Áurea Carolina (esq.) e Cida Falabella. Vereadoras em Belo Horizonte, fizeram de seus mandados centros de articulação política não convencional. Experiência será replicada nas disputas pelo Legislativo, em todo o país
É possível reagir a uma democracia esvaziada ocupando suas estruturas? Exame de duas experiências — com avanços, contradições e perspectivas
Por Caio de Freitas Paes
Em meio à polarização instaurada desde a eleição de Dilma Rousseff em 2014, partidos tentam superar a descrença popular nos políticos. Números de pesquisa realizada em 18 países da América Latinamostram que os brasileiros são quem menos confiam na democracia; além disso, a pesquisa mostra ínfimos 8% no índice de aprovação do governo e 11% de aprovação do Congresso. Tal desempenho coloca o Brasil no penúltimo lugar no ranking geral da região. Porém, há novas propostas que querem resgatar a confiança e revolucionar a política partidária nas eleições de 2018: os mandatos coletivos.
As iniciativas formaram-se e foram eleitas em municípios brasileiros no pleito municipal de 2016. Munidas de dispositivos sociais, técnicas arrojadas de comunicação e de transparência dos mandatos, elas têm um objetivo ousado: o de mudar a política de dentro para fora.
“A ideia de mandato coletivo é interessante porque agrega duas características típicas da juventude atual: a aversão a lideranças e a rede distribuída”, afirma o analista político e professor de Direito da ULBRA (RS), Moysés Pinto Neto.
Segundo Moysés, o formato coletivo favorece a integração dos mandatos com setores da população — organizados ou não –, além de dividir a responsabilidade da gestão pública e democratizar a formulação de propostas. “A possibilidade de arriscar experimentos envolve aproveitar a indignação cidadã e, no mesmo lance, ocupar esse espaço, evitando um vazio que leve à vitória da ultra direita”, explica.
Hackeamento partidário no coração do Cerrado
Atualmente, há duas experiências coletivas em câmaras municipais: uma na pequena Alto Paraíso de Goiás (GO), na área da Chapada dos Veadeiros, e outra na capital mineira, Belo Horizonte. Pelo porte das cidades, há diferenças na abordagem e no modo de trabalho que deixam lições para quem acredita em novas alternativas.
“Tivemos uma gestão com muitas proposições no primeiro ano. Pra quem é familiar com cidades pequenas, sabe-se que a gestão pública pode ser muito morosa. No total, foram 14 projetos de lei colocados na tramitação da Câmara – e conseguimos a aprovação da maioria”, explica Ivan “Anjo” Diniz, um dos membros do Mandato Coletivo (MC) de Alto Paraíso.
Para assegurar transparência à iniciativa, o MC teve seu regimento assinado e registrado em cartório à época da eleição. Todo o recurso recebido pelo mandato é aplicado de acordo com decisão coletiva dos membros; em 2017, parte da verba já foi investida em materiais para estruturas públicas de saúde e realização de eventos culturais abertos à comunidade, por exemplo.
O mandato é formado por Ivan, turismólogo e jornalista, junto a outros 4 membros de diversas áreas, como direito, engenharia, tecnologia e biodiversidade. “Tem gente mais à esquerda e mais à direita, mas há um compromisso vinculado com a transparência e com o bem-estar da comunidade. Isso consegue dar uma força legal pra gente, com diretrizes éticas que a gente mantém até agora”, detalha Ivan.
João Yuji, advogado especialista em direito legislativo municipal, é o único membro ligado a um partido — o antigo PTN, atual Podemos. A escolha por uma sigla de pouca expressividade em âmbito nacional foi motivada pela liberdade de atuação. “Escolhemos o partido que nos viabilizou por um motivo claro: a possibilidade de ter autonomia na executiva municipal, abrindo brechas para liberdade de decisão quanto aos rumos que seguiríamos”, diz Ivan.
Segundo ele, houve estudo por parte do coletivo para identificar partidos que oferecessem contrapartidas positivas, sem necessariamente haver um compromisso ideológico ou de diretrizes para o mandato. “A ideia é claramente ocupar a estrutura. Isso não nos isenta de ter com o partido quanto ao nosso trabalho, mas nunca nos impediu de tomarmos as decisões que desejamos e acreditamos. Desde o início, nosso objetivo é lidar com um status suprapartidário – e o João se filiou apenas porque a legislação exige”, explica.
Alinhamento a partidos progressistas dá o tom em grandes centros
Se a bandeira partidária pode ser uma forma de “hackear” o sistema político, o caminho nos grandes centros parece ser outro. A Gabinetona – mandato coletivo formado pelas candidaturas eleitas de Áurea Carolina e Cida Falabella, ambas do PSOL – traz consigo as causas que um típico partido progressista encampa: questões de gênero, raça e classe com viés cultural e popular.
“No momento que entramos no partido, decidimos participar e lutar pelo e dentro do partido. Somos independentes e mantemos essa posição inclusive como modo de honrar nossa origem e nossos objetivos”, relata Áurea Carolina.
A escolha não vem sem ônus, segundo a vereadora, pois no primeiro ano de mandato já se depararam com disputas internas de correntes, jogos de força e interesses com os quais tiveram de dialogar. “É um lugar de mediações, afinal, e buscamos renovar essa estrutura como podemos, dentro das nossas possibilidades. Hoje, com a exigência programática que temos, não vemos outros partidos que poderiam nos abrigar”, detalha.
A Gabinetona possui uma estrutura complexa para manter-se coletiva: conta com iniciativas populares para integrar a sociedade no planejamento das ações do mandato, e há divisão interna da equipe em núcleos de trabalho – como de comunicação, jurídico, articulação política, de gestão, de acolhimento e atendimento à população. Esses núcleos interagem entre si e possuem trabalhos partilhados”
O mandato tem planos de conquistar novos postos. As “Muitas” – movimento civil de onde Áurea e Cida vieram e pelo qual fizeram campanha em 2016 – lançaram 12 candidaturas para as eleições de 2018: seis para a Assembleia de Minas Gerais, e seis para a Câmara dos Deputados. As candidatas também são filiadas ao PSOL e vêm de Belo Horizonte, da Região Metropolitana e também do interior do estado. Uma delas é a própria Áurea, que anunciou pré-candidatura a deputada federal. “Como em 2016, a campanha será realizada por uma rede de apoiadoras, de forma colaborativa e praticamente voluntária”, detalha.
O terreno à frente segue arenoso para experimentos coletivos
Mesmo que em territórios muito diferentes, as duas iniciativas partilham algumas práticas e valores. A necessidade de prestação de contas e transparência quanto às atividades dos mandatos é um dos pontos em comum. Para Ivan Diniz, os informes mensais do MC para o público estreitam laços e os diferenciam do restante dos vereadores; já para Áurea Carolina, manter uma comunicação dinâmica e transparente com a população ajuda na formulação de projetos de lei e na defesa dos interesses dos eleitores.
Mesmo com trabalhos arrojados, os partidos em geral ainda têm negligenciado o formato coletivo de candidatura. “Em geral, [os partidos] têm respondido de forma muito negativa, geralmente subordinando decisões à lógica burocrática tradicional e abrindo pouco espaço para que novos projetos possam conviver ao lado do programa partidário”, explica Moysés. O analista político também lembra que há o risco de o establishment judiciário dificultar a inserção de coletivos na política. O cenário a ser alcançado envolveria uma abertura sem “adestrar ou colonizar” os mandatos coletivos à atual lógica partidária.
PSOL e Rede, alinhados à esquerda e centro, abriram suas portas para candidaturas avulsas e cidadãs, englobando a possibilidade de mandatos coletivos. Já pela direita, quem capitaneia uma abertura é o Podemos. Está em trâmite no Congresso uma proposta de emenda constitucional para garantir a regularização desse tipo de mandato para cargos parlamentares. Submetida pela deputada federal Renata Abreu (SP), presidente nacional do partido, a proposta cita especificamente a iniciativa goiana como modelo de inovação.
Mesmo com obstáculos e incertezas, ambos mandatos garantem que têm participado de eventos e consultas por grupos interessados em reproduzir esse tipo de iniciativa em outros pontos do país. Sinal que o Brasil verá novos modos de fazer política ainda em breve.
Caio de Freitas Paes
Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e jornalista formado pela Unesp/Bauru. Tem experiência em estudos sobre narrativas, direitos humanos, histórias em quadrinhos e narrativas de guerra. Foi coordenador nacional de redes sociais da Mostra Cinema e Direitos Humanos No Hemisfério Sul (2013–2014).
Como o capitalismo contemporâneo cria sem cessar ocupações inúteis, enquanto remunera muito mal as mais necessárias. Quais as alternativas? Garantia de trabalho? Ou Renda Cidadã Universal?
David Graeber, entrevistado por Eric Allen Been, na Vice| Tradução: Antonio Martins Em 1930, o economista britânico John Maynard Keynes previu que, no final do século 20, países como os Estados Unidos teriam – ou deveriam ter – jornadas de trabalho de 15 horas semanais. Por que? Em grande medida, a tecnologia tiraria de nossas mãos tarefas sem sentido. Claro, isso nunca ocorreu. Ao contrário, muitíssimas pessoas, em todo o mundo, estão submetidas a longas jornadas como advogados corporativos, consultores, operadores de telemarketing e outras ocupações.
Mas enquanto muitos de nós julgamos nossos trabalhos muito aborrecidos, algumas ocupações não fazem sentido algum, segundo o escritor anarquista David Graeber. Em seu novo livro, “Bullshit Jobs: A Theory” [“Trabalhos de Merda: Uma Teoria”], o autor argumenta que os seres humanos consomem suas vidas, muito frequentemente, em atividades assalariadas inúteis. Graeber, que nasceu nos EUA e que já havia escrito, entre outras obras, Dívida: Os Primeiros 5000 anos e The Utopia of Rules [ainda sem edição em português] é professor de Antropologia na London School of Economics e uma das vozes mais conhecidas do movimento Occupy Wall Street (atribui-se a ele a frase “Somos os 99%”).
A “Vice” encontrou-se há pouco com Graeber para conversar sobre o que ele define como “emprego de merda”; por que os trabalhos socialmente úteis são tão mal pagos, e como uma renda básica assegurada a todos poderia resolver esta enorme injustiça.
Em primeiro lugar, o que são empregos de merda e por que existem?
David Graeber: Basicamente, um emprego de merda é aquele cujo executor pensa secretamente que sua atividade ou é completamente sem sentido, ou não produz nada. E também considera que se aquele emprego desaparecesse, o mundo poderia inclusive converter-se num lugar melhor. Mas o trabalhador não pode admitir isso – daí o elemento de merda. Trata-se, portanto, em essência, de fingir que se está fazendo algo útil, só que não.
Uma série de fatores contribuiu para criar esta situação estranha. Um deles é a filosofia geral de que o trabalho – não importa qual – é sempre bom. Se há algo em que a esquerda e a direita clássicas frequentemente estão de acordo é no fato de ambas concordarem que mais empregos são uma solução para qualquer problema. Não se fala em “bons” trabalhos, que de fato signifiquem algo. Um conservador, para o qual precisamos reduzir impostos para estimular os “criadores de emprego”, não falará sobre que tipo de ocupações quer criar. Mas há também partidários da esquerda insistindo em como precisamos de mais ocupações para apoiar as famílias que trabalham duro. Mas e as famílias que desejam trabalhar moderadamente? Quem as apoiará?
Até mesmo os empregos de merda garantem a renda necessária para que as pessoas sobrevivam. No fim das contas, por que isso é ruim?
Mas a questão é: se a sociedade tem os meios para sustentar todo mundo – o que é verdade – por que insistimos em que os trabalhadores passem sua vida cavando e em seguida tapando buracos? Não faz muito sentido, certo? Em termos sociais, parece sadismo.
Em termos individuais, isso pode ser visto como uma boa troca. Mas, na verdade, as pessoas obrigadas a tais trabalhos estão em situação miserável. Podem considerar: “estou ganhando algo por nada”. Bem, as pessoas que recebem salários bons, muitas vezes de nível executivo, certamente de classe média, quase sempre passam o dia em jogos de computador ou atualizando seus perfis de Facebook. Quem sabe, atendendo o telefone duas vezes por dia. Deveriam estar felizes por ser malandros, certo? Mas não são.
As pessoas contratadas para tais trabalhos relatam, regularmente, que estão deprimidas. E se lamentarão, e praticarão bullying umas contra as outras, e se apavorarão com prazos finais porque são de fato muito raras. Porém, se pudessem buscar uma razão social no trabalho, uma boa parte de suas atividades desapareceria. As doenças psicossomáticas de que as pessoas padecem simplesmente somem, no momento em que elas precisam realizar uma tarefa real, ou em que se demitem e partem para um trabalho de verdade.
Segundo seu livro, a sociedade pressiona os jovens estudantes para buscar alguma experiência de emprego, com o único objetivo de ensiná-los a fingir que trabalham
É interessante. Chamo de trabalho real aquele em que o trabalhador realiza alguma coisa. Se você é estudante, trata-se de escrever. Preparar projetos. Se você é um estudante de Ciências, faz atividades de laboratório. Presta exames. É condicionado pelos resultados e precisa organizar sua atividade da maneira mais efetiva possível para chegar a eles.
Porém, os empregos oferecidos aos estudantes frequentemente implicam não fazer nada. Muitas vezes, são funções administrativas onde eles simplesmente rearranjam papéis o dia inteiro. Na verdade, estão sendo ensinados a não se queixar e a compreender que, assim que terminarem os estudos, não serão mais julgados pelos resultados – mas, essencialmente, pela habilidade em cumprir ordens.
E os empregos tecnológicos ou na mídia. Seriam, também, de merda?
Certamente. Por meio do Twitter, pedi às pessoas que me relatassem seus empregos mais sem sentido. Obtive centenas de respostas. Havia um rapaz, por exemplo, que desenhava bâners publicitários para páginas web. Disse que havia dados demonstrando que ninguém nunca clica nestes anúncios. Mas era preciso manipular os dados para “demonstrar” aos clientes que havia visualizações – para que as pessoas julgassem o trabalho importante.
Na mídia, ha um exemplo interessante: revistas e jornais internos, para grandes corporações. Há bastante gente envolvida na produção deste material, que existe principalmente para que os executivos sintam-se bem a respeito de si próprios. Ninguém mais lê estas publicações.
A automação é vista, muitas vezes, como algo negativo. Você discorda deste ponto de vista, não?Certamente. Não o compreendo. Por que não deveríamos eliminar os trabalhos desagradáveis? Em 1900 ou 1950, quando se imaginava o futuro, pensava-se: “As pessoas estarão trabalhando 15 horas por semana. É ótimo, porque os robôs farão o trabalho por nós”. Hoje, este futuro chegou e dizemos: ”Oh, não. Os robôs estão chegando para roubar nossos trabalhos”. Em parte, é porque não podemos mais imaginar o que faríamos conosco mesmo se tivéssemos um tempo razoável de lazer.
Como antropólogo, sei perfeitamente que tempo abundante de lazer não irá levar a maioria das pessoas à depressão. As pessoas encontram o que fazer. Apenas não sabemos que tipo de atividade seria, porque não temos tempo de lazer suficiente para imaginar.
Pergunto: por que as pessoas agem como se a perspectiva de eliminar o trabalho desnecessário fosse um problema? Deveríamos pensar que um sistema eficiente é aquele em que se pode dizer: “Bem, temos menos necessidade de trabalho. Vamos redistribuir o trabalho necessário de maneira equitativa”. Por que isso é difícil? Se as pessoas simplesmente assumem que é algo completamente impossível, parece-me claro que não estamos em um sistema eficiente.
Um dos pontos mais interessantes do livro são suas observações sobre como os empregos socialmente valiosos são quase sempre menos bem pagos que os empregos de merda.
Foi uma das coisas que, pessoalmente, mais me chocou na fase da pesquisa. Comecei a tentar descobrir se algum economista havia observado o fenômeno e tentado explicá-lo. Houve antecedentes, na verdade. Alguns eram economistas de esquerda; outros, não. Alguns eram totalmente mainstream.
Mas todos chegaram à mesma conclusão. Segundo eles, há uma tendência: quanto mais benefícios sociais um emprego produz, menor tende a ser a remuneração – e também a dignidade, o respeito e os benefícios. É curioso. Há poucas exceções e não são tão excepcionais como se poderia pensar. Os médicos, é claro, são um caso notório: é evidente que são pagos com justiça e oferecem benefícios sociais.
Porém, há um argumento recorrente: “Não seria bom que pessoas interessadas apenas em dinheiro ensinassem as crianças. Não se deve pagar demais aos professores. Se o fizéssemos, teríamos gente gananciosa na profissão, em vez de professores que se sacrificam”. Há também a ideia de que se um trabalhador sabe que sua atividade produz benefícios, isso pode ser o bastante. “Como, você quer dinheiro, além de tudo?” As pessoas tendem a discriminar qualquer um que tenha escolhido um emprego altruísta, sacrificante ou apenas útil.
Aparentemente, você é pouco favorável à ideia de garantia de trabalho, defendida entre outros por Bernie Sanders [candidato de esquerda à presidência dos EUA], por preferir a garantia de renda cidadã.
Sim. Sou alguém que não quer criar mais burocracia e mais empregos de merda. Há um debate sobre garantia de trabalho – que Sanders, de fato, propõe, nos EUA. Significa que os governos deveriam assegurar que todos tenham acesso ao menos a algum tipo de trabalho. Mas a ideia por trás da renda universal da cidadania é outra: simplesmente assegurar às pessoas meios suficientes para viver com dignidade. Além desse patamar, cada um pode definir quanto mais deseja.
Acredito que a garantia de trabalho certamente criaria mais empregos de merda. Historicamente, é o que sempre acontece. E por que deveríamos querer que os governos decidissem o que podemos fazer? Liberdade implica em nossa capacidade de decidir por nós mesmos o que quremos e como queremos contribuir para a sociedade. Mas vivemos como se tivéssemos nos condicionado a pensar que, embora vejamos na liberdade o valor mais alto, na verdade não a desejamos. A renda básica da cidadania ajudaria a garantir exatamente isso. Não seria ótimo dizer: “Você não tem mais que se preocupar com a sobrevivência. Vá e decida o que quer fazer consigo mesmo”?
David Graeber
Anarquista, antropólogo e professor no Colégio Goldsmith da Universidade de Londres . Anteriormente foi professor associado na Universidade de Yale. Graeber participa ativamente em movimentos sociais e políticos, protestanto contra o Fórum Econômico Mundial de 2002 e o movimento Occupy Wall Street. Ele é membro do Industrial Workers of the World e faz parte do comite da Organização Internacional para uma Sociedade Participativa (em inglês: International Organization for a Participatory Society)
Entrega do Pré-Sal às petroleiras internacionais. Desativação das refinarias, para importar gasolina e diesel. Política de preços que jogou país no caos. Radiografia de um projeto fracassado
Por Paulo Kliass
Um dos maiores problemas do casamento contraído entre uma tecnocracia governamental conservadora e determinados pensadores da ortodoxia neoliberal são os estragos sociais e políticos que eles costumam causar aos povos e nações pelo mundo afora. Os personagens isolam-sse da realidade concreta, se esquecem da dinâmica social e resolvem “brincar de país”, como se estivessem se divertindo com os amigos à frente de um jogo de tabuleiro. Mas todos sabemos que as consequências tendem a ser graves e desastrosas.
A profunda crise que o Brasil está atravessando ao longo dos últimos dias tem exatamente essa característica. Com a consolidação do “golpeachment” de Dilma pelo Congresso Nacional ocorrido dois anos atrás, as forças vinculadas ao financismo internacional e às elites locais sentiram que estava aberta a oportunidade de iniciar uma temporada de caça ao Estado. Como se tratava de um governo ilegítimo, que não havia sido eleito para a tarefa do desmonte, a estratégia passava pela necessidade de se ancorar no endeusamento dos tecnocratas que colocariam — agora, sim! – a ordem na casa.
O “timing” da política seria tranquilamente resolvido pela inequívoca competência da duplinha dinâmica dos banqueiros Meirelles & Goldfajn na condução da política econômica. O austericídio iniciado por Joaquim Levy em 2015, ainda a pedido de Dilma Roussef, seria complementado rapidamente. Com o suposto sucesso de ajuste macroeconômico, a economia voltaria crescer e Temer poderia comandar o processo sucessório sem maiores dificuldades, inclusive podendo lançar a própria candidatura para uma reeleiçãozinha básica. Só que não! Faltou combinar com os russos, como diria o saudoso Mané Garrincha.
Parente: do apagão da eletricidade ao apagão dos combustíveis
No contexto da aliança com o tucanato para consolidar o mandato usurpado de forma ilegítima, Temer indicou Pedro Parente para presidir a maior empresa brasileira, a Petrobrás. Seria cômico, se não fosse trágico, que o comando da maior empresa estatal das Américas fosse entregue a quem ficou conhecido por patrocinar as trapalhadas do apagão da energia elétrica no governo FHC. Os resultados não tardariam muito a surgir, dessa vez no horizonte do setor de óleo e gás.
O escolhido havia colecionado uma vasta experiência no interior dos grandes conglomerados industriais e financeiros privados, depois que o PSDB ficou alijado do governo federal em 2002. Assim, ele veio com a encomenda de atender aos interesses do financismo em primeiro lugar. E recuperou o fio da meada da famosa abertura do capital da Petrobrás na Bolsa de Valores de Nova Iorque em 2000. Em cerimônia que contou com a presença midiática até de Pelé, naquele momento a estatal brasileira converteu-se na primeira e única empresa estatal petrolífera do mundo a ser cotada naquele mercado tão conhecido por seu alto grau de especulação. Uma aventura irresponsável, com consequências para o futuro da mesma.
Dentre os diversos aspectos da política de desmonte da Petrobrás implementada por Parente, destacam-se a privatização de setores lucrativos do conglomerado, a entrega da exploração das reservas do Pré Sal para as multinacionais petrolíferas e a liquidação da política de conteúdo local. Assim, aquele que aceitou o convite para presidir o Conselho do gigante grupo da alimentação BRF – simultaneamente ao cargo máximo na Petrobrás – passou a orientar a estratégia de nossa estatal segundo a lógica de uma empresa privada.
Aprendiz de liberal ou quinta-coluna?
Atuando como um verdadeiro quinta-colunista no interior do Estado brasileiro, Parente contribuiu de forma decisiva para aprofundar a liquidação da empresa criada por Getúlio Vargas ainda em 1954. A orientação do comando da empresa foi no sentido de reproduzir no interior da mesma o modelo do neocolonialismo que o Brasil assume em sua política de relações comerciais. O esquema é semelhante ao praticado pela Vale, que optou por exportar minério de ferro e importar produtos industrializados de maior valor agregado produzidos com essa matéria prima, a exemplo de trilhos e demais derivados de aço.
A solução genial e eficiente do aprendiz de liberal foi obrigar a Petrobrás a aumentar a sua exportação de petróleo “in natura” e aumentar a importação de produtos de maior valor agregado – os derivados de petróleo, como gasolina e diesel. Para tanto, promoveu uma impressionante redução no uso da capacidade das refinarias do grupo, que estão trabalhando a menos de 70% de seu potencial de transformação do óleo bruto. Uma loucura que só se explica pela submissão explícita aos interesses das grandes petroleiras, interessadas em vender produtos ao nosso mercado interno.
Não contente com tais descalabros, Parente resolveu dar tratos à bola e decidiu que não haveria mais nenhum tipo de regulação nos mecanismos de estabelecimento dos preços dos produtos derivados de petróleo. Que maravilha! Agora tudo funcionaria na base do equilíbrio das forças de oferta e demanda, como mandam os manuais de macroeconomia de orientação neoclássica. E mais: a Petrobrás teria os preços de seus produtos definidos diariamente, a partir das oscilações verificadas no mercado internacional de “commodities”. Uma loucura!
Com isso, o Brasil passa a ficar completa e imediatamente dependente dos humores das reuniões da OPEP, quando governantes de países como Arábia Saudita, Irã e Iraque, por exemplo, podem decidir por aumentos nos preços no mercado futuro de seu principal produto exportador. Ou ainda dos destemperos de figuras como o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cujas decisões afetam de forma imediata os mecanismos que atuam sobre a formação da nossa taxa de câmbio.
Petrobrás é estatal e diesel não é batatinha
Os resultados ao longo dos últimos dois anos forma trágicos. Esse modelo super moderno da gestão tucana promovia enorme instabilidade nos diversos setores que atuam na cadeia do petróleo e também para o conjunto da nossa economia. Afinal, nosso modelo de sociedade é bastante dependente dessa fonte de energia. Além da falta de previsibilidade, o sistema terminou por provocar elevações expressivas nos preços dos derivados, que não guardavam nenhuma relação com a estrutura de custos dos mesmos. Nos 30 dias que antecederam o início da paralisação dos caminhoneiros, por exemplo, o preço da gasolina havia subido 20%, ao passo que o governo se vangloriava de uma inflação inferior a 3%.
Quem se der ao trabalho de consultar a tabela de preços praticada pela Petrobrás perceberá que o valor mais recente relativo aos 13 kg de gás de cozinha é R$ 22. No entanto, mesmo antes da crise atual, os preços praticados pelos revendedores nos postos de distribuição raramente eram inferiores a R$ 70. Ora, tal diferença não pode ser explicada apenas por tributos e custos de transporte. Essa verdadeira espoliação ao consumidor só pode ocorrer por complacência da própria Petrobrás e por falta total de fiscalização e controle por parte da Agência Nacional do Petróleo (ANP).
O aprofundamento mais recente da crise de abastecimento e as sucessivas tentativas de acordo com os caminhoneiros só trouxeram luz ao enorme equívoco em que se converteu a política de preços concebida por Pedro Parente. Os membros do núcleo do Palácio do Planalto evitam assumir publicamente que essa opção do “experimento liberal” praticado pelo tucano revelou-se um inequívoco desastre. Na prática, porém, todos perceberam que essa política foi rifada e percebeu-se que não se pode tratar de forma tão leviana e irresponsável o preço de um bem tão estratégico como o petróleo. Ao confundir a dinâmica de formação de preços do mercado da batatinha, Parente sabia muito bem que o ”mercado” dos chamados bens públicos é muito mais complexo.
Modelito de Parente foi abandonado
Essa é a razão pela qual a maior parte dos países do mundo promove processos de regulação desse tipo de mercadoria ou serviço. É o caso da energia, das telecomunicações, dos transportes, do saneamento, entre tantos outros. Afinal, não se pode falar de “livre funcionamento das forças de oferta e demanda” em situações onde há poucas empresas oferecendo os bens e cujo preço impacta de forma imediata e direta uma gama ampla de setores da economia.
Parente perdeu a disputa. Seu modelito destrambelhado de estagiário de liberal deu com os burros n’água. A Petrobrás não pode ser gerida como apenas mais uma grande empresa privada do ramo petroleiro. E a sociedade brasileira percebeu que o conto da carochinha do livre mercado não se aplica a um bem como o petróleo e seus derivados. Agora resta saber como Temer vai encaminhar algum arremedo de solução para a crise. Com a certeza caiu o véu do encantamento que alguns setores ainda mantinham com esse modelo liberalóide. Um verdadeiro engodo que se pretendeu impor goela abaixo de um setor que é diferenciado em sua própria estrutura de funcionamento.
O problema é que permanece a obstinação do governo em manter sua inflexibilidade em outra área da política econômica, ou seja, o equilíbrio fiscal a qualquer custo. Assim, acaba prevalecendo a falsa ideia de que o imbroglio todo dos preços do diesel, gasolina e gás de cozinha reside na carga tributária elevada. O risco de tal interpretação pode ser identificado na pauta de alguns movimentos, que reivindicam a retirada da incidência de tributos na cadeia de produção e comercialização desses bens. Ao desonerar a cadeia do petróleo como medida desesperada para solucionar a crise, o governo acaba reduzindo as receitas em momento de crise fiscal, com o agravante de perda de tributos para o financiamento das contas da seguridade social.
A Petrobrás tem condições de praticar preços internos mais baixos que os atuais. Sua estrutura de custos permite oferecer à população os derivados em condições diversas daquelas oferecidas pelo movimento de lata dos preços do petróleo no mercado internacional. Basta retomar a capacidade de produção em suas refinarias e reduzir as importações desnecessárias. O fato concreto é que a realidade gritou mais alto e o modelo de Parente foi derrotado. O governo tem sinalizado a cada instante que acabou a fase de brincadeira com coisa séria. Agora, tudo indica que ele deverá pedir para sair ou será gentilmente convidado a se retirar.
Paulo Kliass
Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal
Pílulas já no mercado e pesquisas que parecem ficção científica: a quem interessa um mundo que não dorme?
Por Raquel Torres, do Outra Saúde
28 de maio de 2018
Quando o fisioterapeuta Bruno* usou um medicamento que o deixou ‘ligado’ pela primeira vez, três anos atrás, sua intenção era dirigir por uma longa distância sem ficar cansado. Aprovou. “Consegui ficar focado no volante durante oito horas sem parar”, diz ele. A droga usada foi o modafinil, produzido e vendido no Brasil pela Libbs, com o nome Stavigile. De venda controlada, ele é aprovado para tratar a narcolepsia, um distúrbio que faz a pessoa ficar extremamente sonolenta durante o dia, mesmo que tenha dormido bem à noite — e o sono vem inclusive em momentos estranhos, como durante conversas, consultas ou almoços. Nunca fui o caso de Bruno.
Bem longe dele, forças armadas em países desenvolvidos querem manter despertos seus combatentes, e isso não é nenhum segredo de Estado. Anfetaminas e outras drogas são velhas conhecidas de soldados (veja aqui e aqui); ainda em 2004, o jornal inglês The Guardian revelou que militares americanos faziam pesquisas com o modafinil e já tinham conseguido que pessoas ficassem acordadas e funcionais por 85 horas seguidas.
Há várias outras pesquisas bélicas com esse mesmo objetivo. No livro 24/7: os fins do sono no capitalismo tardio, Jonathan Crary fala de testes que incluem substâncias diversas, terapia genética e até estimulação magnética transcraniana. O que o autor afirma, porém, é que a distância que separa o uso dessas drogas por civis e militares é apenas aparente. “A história mostra que inovações relacionadas à guerra são inevitavelmente assimiladas na esfera social mais ampla, e o soldado sem sono seria o precursor do trabalhador ou do consumidor sem sono”, escreve.
Para ele, o sono é uma espécie de resistência contra o capitalismo: a última barreira natural que o sistema não consegue transpor. Se conseguisse, a produção e o consumo 24 horas por dia, 7 dias por semana — daí o título do livro — estaria concretizada.
Crédito: Christopher Morales, Forças Aéreas dos EUA
Boom
Voltemos a Bruno. Depois da primeira experiência, ele continuou testando remédios parecidos, mas com outra finalidade: conseguir estudar muitas horas seguidas para prestar concursos públicos. É que, fora da perda do sono, outro efeito das drogas procuradas por ele é o de aumentar o foco. Além do Stavigile, já fizeram parte da sua vida a Ritalina e o Venvanse, ambos controlados e indicados para tratar o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), principalmente em crianças. O fisioterapeuta faz parte de um crescente grupo de estudantes e trabalhadores ao redor do mundo que, mesmo sem nenhum diagnóstico, se automedica para produzir mais.
Algumas pesquisas feitas no Brasil mostram dados sobre a procura e o consumo desses medicamentos, especialmente o metilfenidato, substância que compõe a Ritalina e o Concerta. Neste estudo, publicado em 2014, foram entrevistados estudantes de medicina de uma universidade no Rio Grande do Sul e 23% deles já tinham usado essas drogas sem prescrição; este outro também ouviu alunos de medicina, mas no Tocantins, e o resultado foi semelhante: 24,5%; mais um, feito no Paraná com alunos de um cursinho para concursos, encontrou um percentual de 28,5%.
A psicóloga Cristiana Siqueira estuda o tema e, durante o mestrado, fez uma série de entrevistas que incluíram psiquiatras e usuários. “É interessante porque duas pessoas que eu entrevistei se referiram ao uso crescente de Ritalina no Brasil como sendo uma espécie de ‘americanização’ da nossa vida”, lembra. De fato, o fenômeno tem sido discutido há bastante tempo nos Estados Unidos, onde o grande procurado é o Adderall, também usado para TDAH (mas proibido no Brasil). O remédio entrou no país em 1996 e, de acordo com esta matéria do New York Times, vem substituindo a Ritalina em muitos casos. Em 2004, diz o texto, medicamentos estimulantes já eram a segunda droga mais comum nos colégios norte-americanos.
Anfetaminas são usadas há quase cem anos (e tanto a Ritalina quanto o Adderall são relacionados a elas), e também não é novidade ouvir falar em trabalhadores das mais diversas categorias que consomem drogas como a cocaína para se manterem acordados. Mas é difícil estabelecer quando e por que este boom no consumo de remédios começou.
Cristiana acha que, em parte, isso pode estar associado à própria disseminação de informações sobre TDAH. Os médicos entrevistados por ela para sua dissertação de mestrado dizem que algumas pessoas chegam ao consultório pedindo diretamente os remédios, mas várias outras vêm com um “discurso pronto” sobre seus sintomas. “Às vezes as pessoas querem deliberadamente forçar o diagnóstico, então estudam os sintomas e, na consulta, fazem relatos deles. Mas nem todo mundo chega com a ideia de ‘enganar’ o médico. Como me disse um dos psiquiatras entrevistados, há pessoas que leem sobre os sintomas e colhem na sua história de vida lembranças dispersas — de que não iam bem no colégio, por exemplo — e de certa forma se convencem de que sempre tiveram TDAH”, comenta ela.
Um problema é que não existe nenhum exame de sangue ou de imagem para o diagnóstico de TDAH, que é feito a partir de conversas com as crianças e adolescentes, além de familiares e professores, em busca um conjunto de sintomas. “Mas não bastam os sintomas”, explica o professor Marcelo Victor, do Programa de Transtornos de Déficit de Atenção/Hiperatividade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ProDAH/UFRGS). “É preciso que exista também um comprometimento do funcionamento psicossocial da criança. Isso quer dizer que muita gente pode ter os sintomas, mas não o transtorno”, diz ele, explicando melhor: “É preciso avaliar a continuidade deles ao longo de vários meses, até porque alguns podem ser devidos a outras condições, como uso de drogas”.
O fato é que, com ou sem TDAH, não é difícil conseguir os remédios. Em vários grupos na internet, é possível comprá-los ilegal, mas abertamente. Bruno, que abriu esta reportagem, disse ter um parente da indústria farmacêutica que conhece vários médicos e consegue receitas. “Acabo comprando dele”, conta. Também há muitas pessoas dão dicas de psiquiatras que ‘facilitam as coisas’ e prescrevem medicamentos mesmo não diagnosticando doença alguma. Das três usuárias entrevistadas por Cristiana, nenhuma tem diagnóstico de doenças ou transtornos mentais, mas todas compram legalmente, com receitas de seus médicos.
Pílulas da inteligência… São mesmo?
Cristiana ressalta que, embora por aqui a propaganda desses remédios não seja permitida, a gente acaba sabendo deles de outras formas, como em reportagens e até mesmo seriados. E ela conta também que, há cerca de dez anos, começaram a pipocar várias matérias que descreviam, muitas vezes com manchetes entusiastas, usos não autorizados desses medicamentos estimulantes. “Há capas de revistas e manchetes com expressões como: ‘`pílulas da inteligência’, ou remédios que ‘turbinam o cérebro’, com imagens de pílulas com um cérebro dentro”, diz.
De acordo com ela, essa onda de matérias veio a partir da publicação de artigos na revista científica Nature, em 2008 e 2009, em que os autores defendiam a regulamentação do uso de remédios para fins de ‘aprimoramento cognitivo’ — isso porque alguns pesquisadores acreditam que as drogas podem melhorar a compreensão e o aprendizado, embora não haja nenhum consenso na comunidade científica.
Cada vez mais gente se automedica para dormir pouco e render muito
O próprio Bruno diz não ter observado nada nesse sentido: “Elas só restringem a atenção”, diz. Sarah Noronha, que tem 25 anos e foi diagnosticada com TDAH aos 17, concorda. “Não acho que tenha efeitos além de tirar o sono e deixar a pessoa desperta. Diferente do que ‘concurseiros’ pensam, a medicação não ajuda a pessoa a aprender mais. Ela só vai aguentar mais tempo estudando”, diz.
Segundo Marcelo Victor, algumas análises com pesquisas já realizadas mostram que esses remédios podem melhorar “um pouco, não muito” o desempenho de pessoas saudáveis. “Depende da pesquisa”, diz ele.
Onde termina o tratamento e começa o aprimoramento?
Mas mesmo o uso de estimulantes no caso de TDAH — e o próprio diagnóstico da doença — vêm sendo discutidos exaustivamente, tanto pela comunidade científica quando por pessoas leigas. A Ritalina chega a ser descrita como “droga a obediência”, responsável por manter focadas e controladas crianças cujo comportamento, na verdade, seria normal, apenas inconveniente para os pais e professores.
E Cristiana traz informações no mínimo intrigantes. Os psiquiatras entrevistados por ela relatam que normalmente o que leva crianças ao consultório é um rendimento escolar considerado baixo, algo que com frequência é apontado pelas próprias escolas. E mais: eles afirmam que sugerem a suspensão ou a diminuição da dose nos fins de semana e nas férias escolares, como medida para minimizar os efeitos colaterais.
Mesmo Marcelo Victor reconhece que os prejuízos sentidos pelos pacientes dependem muito do ambiente externo. De acordo com ele, para algumas pessoas é preciso manter o medicamento o tempo inteiro, mas para outras, não. “Em alguns casos, a vida social e familiar da criança não é prejudicada pelo transtorno. De repente ela tem em casa uma mãe que é mais atenta, um manejo familiar que é diferente do da escola”, diz. E afirma ainda que “o transtorno aparece mais quando a pessoa é exigida”, quando precisa cumprir uma tarefa da qual não goste e que exija atenção. “Se ela gosta de videogame e você a coloca para jogar videogame, pode tirar o remédio dela. O jogo dá prazer, foca, estimula, ela pode ficar horas jogando videogame, e focada. Mas, quando vai para uma questão de matemática, fica cinco minutos e não consegue mais focar, se atrapalha. Porque é algo aborrecido para ela, pouco atraente”.Mas ele não diz que a doença de fato não exista. “As crianças sem o transtorno conseguem dizer: ‘agora preciso me concentrar nisso para aprender’, e as com TDAH, não”, compara. Para ele, trata-se principalmente de melhorar a qualidade de vida das pessoas.
A questão é delicada. “Não estou negando que haja crianças que possam efetivamente ter algum transtorno, mas acho que o que está muito em jogo é o modo como essas crianças têm sido demandadas. Temos um sistema educacional que preza pela competitividade, pelo ranqueamento”, diz Cristiana.
Em geral, crianças são diagnosticadas com TDAH após queixas de baixo rendimento escolar
Paralelos
É impossível não perceber uma relação entre o tratamento das crianças — devido principalmente ao seu baixo rendimento escolar — e o motivo que leva muitos adultos a buscarem medicação, ainda que sem diagnóstico. “Até os médicos com quem conversei têm dificuldade de estabelecer essa fronteira entre o que é patologia e o que é pressão social”, diz Cristiana.
Ela conta que quando perguntou a eles quais aspectos estavam possivelmente envolvidos no consumo off-label (ou seja, para usos não autorizados) da Ritalina, os psiquiatras mencionaram basicamente dois: “O primeiro é que há uma grande exigência social por performance, e as pessoas começam a se sentir fora da disputa, achando que o outro está consumindo algo a mais e elas estão ficando para trás. É uma espécie de coerção indireta: a pessoa se sente coagida a tomar o medicamento por saber que há outras tomando e rendendo mais. O segundo, no caso das crianças, é que não há uma rede comunitária e familiar para apoiá-las. Os pais estão desprotegidos, a escola diz que não tem mais o que fazer com a criança. É um desamparo”.
Na pesquisa de Cristiana, a pressão para dar conta de um excesso de atividades foi relatada pelas três usuárias entrevistadas. “Uma delas usava pontualmente, quando precisava escrever algum relatório grande, quando tinha prazos apertados no trabalho. Outra estava no doutorado e tomou Ritalina para escrever a tese — mas contou que não funcionou, ela não conseguiu. E a terceira não conseguia dar conta de todas as atividades do seu dia: ser mãe, cuidar da casa, trabalhar e estudar”. Uma das médicas também falou com ela sobre isso: “Me disse que muitas vezes vem uma demanda grande por todos os lados, não só de trabalho ou de estudo. A pessoa precisa dar conta de tudo, um tudo que parece ser grande demais, e acaba se direcionando para o medicamento”.
Livre escolha
Quando pergunto a Bruno até que ponto o uso desses remédios para estudar pode ser considerado de fato uma escolha, ele pausa por uns segundos e ri: “Essa pergunta é bem ideológica”, diz .
Sem dúvidas. O professor de filosofia André Brayner de Farias, da Universidade de Caxias do Sul, observa que a necessidade que muitas pessoas têm de abrir mão do sono, a pressão para render mais no trabalho e a sobrecarga do dia a dia estão diretamente relacionadas entre si — e com o capitalismo contemporâneo. Como Crary, ele acredita que o sono é um problema para o capitalismo, e não apenas porque paramos de produzir. “Quando dormimos, quando estamos ‘apagados’, de certa forma fugimos do controle que se abate sobre nós o tempo todo. Interrompemos o circuito de produção. Eu diria que o sono chega a ser hoje uma grande ferramenta política”, diz.
E explica melhor comentando aspectos da obra da filósofa alemã Hannah Arendt, que também é citada por Crary. “Ela traz um conceito de ‘natalidade’ e defende que essa é a base da nossa ação política. A natalidade se relaciona à nossa capacidade de nascer, de gerar crianças, de sair das trevas para a luz. Significa a dimensão do imponderável, do imprevisível. O que nasce é sempre algo que não estamos esperando. E essa autora diz que, quando agimos politicamente, é como se atualizássemos, nas nossas ações, o nosso nascimento. Porque a ação política tem justamente a ver com a nossa capacidade de realizar o imponderável, de dar espaço e tempo para o que é imprevisível. Isso é, por excelência, a forma de resistir”, diz o professor.
Imagem: O pesadelo, de John Henry Fuseli
O sono seria, então, certa simulação dessa ideia, como se, ao dormir e acordar, simulássemos a morte e o renascimento: “É o sono, é a pausa, que nos devolve as forças. Quem acorda, nasce de novo. Ao renascer, surpreende o mundo. E isso é, de algum modo, uma ameaça.”
É claro que, mais e mais, o sono acaba se tornando, ele mesmo, produto de um consumo, se pensarmos na indução por medicamentos, por exemplo. “Este sono, de certa maneira, foi também capturado. É quando já estou tão transformado em máquina de produção que perdi a capacidade de apagar, e preciso ir à farmácia, comprar um remédio que, em muitos casos, vai me viciar”, analisa André, lembrando ainda que, além de já ser uma mercadoria, o remédio também pode atrapalhar os sonhos, “onde ‘visitamos’ territórios desconhecidos e paramos o mundo”.
Atualmente, a pesquisa de Cristiana está voltada justamente ao uso de remédios antidepressivos e indutores do sono: “É uma modulação do corpo produtivo”, diz a psicóloga, comentando o que disse um dos médicos que ela entrevistou, ainda para a dissertação: “Esse psiquiatra receitava Ritalina para uma paciente que, ele julgava, tinha TDAH. Depois de um ano, descobriu que ela se consultava em paralelo com outro médico e, com ele, obtinha receitas de Rivotril para dormir, porque a Ritalina lhe deixava insone. E assim ia gerenciando o sono”, lembra.
Para André, o sono induzido é “um passo na direção da vitória do capitalismo” nessa batalha pelo sono. “Mas ele só vence no dia em que a gente não não precisar mais dormir”, completa ele, ressaltando que, evidentemente, é preciso estar não apenas desperto, mas também produtivo. Cristiana, que está de acordo, comenta que, por enquanto, mesmo a garantia do sono talvez só esteja ancorada na ideia da produtividade, afinal, um corpo cansado não produz: “Existe a ideia de que é preciso dormir um determinado número de horas por dia… Para que possamos render bem”, pontua.
24/7
A necessidade de produção ininterrupta não é recente. No livro, Crary fala muito disso e exemplifica com empreitadas que parecem ter saído de um episódio de Black Mirror, mas que na verdade aconteceram no mundo real. Como um projeto europeu do fim dos anos 1990 que tinha como objetivo garantir que a luz do sol chegasse dia e noite a regiões metropolitanas inteiras, a partir de satélites que refletiriam essa luz para a Terra, para permitir o trabalho ao ar livre de noite. “Isso vem de muito tempo. Mas acho que estamos passando por um processo em que o sono vem sendo, pouco a pouco, minado”, acredita André.
Ele conta que vários dos seus alunos fazem uso regular de Ritalina e “estão convencidos de que é uma coisa boa”. Mas, quando fala de sucumbir à pressão por dormir pouco e render muito, André não está falando apenas dos ‘outros’: “Boa parte de nós acha que dormir é perda de tempo. Muitas vezes quem não usa os remédios também está completamente amarrado ao circuito de produção e tem o sono minado, ainda que seja crítico a isso”, diz, afirmando que este é o seu próprio caso (e é também o caso desta repórter). “É o projeto 24/7 se realizando, ou cada vez mais perto de se realizar”, reflete.
De acordo com o professor, o grande trunfo do capitalismo é que já não são só os donos dos meios de produção que nos cobram, mas também nós mesmos. “Isso acabou entrando na nossa vida, é algo que a gente faz hoje sem ninguém precisar mandar”, alerta.
Um remédio para conseguir ficar desperto, outro para conseguir dormir: medicamentos modulando o corpo produtivo. Crédito: Alyssa L. Miller (Flickr)
E aí a questão da escolha individual volta a aparecer. Cristiana lembra que, naqueles artigos da Nature que defendiam a regulamentação de medicamentos para fins de aprimoramento cognitivo, os autores diziam justamente que o sujeito deveria ser livre para escolher tomar ou não essas drogas. “Mas essa escolha é feita a partir de um determinado contexto em que estamos inseridos, não é tão simples. A demanda está aí. A exigência por performance está aí. Estamos nesse mundo, essa é a sociedade à qual acabamos precisando nos adaptar. Nossas escolhas são balizadas por ela”, reflete a psicóloga, afirmando que, por isso mesmo, analisa a situação com o cuidado de não julgar usuários. “O fato é que os medicamentos existem, estão sendo procurados, precisamos entender e pôr em questão os motivos”.
André concorda: “Pensamos: minha atitude vai depender da minha escolha, eu é que tenho que escolher. Mas acontece que minha escolha não é um lugar puro e intocável dentro de mim. Escolho a partir de um histórico de informações, de uma educação, de uma cultura, de um condicionamento que cada um de nós recebe para ser capaz de escolher”, diz. Mas pontua: “É claro que posso examinar minha vida a cada instante, identificar o que interfere na minha escolha, fazer perguntas. Essa capacidade de se questionar e fazer perguntas significa que a gente ainda tem liberdade. E é isso que é, finalmente, fazer política em um sentido mais autêntico”.
Outros artifícios
Crary diz que no começo do século passado os adultos norte-americanos dormiam em média dez horas por noite; até pouco tempo atrás essa média era de oito horas (daí a afirmação de que passamos um terço da vida dormindo…) e, agora, é de apenas seis horas e meia. Mas remédios não são a única forma de minar o nosso sono, como lembra André: as novas tecnologias têm um papel importante nisso. “Talvez elas sejam até mais importantes nesse processo do que a própria medicalização. Ou, pelo menos, são forças de mesmo valor”, sugere.
De acordo com ele, estamos convencidos da necessidade de consumir informação o tempo inteiro, e isso tem constituído cada vez mais a nossa vida. “Vamos cada vez mais achar natural acordar de madrugada e checar o celular para ver se não tem nenhuma mensagem, nenhuma notícia importante. Ou levantar de manhã e conferir imediatamente o que está acontecendo”, exemplifica, completando: “É como se de fato não tivéssemos intervalo, não tivéssemos pausa. Exatamente o mesmo problema do sono”.
A conexão ininterrupta não significa só um consumo que não para mas, também, para muitos trabalhadores, uma jornada eterna. “Você sai do trabalho, mas ele continua te demandando. Não tem como você argumentar que não viu um email, porque todo mundo recebe alerta no celular, tem as redes sociais. Lembra que antigamente, de madrugada, a televisão parava, saía do ar? Hoje existe um mundo que funciona 24 horas por dia, e acho que tem muita gente que, se pudesse, não dormiria nunca”, diz Cristiane.
Novas tecnologias possibilitam jornada quase eterna
Por mais que pareça paradoxal, ao mesmo tempo em que aumentam as distrações, aumenta a pressão por foco e rendimento. E os remédios não são a única estratégia para voltar aos eixos. Há muitos anos, fiz um curso de meditação que, descobri mais tarde, era replicado em empresas, para os funcionários. A monitora garantia: depois que começou a meditar, nunca mais se atrasou para uma reunião, nunca mais perdeu um prazo e era capaz de trabalhar muito mais, se cansando muito menos. “Existe uma lógica de que o sucesso se relaciona à atenção focalizada, e a partir daí surge toda uma produção de conhecimento de como gerir a atenção. Tem cursos de gestão do tempo e livros de autoajuda que ensinam a aproveitar o tempo para se tornar mais produtivo”, observa Cristiana. Como se o problema não fosse estarmos sobrecarregados, mas, sim, sermos maus gestores de nós mesmos: “As pessoas acabam buscando todas as ferramentas possíveis para se adequar a lógica vigente, e acabamos não colocando esta lógica em questão, não questionando por que precisamos trabalhar tantas horas e por que precisamos estar disponíveis (e bem) durante todas essas horas”.
Há na literatura alguns exercícios de imaginação sobre como seria viver sem dormir. André cita um conto do escritor japonês Haruki Murakami — Sono — em que a personagem principal perde, de repente, a capacidade de adormecer. “E ganha uma vitalidade tremenda, sua consciência se expande enormemente”, diz ele, contando que a mulher passa a fazer mil coisas durante o tempo que, antes, era ‘perdido’. “Mas lá pelas tantas ela se dá conta de que morreu, de que experimentou a própria morte. Esse livro traz uma teoria interessante da morte, é como se o mundo sem sono fosse o mundo onde na verdade estamos sem vida. Quando penso em um mundo sem sono, imagino assim: seres humanos totalmente automatizados, robotizados”, devaneia o professor. A batalha está posta.