seria muito trabalhoso “ensinar às mulheres a importância do voto”, um eufemismo risível que deixa exposto em carne viva o medo da perda de controle. É que na ação coletiva as mulheres retiram o patriarcado da sua posição naturalizada e de perigosa invisibilidade. De repente, o poder masculino aparece como violência e força bruta. E certamente não é agradável tomar consciência da sua própria condição de opressor.
Octavio Salazar, professor de Direito Constitucional da Universidade de Córdoba e autor do livro El hombre que (no) deberíamos ser, fala que “nós, homens, temos medo do feminismo porque nos revela coisas de nós mesmos que não gostamos de conhecer”. Talvez o grande medo que inspira a reação machista é que as mulheres empoderadas venham a fazer com os homens o que eles sempre fizeram sob a benção do patriarcado.
Foto: Vivian Ribeiro, do Coletivo Passarinho
Não se pode parar o vento
A onda verde se espalhou pela América Latina. A pauta está instalada com uma força nunca antes vista e a mensagem é clara: a campanha continua. Os lenços verdes chegaram a diversos países e vêm se espalhando pelo Brasil, onde o tema já está instalado no Supremo Tribunal Federal, apesar da imprevisibilidade do resultado do julgamento. As últimas audiências dos dias 3 e 6 de agosto, presididas pela ministra Rosa Weber, já são vistas como um grande passo.
Dois dias depois da rejeição da lei, a campanha oficial publicou uma mensagem exaltando a conquista inédita e histórica de colocar em pauta a problemática das mulheres e de se fazer ouvir as vozes feministas. Enfatizou a importância de não votar nos políticos que se abstiveram ou foram contrários ao direito das mulheres a decidir. A campanha convocou aos chamados “pañuelazos” – manifestações em que todas levantam seus lenços verdes em um símbolo coletivo de demanda por uma lei do aborto seguro e gratuito –, na América Latina e no mundo; e também a que todas estejam presentes no Encontro Nacional de Mulheres, a acontecer este ano na província de Chubut, no sul do país.
Ao reforçar a necessidade de um Estado laico, o comunicado joga luz sobre um assunto profundamente necessário, reforçando a importância dessa campanha, representada pelos lenços laranjas. Talvez mais ainda no Brasil, onde religião e política andam cada vez mais juntas. O grito vem das ruas, e como bem se anda dizendo entre os grupos feministas nesses últimos dias: nunca nada nos foi dado de mão beijada.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Argentina: as garotas que desafiam o patriarcado

no Outras Palavras


São multidão — muitas, com menos de vinte anos. Tomam as ruas. Exigem, batucam e dançam. Querem o direito ao aborto e o fim de um mundo governado por homens ricos e tristes
Reportagem do Coletivo Lavaca | Imagens: M.A.F.I.A |Tradução: Inês Castilho
Olhar o que se passa através dos olhos da geração que está abarrotando as ruas argentinas hoje é ao mesmo tempo uma tarefa simples e complexa. As jovens falam até pelas faces pintadas com purpurina, mas o que dizem é tão interessante que faz falta algo mais que aguçe a escuta para compreender o significado de cada palavra. Chiara, Laura e Angelica chegaram com uma dezena de companheiras do ensino secundário. Uma pintou a outra: os olhos, os lábios, as unhas ficaram verdes. Cada uma tem um lenço amarrado no pescoço, nos cabelos ou no braço. É o uniforme desta geração, advertiu Ofelia Fernández no recinto do Congresso.
Tomaram o trem, caminharam desde o bairro de Constitución e ao chegar à 9 de Julho se apropriaram, como todas, da avenida.
Vão cantando, vão de mãos dadas e vão contentes.
A chuva não as molha: as rega. Florescem a cada passo.
O frio não as congela. As faz arder.
Gritam cada vez mais forte e em cada batucada – que há por todos os lados – sacodem as cadeiras para dançar ao ritmo de um dia que elas estão tornando histórico, porque lhe impregnam com seu ritmo. Qual é ele? “Tem que se mexer”, respondem. “São dias importantes e você não pode ficar sentada. Está em jogo o nosso futuro e não podemos deixá-lo nas mãos de ninguém.” Quem responde é Chiara, séria.
De onde vêm? “Vivemos num subúrbio de Lomas, que está pior do que nunca porque as pessoas estão amargas, mal.” O que entristece o bairro? “As pessoas não têm nenhuma esperança.” Vocês têm? “Não sei se temos esperança, mas ao menos temos claro que as coisas precisam mudar e não vamos esperar que sejam mudadas pelos mesmos que fizeram todo esse mal.” A que responde é Laura. A quem se refere? Aos políticos, aos mais velhos, a sua família? “A todos. Minha família me apoia, mas eu digo para minha mãe que ela tem de fazer alguma coisa mais por si, que venha às manifestações, que são pelo bem de todas. Ela foi afastada do trabalho, está fazendo de tudo um pouco, e isso a cansa. Digo que se vier às marchas vai renovar as baterias, mas a entendo: não tem um grupo que a apoie e isso torna tudo mais difícil.
Nós estamos juntas o tempo inteiro, falando de tudo, apoiando-nos em tudo, e isso deixa a vida mais fácil. Nos dá força. Nos dá energia. Se uma cai, as outras a levantam.” O que faz com que caiam? “Eu fico pra baixo quando tornam tão difícil coisas que estão tão claras. Veja o que acontece hoje. Tem de ser muito careta para não se dar conta de que, se tanta gente vem aqui, com este clima, é porque o aborto legal não é uma moda, mas uma necessidade. Por que, então, não votam a lei? O que imaginam que vai acontecer se não a aprovarem? Querem que festejemos que se caguem de rir de nós? Às vezes penso que o fazem para provocar um desastre. Escuto os que falam das “duas vidas” e não sei se rio ou se choro. São cínicos: acreditam que não vamos nos dar conta de que a única coisa que lhes importa é que calemos a boca. E não se dão conta de que isso é impossível: nós não vamos mais nos calar.” Quem fala é Angélica.
As três têm 16 anos.
Quantas como elas há, hoje?
Dizer milhares é pouco.
Algumas sustentam cartolinas com frases que impactam.
“Existo porque resisto”
“A pornografia é a escola da violação”.
“Mulher, não gosto quando se cala.”
“Basta é basta.”
“Nos queremos vivas, livres e sem medo.”
Outras se abraçam para ocupar a amplidão da avenida Maio ao ritmo de uma coreografia de cancan.
Muitas procuram um lugar para entrar na coluna que ocupa mais de 15 quadras e, enquanto vêm passar bandeiras, organizações e palavras de ordem, escolhem seu lugar. Não por acaso, apesar de não estar à frente, a coluna da Campanha Nacional pelo Aborto legal, seguro e gratuito é a mais bem nutrida: mais de duas quadras, maioria de jovens, contidas por um tecido verde infinito que funciona como abrigo, mas também como convite: verde é sua cor.
Cantam que o patriarcado vai cair, que tirem seus comentários de nossos ovários, que não são nem suas nem asus [ni tuyas ni yuta] e que Não é Não. Essas demandas são as que unem as ativistas “soltas” e as manifestações artísticas que, ao longo da Avenida de Maio, denunciam a violência com a convicção de que elas próprias vão freá-la.
As ações comemorativas e agitadoras do Ni Una Menos começaram sábado em vários pontos do país. E mulheres de todas as coordenadas levantaram firmes seus lenços verdes. A mensagem segue sendo Basta, mas neste caso o pedido se dirige a um Congresso que deve representá-las e todavia não se pronuncia a favor. Essa catarata de concentrações que uniu províncias terminou hoje em frente ao Palácio Legislativo com uma maré que lhes lançou um só grito, que teve uma só cor: verde furioso.
Pedimos, assim, algo muito concreto: que o aborto seja legalizado.
As meninas cantam agora o que deve ser cantado: “Agora que estamos juntas/ agora que sim, nos veem.”
Vê-las é compreender.
Não são especiais, não são únicas, não são diferentes.
São.
E são muitas.
E estão dançando.
Vai cair.

terça-feira, 12 de junho de 2018

Eleições: a curiosa proposta dos mandatos coletivos

no Outras Palavras

Áurea Carolina (esq.) e Cida Falabella. Vereadoras em Belo Horizonte, fizeram de seus mandados centros de articulação política não convencional. Experiência será replicada nas disputas pelo Legislativo, em todo o país

É possível reagir a uma democracia esvaziada ocupando suas estruturas? Exame de duas experiências — com avanços, contradições e perspectivas
Por Caio de Freitas Paes
Em meio à polarização instaurada desde a eleição de Dilma Rousseff em 2014, partidos tentam superar a descrença popular nos políticos. Números de pesquisa realizada em 18 países da América Latinamostram que os brasileiros são quem menos confiam na democracia; além disso, a pesquisa mostra ínfimos 8% no índice de aprovação do governo e 11% de aprovação do Congresso. Tal desempenho coloca o Brasil no penúltimo lugar no ranking geral da região. Porém, há novas propostas que querem resgatar a confiança e revolucionar a política partidária nas eleições de 2018: os mandatos coletivos.
As iniciativas formaram-se e foram eleitas em municípios brasileiros no pleito municipal de 2016. Munidas de dispositivos sociais, técnicas arrojadas de comunicação e de transparência dos mandatos, elas têm um objetivo ousado: o de mudar a política de dentro para fora.
“A ideia de mandato coletivo é interessante porque agrega duas características típicas da juventude atual: a aversão a lideranças e a rede distribuída”, afirma o analista político e professor de Direito da ULBRA (RS), Moysés Pinto Neto.
Segundo Moysés, o formato coletivo favorece a integração dos mandatos com setores da população — organizados ou não –, além de dividir a responsabilidade da gestão pública e democratizar a formulação de propostas. “A possibilidade de arriscar experimentos envolve aproveitar a indignação cidadã e, no mesmo lance, ocupar esse espaço, evitando um vazio que leve à vitória da ultra direita”, explica.
Hackeamento partidário no coração do Cerrado
Atualmente, há duas experiências coletivas em câmaras municipais: uma na pequena Alto Paraíso de Goiás (GO), na área da Chapada dos Veadeiros, e outra na capital mineira, Belo Horizonte. Pelo porte das cidades, há diferenças na abordagem e no modo de trabalho que deixam lições para quem acredita em novas alternativas.
TEXTO-MEIO
“Tivemos uma gestão com muitas proposições no primeiro ano. Pra quem é familiar com cidades pequenas, sabe-se que a gestão pública pode ser muito morosa. No total, foram 14 projetos de lei colocados na tramitação da Câmara – e conseguimos a aprovação da maioria”, explica Ivan “Anjo” Diniz, um dos membros do Mandato Coletivo (MC) de Alto Paraíso.
Para assegurar transparência à iniciativa, o MC teve seu regimento assinado e registrado em cartório à época da eleição. Todo o recurso recebido pelo mandato é aplicado de acordo com decisão coletiva dos membros; em 2017, parte da verba já foi investida em materiais para estruturas públicas de saúde e realização de eventos culturais abertos à comunidade, por exemplo.
O mandato é formado por Ivan, turismólogo e jornalista, junto a outros 4 membros de diversas áreas, como direito, engenharia, tecnologia e biodiversidade. “Tem gente mais à esquerda e mais à direita, mas há um compromisso vinculado com a transparência e com o bem-estar da comunidade. Isso consegue dar uma força legal pra gente, com diretrizes éticas que a gente mantém até agora”, detalha Ivan.
João Yuji, advogado especialista em direito legislativo municipal, é o único membro ligado a um partido — o antigo PTN, atual Podemos. A escolha por uma sigla de pouca expressividade em âmbito nacional foi motivada pela liberdade de atuação. “Escolhemos o partido que nos viabilizou por um motivo claro: a possibilidade de ter autonomia na executiva municipal, abrindo brechas para liberdade de decisão quanto aos rumos que seguiríamos”, diz Ivan.
Segundo ele, houve estudo por parte do coletivo para identificar partidos que oferecessem contrapartidas positivas, sem necessariamente haver um compromisso ideológico ou de diretrizes para o mandato. “A ideia é claramente ocupar a estrutura. Isso não nos isenta de ter com o partido quanto ao nosso trabalho, mas nunca nos impediu de tomarmos as decisões que desejamos e acreditamos. Desde o início, nosso objetivo é lidar com um status suprapartidário – e o João se filiou apenas porque a legislação exige”, explica.
Alinhamento a partidos progressistas dá o tom em grandes centros
Se a bandeira partidária pode ser uma forma de “hackear” o sistema político, o caminho nos grandes centros parece ser outro. A Gabinetona – mandato coletivo formado pelas candidaturas eleitas de Áurea Carolina e Cida Falabella, ambas do PSOL – traz consigo as causas que um típico partido progressista encampa: questões de gênero, raça e classe com viés cultural e popular.
“No momento que entramos no partido, decidimos participar e lutar pelo e dentro do partido. Somos independentes e mantemos essa posição inclusive como modo de honrar nossa origem e nossos objetivos”, relata Áurea Carolina.
A escolha não vem sem ônus, segundo a vereadora, pois no primeiro ano de mandato já se depararam com disputas internas de correntes, jogos de força e interesses com os quais tiveram de dialogar. “É um lugar de mediações, afinal, e buscamos renovar essa estrutura como podemos, dentro das nossas possibilidades. Hoje, com a exigência programática que temos, não vemos outros partidos que poderiam nos abrigar”, detalha.
A Gabinetona possui uma estrutura complexa para manter-se coletiva: conta com iniciativas populares para integrar a sociedade no planejamento das ações do mandato, e há divisão interna da equipe em núcleos de trabalho – como de comunicação, jurídico, articulação política, de gestão, de acolhimento e atendimento à população. Esses núcleos interagem entre si e possuem trabalhos partilhados”
O mandato tem planos de conquistar novos postos. As “Muitas” – movimento civil de onde Áurea e Cida vieram e pelo qual fizeram campanha em 2016 – lançaram 12 candidaturas para as eleições de 2018: seis para a Assembleia de Minas Gerais, e seis para a Câmara dos Deputados. As candidatas também são filiadas ao PSOL e vêm de Belo Horizonte, da Região Metropolitana e também do interior do estado. Uma delas é a própria Áurea, que anunciou pré-candidatura a deputada federal. “Como em 2016, a campanha será realizada por uma rede de apoiadoras, de forma colaborativa e praticamente voluntária”, detalha.
O terreno à frente segue arenoso para experimentos coletivos
Mesmo que em territórios muito diferentes, as duas iniciativas partilham algumas práticas e valores. A necessidade de prestação de contas e transparência quanto às atividades dos mandatos é um dos pontos em comum. Para Ivan Diniz, os informes mensais do MC para o público estreitam laços e os diferenciam do restante dos vereadores; já para Áurea Carolina, manter uma comunicação dinâmica e transparente com a população ajuda na formulação de projetos de lei e na defesa dos interesses dos eleitores.
Mesmo com trabalhos arrojados, os partidos em geral ainda têm negligenciado o formato coletivo de candidatura. “Em geral, [os partidos] têm respondido de forma muito negativa, geralmente subordinando decisões à lógica burocrática tradicional e abrindo pouco espaço para que novos projetos possam conviver ao lado do programa partidário”, explica Moysés. O analista político também lembra que há o risco de o establishment judiciário dificultar a inserção de coletivos na política. O cenário a ser alcançado envolveria uma abertura sem “adestrar ou colonizar” os mandatos coletivos à atual lógica partidária.
PSOL e Rede, alinhados à esquerda e centro, abriram suas portas para candidaturas avulsas e cidadãs, englobando a possibilidade de mandatos coletivos. Já pela direita, quem capitaneia uma abertura é o Podemos. Está em trâmite no Congresso uma proposta de emenda constitucional para garantir a regularização desse tipo de mandato para cargos parlamentares. Submetida pela deputada federal Renata Abreu (SP), presidente nacional do partido, a proposta cita especificamente a iniciativa goiana como modelo de inovação.
Mesmo com obstáculos e incertezas, ambos mandatos garantem que têm participado de eventos e consultas por grupos interessados em reproduzir esse tipo de iniciativa em outros pontos do país. Sinal que o Brasil verá novos modos de fazer política ainda em breve.

Caio de Freitas Paes

Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e jornalista formado pela Unesp/Bauru. Tem experiência em estudos sobre narrativas, direitos humanos, histórias em quadrinhos e narrativas de guerra. Foi coordenador nacional de redes sociais da Mostra Cinema e Direitos Humanos No Hemisfério Sul (2013–2014).

A sociedade dos empregos de merda

no Outras Palavras


Como o capitalismo contemporâneo cria sem cessar ocupações inúteis, enquanto remunera muito mal as mais necessárias. Quais as alternativas? Garantia de trabalho? Ou Renda Cidadã Universal?
David Graeber, entrevistado por Eric Allen Been, na ViceTradução: Antonio Martins
Em 1930, o economista britânico John Maynard Keynes previu que, no final do século 20, países como os Estados Unidos teriam – ou deveriam ter – jornadas de trabalho de 15 horas semanais. Por que? Em grande medida, a tecnologia tiraria de nossas mãos tarefas sem sentido. Claro, isso nunca ocorreu. Ao contrário, muitíssimas pessoas, em todo o mundo, estão submetidas a longas jornadas como advogados corporativos, consultores, operadores de telemarketing e outras ocupações.
Mas enquanto muitos de nós julgamos nossos trabalhos muito aborrecidos, algumas ocupações não fazem sentido algum, segundo o escritor anarquista David Graeber. Em seu novo livro, “Bullshit Jobs: A Theory” [“Trabalhos de Merda: Uma Teoria”], o autor argumenta que os seres humanos consomem suas vidas, muito frequentemente, em atividades assalariadas inúteis. Graeber, que nasceu nos EUA e que já havia escrito, entre outras obras, Dívida: Os Primeiros 5000 anos e The Utopia of Rules [ainda sem edição em português] é professor de Antropologia na London School of Economics e uma das vozes mais conhecidas do movimento Occupy Wall Street (atribui-se a ele a frase “Somos os 99%”).
A “Vice” encontrou-se há pouco com Graeber para conversar sobre o que ele define como “emprego de merda”; por que os trabalhos socialmente úteis são tão mal pagos, e como uma renda básica assegurada a todos poderia resolver esta enorme injustiça.
Em primeiro lugar, o que são empregos de merda e por que existem?
David Graeber: Basicamente, um emprego de merda é aquele cujo executor pensa secretamente que sua atividade ou é completamente sem sentido, ou não produz nada. E também considera que se aquele emprego desaparecesse, o mundo poderia inclusive converter-se num lugar melhor. Mas o trabalhador não pode admitir isso – daí o elemento de merda. Trata-se, portanto, em essência, de fingir que se está fazendo algo útil, só que não.
Uma série de fatores contribuiu para criar esta situação estranha. Um deles é a filosofia geral de que o trabalho – não importa qual – é sempre bom. Se há algo em que a esquerda e a direita clássicas frequentemente estão de acordo é no fato de ambas concordarem que mais empregos são uma solução para qualquer problema. Não se fala em “bons” trabalhos, que de fato signifiquem algo. Um conservador, para o qual precisamos reduzir impostos para estimular os “criadores de emprego”, não falará sobre que tipo de ocupações quer criar. Mas há também partidários da esquerda insistindo em como precisamos de mais ocupações para apoiar as famílias que trabalham duro. Mas e as famílias que desejam trabalhar moderadamente? Quem as apoiará?

Até mesmo os empregos de merda garantem a renda necessária para que as pessoas sobrevivam. No fim das contas, por que isso é ruim?
Mas a questão é: se a sociedade tem os meios para sustentar todo mundo – o que é verdade – por que insistimos em que os trabalhadores passem sua vida cavando e em seguida tapando buracos? Não faz muito sentido, certo? Em termos sociais, parece sadismo.
Em termos individuais, isso pode ser visto como uma boa troca. Mas, na verdade, as pessoas obrigadas a tais trabalhos estão em situação miserável. Podem considerar: “estou ganhando algo por nada”. Bem, as pessoas que recebem salários bons, muitas vezes de nível executivo, certamente de classe média, quase sempre passam o dia em jogos de computador ou atualizando seus perfis de Facebook. Quem sabe, atendendo o telefone duas vezes por dia. Deveriam estar felizes por ser malandros, certo? Mas não são.
As pessoas contratadas para tais trabalhos relatam, regularmente, que estão deprimidas. E se lamentarão, e praticarão bullying umas contra as outras, e se apavorarão com prazos finais porque são de fato muito raras. Porém, se pudessem buscar uma razão social no trabalho, uma boa parte de suas atividades desapareceria. As doenças psicossomáticas de que as pessoas padecem simplesmente somem, no momento em que elas precisam realizar uma tarefa real, ou em que se demitem e partem para um trabalho de verdade.
Segundo seu livro, a sociedade pressiona os jovens estudantes para buscar alguma experiência de emprego, com o único objetivo de ensiná-los a fingir que trabalham
É interessante. Chamo de trabalho real aquele em que o trabalhador realiza alguma coisa. Se você é estudante, trata-se de escrever. Preparar projetos. Se você é um estudante de Ciências, faz atividades de laboratório. Presta exames. É condicionado pelos resultados e precisa organizar sua atividade da maneira mais efetiva possível para chegar a eles.
Porém, os empregos oferecidos aos estudantes frequentemente implicam não fazer nada. Muitas vezes, são funções administrativas onde eles simplesmente rearranjam papéis o dia inteiro. Na verdade, estão sendo ensinados a não se queixar e a compreender que, assim que terminarem os estudos, não serão mais julgados pelos resultados – mas, essencialmente, pela habilidade em cumprir ordens.
E os empregos tecnológicos ou na mídia. Seriam, também, de merda?
Certamente. Por meio do Twitter, pedi às pessoas que me relatassem seus empregos mais sem sentido. Obtive centenas de respostas. Havia um rapaz, por exemplo, que desenhava bâners publicitários para páginas web. Disse que havia dados demonstrando que ninguém nunca clica nestes anúncios. Mas era preciso manipular os dados para “demonstrar” aos clientes que havia visualizações – para que as pessoas julgassem o trabalho importante.
Na mídia, ha um exemplo interessante: revistas e jornais internos, para grandes corporações. Há bastante gente envolvida na produção deste material, que existe principalmente para que os executivos sintam-se bem a respeito de si próprios. Ninguém mais lê estas publicações.
A automação é vista, muitas vezes, como algo negativo. Você discorda deste ponto de vista, não?Certamente. Não o compreendo. Por que não deveríamos eliminar os trabalhos desagradáveis? Em 1900 ou 1950, quando se imaginava o futuro, pensava-se: “As pessoas estarão trabalhando 15 horas por semana. É ótimo, porque os robôs farão o trabalho por nós”. Hoje, este futuro chegou e dizemos: ”Oh, não. Os robôs estão chegando para roubar nossos trabalhos”. Em parte, é porque não podemos mais imaginar o que faríamos conosco mesmo se tivéssemos um tempo razoável de lazer.
Como antropólogo, sei perfeitamente que tempo abundante de lazer não irá levar a maioria das pessoas à depressão. As pessoas encontram o que fazer. Apenas não sabemos que tipo de atividade seria, porque não temos tempo de lazer suficiente para imaginar.
Pergunto: por que as pessoas agem como se a perspectiva de eliminar o trabalho desnecessário fosse um problema? Deveríamos pensar que um sistema eficiente é aquele em que se pode dizer: “Bem, temos menos necessidade de trabalho. Vamos redistribuir o trabalho necessário de maneira equitativa”. Por que isso é difícil? Se as pessoas simplesmente assumem que é algo completamente impossível, parece-me claro que não estamos em um sistema eficiente.
Um dos pontos mais interessantes do livro são suas observações sobre como os empregos socialmente valiosos são quase sempre menos bem pagos que os empregos de merda.
Foi uma das coisas que, pessoalmente, mais me chocou na fase da pesquisa. Comecei a tentar descobrir se algum economista havia observado o fenômeno e tentado explicá-lo. Houve antecedentes, na verdade. Alguns eram economistas de esquerda; outros, não. Alguns eram totalmente mainstream.
Mas todos chegaram à mesma conclusão. Segundo eles, há uma tendência: quanto mais benefícios sociais um emprego produz, menor tende a ser a remuneração – e também a dignidade, o respeito e os benefícios. É curioso. Há poucas exceções e não são tão excepcionais como se poderia pensar. Os médicos, é claro, são um caso notório: é evidente que são pagos com justiça e oferecem benefícios sociais.
Porém, há um argumento recorrente: “Não seria bom que pessoas interessadas apenas em dinheiro ensinassem as crianças. Não se deve pagar demais aos professores. Se o fizéssemos, teríamos gente gananciosa na profissão, em vez de professores que se sacrificam”. Há também a ideia de que se um trabalhador sabe que sua atividade produz benefícios, isso pode ser o bastante. “Como, você quer dinheiro, além de tudo?” As pessoas tendem a discriminar qualquer um que tenha escolhido um emprego altruísta, sacrificante ou apenas útil.
Aparentemente, você é pouco favorável à ideia de garantia de trabalho, defendida entre outros por Bernie Sanders [candidato de esquerda à presidência dos EUA], por preferir a garantia de renda cidadã.
Sim. Sou alguém que não quer criar mais burocracia e mais empregos de merda. Há um debate sobre garantia de trabalho – que Sanders, de fato, propõe, nos EUA. Significa que os governos deveriam assegurar que todos tenham acesso ao menos a algum tipo de trabalho. Mas a ideia por trás da renda universal da cidadania é outra: simplesmente assegurar às pessoas meios suficientes para viver com dignidade. Além desse patamar, cada um pode definir quanto mais deseja.
Acredito que a garantia de trabalho certamente criaria mais empregos de merda. Historicamente, é o que sempre acontece. E por que deveríamos querer que os governos decidissem o que podemos fazer? Liberdade implica em nossa capacidade de decidir por nós mesmos o que quremos e como queremos contribuir para a sociedade. Mas vivemos como se tivéssemos nos condicionado a pensar que, embora vejamos na liberdade o valor mais alto, na verdade não a desejamos. A renda básica da cidadania ajudaria a garantir exatamente isso. Não seria ótimo dizer: “Você não tem mais que se preocupar com a sobrevivência. Vá e decida o que quer fazer consigo mesmo”?

David Graeber

Anarquista, antropólogo e professor no Colégio Goldsmith da Universidade de Londres . Anteriormente foi professor associado na Universidade de Yale. Graeber participa ativamente em movimentos sociais e políticos, protestanto contra o Fórum Econômico Mundial de 2002 e o movimento Occupy Wall Street. Ele é membro do Industrial Workers of the World e faz parte do comite da Organização Internacional para uma Sociedade Participativa (em inglês: International Organization for a Participatory Society)

terça-feira, 5 de junho de 2018

Por que Pedro Parente já vai tarde

no Outras Palavras


Entrega do Pré-Sal às petroleiras internacionais. Desativação das refinarias, para importar gasolina e diesel. Política de preços que jogou país no caos. Radiografia de um projeto fracassado
Por Paulo Kliass
Um dos maiores problemas do casamento contraído entre uma tecnocracia governamental conservadora e determinados pensadores da ortodoxia neoliberal são os estragos sociais e políticos que eles costumam causar aos povos e nações pelo mundo afora. Os personagens isolam-sse da realidade concreta, se esquecem da dinâmica social e resolvem “brincar de país”, como se estivessem se divertindo com os amigos à frente de um jogo de tabuleiro. Mas todos sabemos que as consequências tendem a ser graves e desastrosas.
A profunda crise que o Brasil está atravessando ao longo dos últimos dias tem exatamente essa característica. Com a consolidação do “golpeachment” de Dilma pelo Congresso Nacional ocorrido dois anos atrás, as forças vinculadas ao financismo internacional e às elites locais sentiram que estava aberta a oportunidade de iniciar uma temporada de caça ao Estado. Como se tratava de um governo ilegítimo, que não havia sido eleito para a tarefa do desmonte, a estratégia passava pela necessidade de se ancorar no endeusamento dos tecnocratas que colocariam — agora, sim! – a ordem na casa.
O “timing” da política seria tranquilamente resolvido pela inequívoca competência da duplinha dinâmica dos banqueiros Meirelles & Goldfajn na condução da política econômica. O austericídio iniciado por Joaquim Levy em 2015, ainda a pedido de Dilma Roussef, seria complementado rapidamente. Com o suposto sucesso de ajuste macroeconômico, a economia voltaria crescer e Temer poderia comandar o processo sucessório sem maiores dificuldades, inclusive podendo lançar a própria candidatura para uma reeleiçãozinha básica. Só que não! Faltou combinar com os russos, como diria o saudoso Mané Garrincha.
Parente: do apagão da eletricidade ao apagão dos combustíveis
No contexto da aliança com o tucanato para consolidar o mandato usurpado de forma ilegítima, Temer indicou Pedro Parente para presidir a maior empresa brasileira, a Petrobrás. Seria cômico, se não fosse trágico, que o comando da maior empresa estatal das Américas fosse entregue a quem ficou conhecido por patrocinar as trapalhadas do apagão da energia elétrica no governo FHC. Os resultados não tardariam muito a surgir, dessa vez no horizonte do setor de óleo e gás.
TEXTO-MEIO
O escolhido havia colecionado uma vasta experiência no interior dos grandes conglomerados industriais e financeiros privados, depois que o PSDB ficou alijado do governo federal em 2002. Assim, ele veio com a encomenda de atender aos interesses do financismo em primeiro lugar. E recuperou o fio da meada da famosa abertura do capital da Petrobrás na Bolsa de Valores de Nova Iorque em 2000. Em cerimônia que contou com a presença midiática até de Pelé, naquele momento a estatal brasileira converteu-se na primeira e única empresa estatal petrolífera do mundo a ser cotada naquele mercado tão conhecido por seu alto grau de especulação. Uma aventura irresponsável, com consequências para o futuro da mesma.
Dentre os diversos aspectos da política de desmonte da Petrobrás implementada por Parente, destacam-se a privatização de setores lucrativos do conglomerado, a entrega da exploração das reservas do Pré Sal para as multinacionais petrolíferas e a liquidação da política de conteúdo local. Assim, aquele que aceitou o convite para presidir o Conselho do gigante grupo da alimentação BRF – simultaneamente ao cargo máximo na Petrobrás – passou a orientar a estratégia de nossa estatal segundo a lógica de uma empresa privada.
Aprendiz de liberal ou quinta-coluna?
Atuando como um verdadeiro quinta-colunista no interior do Estado brasileiro, Parente contribuiu de forma decisiva para aprofundar a liquidação da empresa criada por Getúlio Vargas ainda em 1954. A orientação do comando da empresa foi no sentido de reproduzir no interior da mesma o modelo do neocolonialismo que o Brasil assume em sua política de relações comerciais. O esquema é semelhante ao praticado pela Vale, que optou por exportar minério de ferro e importar produtos industrializados de maior valor agregado produzidos com essa matéria prima, a exemplo de trilhos e demais derivados de aço.
A solução genial e eficiente do aprendiz de liberal foi obrigar a Petrobrás a aumentar a sua exportação de petróleo “in natura” e aumentar a importação de produtos de maior valor agregado – os derivados de petróleo, como gasolina e diesel. Para tanto, promoveu uma impressionante redução no uso da capacidade das refinarias do grupo, que estão trabalhando a menos de 70% de seu potencial de transformação do óleo bruto. Uma loucura que só se explica pela submissão explícita aos interesses das grandes petroleiras, interessadas em vender produtos ao nosso mercado interno.
Não contente com tais descalabros, Parente resolveu dar tratos à bola e decidiu que não haveria mais nenhum tipo de regulação nos mecanismos de estabelecimento dos preços dos produtos derivados de petróleo. Que maravilha! Agora tudo funcionaria na base do equilíbrio das forças de oferta e demanda, como mandam os manuais de macroeconomia de orientação neoclássica. E mais: a Petrobrás teria os preços de seus produtos definidos diariamente, a partir das oscilações verificadas no mercado internacional de “commodities”. Uma loucura!
Com isso, o Brasil passa a ficar completa e imediatamente dependente dos humores das reuniões da OPEP, quando governantes de países como Arábia Saudita, Irã e Iraque, por exemplo, podem decidir por aumentos nos preços no mercado futuro de seu principal produto exportador. Ou ainda dos destemperos de figuras como o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cujas decisões afetam de forma imediata os mecanismos que atuam sobre a formação da nossa taxa de câmbio.
Petrobrás é estatal e diesel não é batatinha
Os resultados ao longo dos últimos dois anos forma trágicos. Esse modelo super moderno da gestão tucana promovia enorme instabilidade nos diversos setores que atuam na cadeia do petróleo e também para o conjunto da nossa economia. Afinal, nosso modelo de sociedade é bastante dependente dessa fonte de energia. Além da falta de previsibilidade, o sistema terminou por provocar elevações expressivas nos preços dos derivados, que não guardavam nenhuma relação com a estrutura de custos dos mesmos. Nos 30 dias que antecederam o início da paralisação dos caminhoneiros, por exemplo, o preço da gasolina havia subido 20%, ao passo que o governo se vangloriava de uma inflação inferior a 3%.
Quem se der ao trabalho de consultar a tabela de preços praticada pela Petrobrás perceberá que o valor mais recente relativo aos 13 kg de gás de cozinha é R$ 22. No entanto, mesmo antes da crise atual, os preços praticados pelos revendedores nos postos de distribuição raramente eram inferiores a R$ 70. Ora, tal diferença não pode ser explicada apenas por tributos e custos de transporte. Essa verdadeira espoliação ao consumidor só pode ocorrer por complacência da própria Petrobrás e por falta total de fiscalização e controle por parte da Agência Nacional do Petróleo (ANP).
O aprofundamento mais recente da crise de abastecimento e as sucessivas tentativas de acordo com os caminhoneiros só trouxeram luz ao enorme equívoco em que se converteu a política de preços concebida por Pedro Parente. Os membros do núcleo do Palácio do Planalto evitam assumir publicamente que essa opção do “experimento liberal” praticado pelo tucano revelou-se um inequívoco desastre. Na prática, porém, todos perceberam que essa política foi rifada e percebeu-se que não se pode tratar de forma tão leviana e irresponsável o preço de um bem tão estratégico como o petróleo. Ao confundir a dinâmica de formação de preços do mercado da batatinha, Parente sabia muito bem que o ”mercado” dos chamados bens públicos é muito mais complexo.
Modelito de Parente foi abandonado
Essa é a razão pela qual a maior parte dos países do mundo promove processos de regulação desse tipo de mercadoria ou serviço. É o caso da energia, das telecomunicações, dos transportes, do saneamento, entre tantos outros. Afinal, não se pode falar de “livre funcionamento das forças de oferta e demanda” em situações onde há poucas empresas oferecendo os bens e cujo preço impacta de forma imediata e direta uma gama ampla de setores da economia.
Parente perdeu a disputa. Seu modelito destrambelhado de estagiário de liberal deu com os burros n’água. A Petrobrás não pode ser gerida como apenas mais uma grande empresa privada do ramo petroleiro. E a sociedade brasileira percebeu que o conto da carochinha do livre mercado não se aplica a um bem como o petróleo e seus derivados. Agora resta saber como Temer vai encaminhar algum arremedo de solução para a crise. Com a certeza caiu o véu do encantamento que alguns setores ainda mantinham com esse modelo liberalóide. Um verdadeiro engodo que se pretendeu impor goela abaixo de um setor que é diferenciado em sua própria estrutura de funcionamento.
O problema é que permanece a obstinação do governo em manter sua inflexibilidade em outra área da política econômica, ou seja, o equilíbrio fiscal a qualquer custo. Assim, acaba prevalecendo a falsa ideia de que o imbroglio todo dos preços do diesel, gasolina e gás de cozinha reside na carga tributária elevada. O risco de tal interpretação pode ser identificado na pauta de alguns movimentos, que reivindicam a retirada da incidência de tributos na cadeia de produção e comercialização desses bens. Ao desonerar a cadeia do petróleo como medida desesperada para solucionar a crise, o governo acaba reduzindo as receitas em momento de crise fiscal, com o agravante de perda de tributos para o financiamento das contas da seguridade social.
A Petrobrás tem condições de praticar preços internos mais baixos que os atuais. Sua estrutura de custos permite oferecer à população os derivados em condições diversas daquelas oferecidas pelo movimento de lata dos preços do petróleo no mercado internacional. Basta retomar a capacidade de produção em suas refinarias e reduzir as importações desnecessárias. O fato concreto é que a realidade gritou mais alto e o modelo de Parente foi derrotado. O governo tem sinalizado a cada instante que acabou a fase de brincadeira com coisa séria. Agora, tudo indica que ele deverá pedir para sair ou será gentilmente convidado a se retirar.

Paulo Kliass

Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal