segunda-feira, 4 de junho de 2018

O sequestro do sono

no Outras Palavras


Pílulas já no mercado e pesquisas que parecem ficção científica: a quem interessa um mundo que não dorme?

Por Raquel Torres, do Outra Saúde

28 de maio de 2018

Quando o fisioterapeuta Bruno* usou um medicamento que o deixou ‘ligado’ pela primeira vez, três anos atrás, sua intenção era dirigir por uma longa distância sem ficar cansado. Aprovou. “Consegui ficar focado no volante durante oito horas sem parar”, diz ele. A droga usada foi o modafinil, produzido e vendido no Brasil pela Libbs, com o nome Stavigile. De venda controlada, ele é aprovado para tratar a narcolepsia, um distúrbio que faz a pessoa ficar extremamente sonolenta durante o dia, mesmo que tenha dormido bem à noite — e o sono vem inclusive em momentos estranhos, como durante conversas, consultas ou almoços. Nunca fui o caso de Bruno.

Bem longe dele, forças armadas em países desenvolvidos querem manter despertos seus combatentes, e isso não é nenhum segredo de Estado. Anfetaminas e outras drogas são velhas conhecidas de soldados (veja aqui aqui); ainda em 2004, o jornal inglês The Guardian revelou que militares americanos faziam pesquisas com o modafinil e já tinham conseguido que pessoas ficassem acordadas e funcionais por 85 horas seguidas.
Há várias outras pesquisas bélicas com esse mesmo objetivo. No livro 24/7: os fins do sono no capitalismo tardio, Jonathan Crary fala de testes que incluem substâncias diversas, terapia genética e até estimulação magnética transcraniana. O que o autor afirma, porém, é que a distância que separa o uso dessas drogas por civis e militares é apenas aparente. “A história mostra que inovações relacionadas à guerra são inevitavelmente assimiladas na esfera social mais ampla, e o soldado sem sono seria o precursor do trabalhador ou do consumidor sem sono”, escreve.
Para ele, o sono é uma espécie de resistência contra o capitalismo: a última barreira natural que o sistema não consegue transpor. Se conseguisse, a produção e o consumo 24 horas por dia, 7 dias por semana — daí o título do livro — estaria concretizada.
Crédito: Christopher Morales, Forças Aéreas dos EUA
Boom
Voltemos a Bruno. Depois da primeira experiência, ele continuou testando remédios parecidos, mas com outra finalidade: conseguir estudar muitas horas seguidas para prestar concursos públicos. É que, fora da perda do sono, outro efeito das drogas procuradas por ele é o de aumentar o foco.  Além do Stavigile, já fizeram parte da sua vida a Ritalina e o Venvanse, ambos controlados e indicados para tratar o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), principalmente em crianças. O fisioterapeuta faz parte de um crescente grupo de estudantes e trabalhadores ao redor do mundo que, mesmo sem nenhum diagnóstico, se automedica para produzir mais.

Algumas pesquisas feitas no Brasil mostram dados sobre a procura e o consumo desses medicamentos, especialmente o metilfenidato, substância que compõe a Ritalina e o Concerta. Neste estudo, publicado em 2014, foram entrevistados estudantes de medicina de uma universidade no Rio Grande do Sul e 23% deles já tinham usado essas drogas sem prescrição; este outro também ouviu alunos de medicina, mas no Tocantins, e o resultado foi semelhante: 24,5%; mais um, feito no Paraná com alunos de um cursinho para concursos, encontrou um percentual de 28,5%.

A psicóloga Cristiana Siqueira estuda o tema e, durante o mestrado, fez uma série de entrevistas que incluíram psiquiatras e usuários. “É interessante porque duas pessoas que eu entrevistei se referiram ao uso crescente de Ritalina no Brasil como sendo uma espécie de ‘americanização’ da nossa vida”, lembra. De fato, o fenômeno tem sido discutido há bastante tempo nos Estados Unidos, onde o grande procurado é o Adderall, também usado para TDAH (mas proibido no Brasil). O remédio entrou no país em 1996 e, de acordo com esta matéria do New York Times, vem substituindo a Ritalina em muitos casos. Em 2004, diz o texto, medicamentos estimulantes já eram a segunda droga mais comum nos colégios norte-americanos.
Imagem: Flickr
Anfetaminas são usadas há quase cem anos (e tanto a Ritalina quanto o Adderall são relacionados a elas), e também não é novidade ouvir falar em trabalhadores das mais diversas categorias que consomem drogas como a cocaína para se manterem acordados. Mas é difícil estabelecer quando e por que este boom no consumo de remédios começou.

Cristiana acha que, em parte, isso pode estar associado à própria disseminação de informações sobre TDAH. Os médicos entrevistados por ela para sua dissertação de mestrado dizem que algumas pessoas chegam ao consultório pedindo diretamente os remédios, mas várias outras vêm com um “discurso pronto” sobre seus sintomas. “Às vezes as pessoas querem deliberadamente forçar o diagnóstico, então estudam os sintomas e, na consulta, fazem relatos deles. Mas nem todo mundo chega com a ideia de ‘enganar’ o médico. Como me disse um dos psiquiatras entrevistados, há pessoas que leem sobre os sintomas e colhem na sua história de vida lembranças dispersas — de que não iam bem no colégio, por exemplo — e de certa forma se convencem de que sempre tiveram TDAH”, comenta ela.

Um problema é que não existe nenhum exame de sangue ou de imagem para o diagnóstico de TDAH, que é feito a partir de conversas com as crianças e adolescentes, além de familiares e professores, em busca um conjunto de sintomas. “Mas não bastam os sintomas”, explica o professor Marcelo Victor, do Programa de Transtornos de Déficit de Atenção/Hiperatividade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ProDAH/UFRGS). “É preciso que exista também um comprometimento do funcionamento psicossocial da criança. Isso quer dizer que muita gente pode ter os sintomas, mas não o transtorno”, diz ele, explicando melhor: “É preciso avaliar a continuidade deles ao longo de vários meses, até porque alguns podem ser devidos a outras condições, como uso de drogas”.
O fato é que, com ou sem TDAH, não é difícil conseguir os remédios. Em vários grupos na internet, é possível comprá-los ilegal, mas abertamente. Bruno, que abriu esta reportagem, disse ter um parente da indústria farmacêutica que conhece vários médicos e consegue receitas. “Acabo comprando dele”, conta. Também há muitas pessoas dão dicas de psiquiatras que ‘facilitam as coisas’ e prescrevem medicamentos mesmo não diagnosticando doença alguma. Das três usuárias entrevistadas por Cristiana, nenhuma tem diagnóstico de doenças ou transtornos mentais, mas todas compram legalmente, com receitas de seus médicos.

Pílulas da inteligência… São mesmo?

Cristiana ressalta que, embora por aqui a propaganda desses remédios não seja permitida, a gente acaba sabendo deles de outras formas, como em reportagens e até mesmo seriados. E ela conta também que, há cerca de dez anos, começaram a pipocar várias matérias que descreviam, muitas vezes com manchetes entusiastas, usos não autorizados desses medicamentos estimulantes. “Há capas de revistas e manchetes com expressões como: ‘`pílulas da inteligência’, ou remédios que ‘turbinam o cérebro’, com imagens de pílulas com um cérebro dentro”, diz.

De acordo com ela, essa onda de matérias veio a partir da publicação de artigos na revista científica Nature, em 2008 e 2009, em que os autores defendiam a regulamentação do uso de remédios para fins de ‘aprimoramento cognitivo’ — isso porque alguns pesquisadores acreditam que as drogas podem melhorar a compreensão e o aprendizado, embora não haja nenhum consenso na comunidade científica.
Cada vez mais gente se automedica para dormir pouco e render muito
O próprio Bruno diz não ter observado nada nesse sentido: “Elas só restringem a atenção”, diz. Sarah Noronha, que tem 25 anos e foi diagnosticada com TDAH aos 17, concorda. “Não acho que tenha efeitos além de tirar o sono e deixar a pessoa desperta. Diferente do que ‘concurseiros’ pensam, a medicação não ajuda a pessoa a aprender mais. Ela só vai aguentar mais tempo estudando”, diz.
Segundo Marcelo Victor, algumas análises com pesquisas já realizadas mostram que esses remédios podem melhorar “um pouco, não muito” o desempenho de pessoas saudáveis. “Depende da pesquisa”, diz ele.

Onde termina o tratamento e começa o aprimoramento?

Mas mesmo o uso de estimulantes no caso de TDAH — e o próprio diagnóstico da doença — vêm sendo discutidos exaustivamente, tanto pela comunidade científica quando por pessoas leigas. A Ritalina chega a ser descrita como “droga a obediência”, responsável por manter focadas e controladas crianças cujo comportamento, na verdade, seria normal, apenas inconveniente para os pais e professores.

E Cristiana traz informações no mínimo intrigantes. Os psiquiatras entrevistados por ela relatam que normalmente o que leva crianças ao consultório é um rendimento escolar considerado baixo, algo que com frequência é apontado pelas próprias escolas. E mais: eles afirmam que sugerem a suspensão ou a diminuição da dose nos fins de semana e nas férias escolares, como medida para minimizar os efeitos colaterais.

Mesmo Marcelo Victor reconhece que os prejuízos sentidos pelos pacientes dependem muito do ambiente externo. De acordo com ele, para algumas pessoas é preciso manter o medicamento o tempo inteiro, mas para outras, não. “Em alguns casos, a vida social e familiar da criança não é prejudicada pelo transtorno. De repente ela tem em casa uma mãe que é mais atenta, um manejo familiar que é diferente do da escola”, diz. E afirma ainda que “o transtorno aparece mais quando a pessoa é exigida”, quando precisa cumprir uma tarefa da qual não goste e que exija atenção. “Se ela gosta de videogame e você a coloca para jogar videogame, pode tirar o remédio dela. O jogo dá prazer, foca, estimula, ela pode ficar horas jogando videogame, e focada. Mas, quando vai para uma questão de matemática, fica cinco minutos e não consegue mais focar, se atrapalha. Porque é algo aborrecido para ela, pouco atraente”. Mas ele não diz que a doença de fato não exista. “As crianças sem o transtorno conseguem dizer: ‘agora preciso me concentrar nisso para aprender’, e as com TDAH, não”, compara. Para ele, trata-se principalmente de melhorar a qualidade de vida das pessoas.

A questão é delicada. “Não estou negando que haja crianças que possam efetivamente ter algum transtorno, mas acho que o que está muito em jogo é o modo como essas crianças têm sido demandadas. Temos um sistema educacional que preza pela competitividade, pelo ranqueamento”, diz Cristiana.
Em geral, crianças são diagnosticadas com TDAH após queixas de baixo rendimento escolar

Paralelos

É impossível não perceber uma relação entre o tratamento das crianças — devido principalmente ao seu baixo rendimento escolar — e o motivo que leva muitos adultos a buscarem medicação, ainda que sem diagnóstico. “Até os médicos com quem conversei têm dificuldade de estabelecer essa fronteira entre o que é patologia e o que é pressão social”, diz Cristiana.

Ela conta que quando perguntou a eles quais aspectos estavam possivelmente envolvidos no consumo off-label (ou seja, para usos não autorizados) da Ritalina, os psiquiatras mencionaram basicamente dois: “O primeiro é que há uma grande exigência social por performance, e as pessoas começam a se sentir fora da disputa, achando que o outro está consumindo algo a mais e elas estão ficando para trás. É uma espécie de coerção indireta: a pessoa se sente coagida a tomar o medicamento por saber que há outras tomando e rendendo mais. O segundo, no caso das crianças, é que não há uma rede comunitária e familiar para apoiá-las. Os pais estão desprotegidos, a escola diz que não tem mais o que fazer com a criança. É um desamparo”.

Na pesquisa de Cristiana, a pressão para dar conta de um excesso de atividades foi relatada pelas três usuárias entrevistadas. “Uma delas usava pontualmente, quando precisava escrever algum relatório grande, quando tinha prazos apertados no trabalho. Outra estava no doutorado e tomou Ritalina para escrever a tese — mas contou que não funcionou, ela não conseguiu. E a terceira não conseguia dar conta de todas as atividades do seu dia: ser mãe, cuidar da casa, trabalhar e estudar”. Uma das médicas também falou com ela sobre isso: “Me disse que muitas vezes vem uma demanda grande por todos os lados, não só de trabalho ou de estudo. A pessoa precisa dar conta de tudo, um tudo que parece ser grande demais, e acaba se direcionando para o medicamento”.

Livre escolha

Quando pergunto a Bruno até que ponto o uso desses remédios para estudar pode ser considerado de fato uma escolha, ele pausa por uns segundos e ri: “Essa pergunta é bem ideológica”, diz .

Sem dúvidas. O professor de filosofia André Brayner de Farias, da Universidade de Caxias do Sul, observa que a necessidade que muitas pessoas têm de abrir mão do sono, a pressão para render mais no trabalho e a sobrecarga do dia a dia estão diretamente relacionadas entre si — e com o capitalismo contemporâneo. Como Crary, ele acredita que o sono é um problema para o capitalismo, e não apenas porque paramos de produzir. “Quando dormimos, quando estamos ‘apagados’, de certa forma fugimos do controle que se abate sobre nós o tempo todo. Interrompemos o circuito de produção. Eu diria que o sono chega a ser hoje uma grande ferramenta política”, diz.

E explica melhor comentando aspectos da obra da filósofa alemã Hannah Arendt, que também é citada por Crary. “Ela traz um conceito de ‘natalidade’ e defende que essa é a base da nossa ação política. A natalidade se relaciona à nossa capacidade de nascer, de gerar crianças, de sair das trevas para a luz. Significa a dimensão do imponderável, do imprevisível. O que nasce é sempre algo que não estamos esperando. E essa autora diz que, quando agimos politicamente, é como se atualizássemos, nas nossas ações, o nosso nascimento. Porque a ação política tem justamente a ver com a nossa capacidade de realizar o imponderável, de dar espaço e tempo para o que é imprevisível. Isso é, por excelência, a forma de resistir”, diz o professor.
Imagem: O pesadelo, de John Henry Fuseli
O sono seria, então, certa simulação dessa ideia, como se, ao dormir e acordar, simulássemos a morte e o renascimento: “É o sono, é a pausa, que nos devolve as forças. Quem acorda, nasce de novo. Ao renascer, surpreende o mundo. E isso é, de algum modo, uma ameaça.”

É claro que, mais e mais, o sono acaba se tornando, ele mesmo, produto de um consumo, se pensarmos na indução por medicamentos, por exemplo. “Este sono, de certa maneira, foi também capturado. É quando já estou tão transformado em máquina de produção que perdi a capacidade de apagar, e preciso ir à farmácia, comprar um remédio que, em muitos casos, vai me viciar”, analisa André, lembrando ainda que, além de já ser uma mercadoria, o remédio também pode atrapalhar os sonhos, “onde ‘visitamos’ territórios desconhecidos e paramos o mundo”.

Atualmente, a pesquisa de Cristiana está voltada justamente ao uso de remédios antidepressivos e indutores do sono: “É uma modulação do corpo produtivo”, diz a psicóloga, comentando o que disse um dos médicos que ela entrevistou, ainda para a dissertação: “Esse psiquiatra receitava Ritalina para uma paciente que, ele julgava, tinha TDAH. Depois de um ano, descobriu que ela se consultava em paralelo com outro médico e, com ele, obtinha receitas de Rivotril para dormir, porque a Ritalina lhe deixava insone. E assim ia gerenciando o sono”, lembra.
Para André, o sono induzido é “um passo na direção da vitória do capitalismo” nessa batalha pelo sono. “Mas ele só vence no dia em que a gente não não precisar mais dormir”, completa ele, ressaltando que, evidentemente, é preciso estar não apenas desperto, mas também produtivo. Cristiana, que está de acordo, comenta que, por enquanto, mesmo a garantia do sono talvez só esteja ancorada na ideia da produtividade, afinal, um corpo cansado não produz: “Existe a ideia de que é preciso dormir um determinado número de horas por dia… Para que possamos render bem”, pontua.

24/7

A necessidade de produção ininterrupta não é recente. No livro, Crary fala muito disso e exemplifica com empreitadas que parecem ter saído de um episódio de Black Mirror, mas que na verdade aconteceram no mundo real. Como um projeto europeu do fim dos anos 1990 que tinha como objetivo garantir que a luz do sol chegasse dia e noite a regiões metropolitanas inteiras, a partir de satélites que refletiriam essa luz para a Terra, para permitir o trabalho ao ar livre de noite. “Isso vem de muito tempo. Mas acho que estamos passando por um processo em que o sono vem sendo, pouco a pouco, minado”, acredita André.
Ele conta que vários dos seus alunos fazem  uso regular de Ritalina e “estão convencidos de que é uma coisa boa”. Mas, quando fala de sucumbir à pressão por dormir pouco e render muito, André não está falando apenas dos ‘outros’: “Boa parte de nós acha que dormir é perda de tempo. Muitas vezes quem não usa os remédios também está completamente amarrado ao circuito de produção e tem o sono minado, ainda que seja crítico a isso”, diz, afirmando que este é o seu próprio caso (e é também o caso desta repórter). “É o projeto 24/7 se realizando, ou cada vez mais perto de se realizar”, reflete.
De acordo com o professor, o grande trunfo do capitalismo é que já não são só os donos dos meios de produção que nos cobram, mas também nós mesmos. “Isso acabou entrando na nossa vida, é algo que a gente faz hoje sem ninguém precisar mandar”, alerta.
Um remédio para conseguir ficar desperto, outro para conseguir dormir: medicamentos modulando o corpo produtivo. Crédito: Alyssa L. Miller (Flickr)
E aí a questão da escolha individual volta a aparecer. Cristiana lembra que, naqueles artigos da Nature que defendiam a regulamentação de medicamentos para fins de aprimoramento cognitivo, os autores diziam justamente que o sujeito deveria ser livre para escolher tomar ou não essas drogas. “Mas essa escolha é feita a partir de um determinado contexto em que estamos inseridos, não é tão simples. A demanda está aí. A exigência por performance está aí. Estamos nesse mundo, essa é a sociedade à qual acabamos precisando nos adaptar. Nossas escolhas são balizadas por ela”, reflete a psicóloga, afirmando que, por isso mesmo, analisa a situação com o cuidado de não julgar usuários. “O fato é que os medicamentos existem, estão sendo procurados, precisamos entender e pôr em questão os motivos”.

André concorda: “Pensamos: minha atitude vai depender da minha escolha, eu é que tenho que escolher. Mas acontece que minha escolha não é um lugar puro e intocável dentro de mim. Escolho a partir de um histórico de informações, de uma educação, de uma cultura, de um condicionamento que cada um de nós recebe para ser capaz de escolher”, diz. Mas pontua: “É claro que posso examinar minha vida a cada instante, identificar o que interfere na minha escolha, fazer perguntas. Essa capacidade de se questionar e fazer perguntas significa que a gente ainda tem liberdade. E é isso que é, finalmente, fazer política em um sentido mais autêntico”.

Outros artifícios

Crary diz que no começo do século passado os adultos norte-americanos dormiam em média dez horas por noite; até pouco tempo atrás essa média era de oito horas (daí a afirmação de que passamos um terço da vida dormindo…) e, agora, é de apenas seis horas e meia. Mas remédios não são a única forma de minar o nosso sono, como lembra André: as novas tecnologias têm um papel importante nisso. “Talvez elas sejam até mais importantes nesse processo do que a própria medicalização. Ou, pelo menos, são forças de mesmo valor”, sugere.

De acordo com ele, estamos convencidos da necessidade de consumir informação o tempo inteiro, e isso tem constituído cada vez mais a nossa vida. “Vamos cada vez mais achar natural acordar de madrugada e checar o celular para ver se não tem nenhuma mensagem, nenhuma notícia importante. Ou levantar de manhã e conferir imediatamente o que está acontecendo”, exemplifica, completando: “É como se de fato não tivéssemos intervalo, não tivéssemos pausa. Exatamente o mesmo problema do sono”.

A conexão ininterrupta não significa só um consumo que não para mas, também, para muitos trabalhadores, uma jornada eterna. “Você sai do trabalho, mas ele continua te demandando. Não tem como você argumentar que não viu um email, porque todo mundo recebe alerta no celular, tem as redes sociais. Lembra que antigamente, de madrugada, a televisão parava, saía do ar? Hoje existe um mundo que funciona 24 horas por dia, e acho que tem muita gente que, se pudesse, não dormiria nunca”, diz Cristiane.
Novas tecnologias possibilitam jornada quase eterna
Por mais que pareça paradoxal, ao mesmo tempo em que aumentam as distrações, aumenta a pressão por foco e rendimento. E os remédios não são a única estratégia para voltar aos eixos. Há muitos anos, fiz um curso de meditação que, descobri mais tarde, era replicado em empresas, para os funcionários. A monitora garantia: depois que começou a meditar, nunca mais se atrasou para uma reunião, nunca mais perdeu um prazo e era capaz de trabalhar muito mais, se cansando muito menos. “Existe uma lógica de que o sucesso se relaciona à atenção focalizada, e a partir daí surge toda uma produção de conhecimento de como gerir a atenção. Tem cursos de gestão do tempo e livros de autoajuda que ensinam a aproveitar o tempo para se tornar mais produtivo”, observa Cristiana. Como se o problema não fosse estarmos sobrecarregados, mas, sim, sermos maus gestores de nós mesmos: “As pessoas acabam buscando todas as ferramentas possíveis para se adequar a lógica vigente, e acabamos não colocando esta lógica em questão, não questionando por que precisamos trabalhar tantas horas e por que precisamos estar disponíveis (e bem) durante todas essas horas”.

Há na literatura alguns exercícios de imaginação sobre como seria viver sem dormir. André cita um conto do escritor japonês Haruki Murakami — Sono — em que a personagem principal perde, de repente, a capacidade de adormecer. “E ganha uma vitalidade tremenda, sua consciência se expande enormemente”, diz ele, contando que a mulher passa a fazer mil coisas durante o tempo que, antes, era ‘perdido’. “Mas lá pelas tantas ela se dá conta de que morreu, de que experimentou a própria morte. Esse livro traz uma teoria interessante da morte, é como se o mundo sem sono fosse o mundo onde na verdade estamos sem vida. Quando penso em um mundo sem sono, imagino assim: seres humanos totalmente automatizados, robotizados”, devaneia o professor. A batalha está posta.

* O nome foi alterado

Como superar a República Rodoviarista do Brasil

no Outras Palavras

POR ROBERTO ANDRES



aminhão e automóvel são pivôs de um modelo de “desenvolvimento” que traz consigo o latifúndio, e especulação imobiliária e as cidades segregredas. Quais os caminhos para virar a página?
Por Roberto Andrés
Uma greve de caminhoneiros não seria capaz de parar o Brasil na década de 1950. Pessoas continuariam se deslocando pelas cidades; o abastecimento de produtos seria mantido; milhões de animais não estariam sendo sacrificados; não estaria faltando insumos em hospitais, escolas, postos de saúde, etc.
Há legitimidade em se opor à escalada dos preços dos combustíveis, mas o impacto descomunal da greve coloca em questão nossa extrema dependência de estradas, asfalto, pneus e derivados de petróleo. Vale lembrar que nem sempre foi assim: nos tornamos uma república rodoviarista ao longo do século 20, a despeito da ampla malha ferroviária e do imenso potencial hidroviário que o país já teve.
Em artigo na revista Piseagrama, Fernanda Regaldo reconta a triste história de desmonte da Rede Ferroviária Federal, que já foi a maior empresa pública do país, à frente da Petrobrás. Nos anos 1950, os trens intermunicipais no Brasil transportavam cerca de cem milhões de passageiros por ano – e hoje não chegam a transportar 2 milhões em suas poucas linhas.
A história passa pela construção desenfreada de estradas, tornada pauta nacional por Juscelino Kubitschek e levada a cabo nos anos de chumbo, junto ao abandono paulatino das ferrovias. “No afã privatizante do governo FHC, o sistema ferroviário do país foi completamente desmembrado e concedido à iniciativa privada, quase sem condicionantes de interesse público”, relembra a autora.
Nas mãos de poucas empresas ligadas à mineração, nossa malha ferroviária restante ficou restrita à exportação de minério, grãos e biocombustíveis. E a maior parte do transporte de cargas e passageiros que estrutura a dinâmica interna do Brasil foi para as rodovias.
TEXTO-MEIO
Esse modelo onera a logística do país, gera grande impacto ambiental e milhares de mortes. Estima-se que caminhões gastam cerca de dez vezes mais diesel do que trens para transportar a mesma carga; e que mais de 10 mil pessoas morrem por ano no Brasil em acidentes envolvendo caminhões.
As cidades seguiram na mesma toada. Um estudo de Ailton Brasiliense, presidente da Associação Nacional de Transporte Público, a ANTP, compara São Paulo em 1950 com Belo Horizonte em 2010: com 60 anos de distância, as duas cidades tinham a mesma população (cerca de 2,4 milhões) e a mesma área territorial. No entanto, São Paulo tinha 70 mil veículos em 1950 e, Belo Horizonte, 1,4 milhão em 2010.
O mesmo número de pessoas vive e se desloca na mesma extensão territorial com 20 vezes menos carros. Como isso é possível? A diferença é que São Paulo tinha, em 1950, mais de 600 quilômetros de trilhos de bondes. Bondes que tinham tarifas populares, andavam com gente saindo pelas janelas, não poluíam o ar e geravam pouquíssimos acidentes.
Com o espraiamento das cidades, que, como bem lembra Raquel Rolnik, sempre serviu a proprietários que têm seus terrenos valorizados, a dependência petrolífera se acentuou cada vez mais. Além disso, a produção de alimentos foi se distanciando dos polos de consumo, passando a ser feita em grandes monoculturas, altamente dependentes do diesel (assim como de agrotóxicos).
Tudo isso criou um país que, quando funciona a pleno vapor, gera poluição, doenças, mortes, mal estar. Não deixa de ser sintomático que a paralisação tenha como efeito colateral, além das perdas produtivas, melhorias em muitos aspectos da vida cotidiana.
Durante a greve dos caminhoneiros, as cidades estiveram desobstruídas e silenciosas, com vias livres para bicicletas e pedestres. Em BH, o número de ciclistas praticamente dobrou e a poluição do ar em São Paulo reduziu pela metade depois de uma semana sem gasolina. Se esse padrão fosse mantido, milhares de mortes geradas por problemas respiratórios seriam evitadas.
Revela-se a fragilidade das escolhas que nos legaram uma economia ineficaz, poluente e violenta. A revisão desse caminho é para ontem: agroecologia, agricultura urbana, trens, metrôs, bondes, energia eólica e solar, acesso à terra, reciclagem e compostagem de lixo, entre outros, conformam a agenda urgente vislumbrada na fissura aberta por esses dias de paralisação.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

As complexas sociedades indígenas da Amazônia

no Outras Palavras

Geoglifos, como estes no município de Senador Guiomard, no Acre, podem ser vistos em uma faixa de 1.800 quilômetros no sul da Amazônia


Novas descobertas sugerem que vastas porções da grande floresta não são intocadas: foram manejadas por povos pré-colombianos durante séculos, com agricultura organizada e possível formação de cidades-jardins
Por Marcos Pivetta, na Revisa Pesquisa Fapesp | Imagem: Mauricio de Paiva
A descoberta recente de 81 sítios arqueológicos pré-colombianos aparentemente densamente povoados em uma área do sul da Amazônia que se julgava inabitada ou pouco povoada entre meados do século XIII e o início do XVI reforça uma hipótese defendida por boa parte dos arqueólogos nos últimos 15 anos: a de que a grande floresta tropical, que se estende por terras brasileiras e de mais oito países, abrigava sociedades complexas e uma numerosa população antes da chegada dos europeus às Américas. Os números variam enormemente, mas as estimativas atuais mais aceitas apontam para algo entre 8 e 10 milhões de indígenas, um contingente similar ao dos incas que ocuparam nos Andes uma área muito menor no período pré-colonial, e não no máximo 2 milhões de pessoas, como dizia a norte-americana Betty Meggers (1921-2012), pioneira da arqueologia amazônica, para quem a região era um grande vazio populacional.
Os novos sítios se situam na bacia do Tapajós, no norte de Mato Grosso, em uma área relativamente plana de terra firme, livre de inundações, pontuada por suaves elevações de 100 a 300 metros (m). As regiões de terra firme, também denominadas áreas interfluviais, representam pelo menos 70% dos 5,5 milhões de quilômetros quadrados (km2) da Amazônia. Normalmente, não são alvo de buscas arqueológicas. E a razão é simples: essas áreas estão fora das planícies inundáveis, as várzeas no entorno dos rios, que são as zonas mais férteis e com mais riqueza natural. Em tese, a maior parte das antigas populações pré-coloniais deveria ter se concentrado nas várzeas, pois a terra firme seria muito pobre em recursos para sua sobrevivência. “As áreas interfluviais sempre foram negligenciadas, mas nosso estudo indica que elas podiam abrigar grandes concentrações humanas”, comenta o arqueólogo brasileiro Jonas Gregório de Souza, que faz estágio de pós-doutorado na Universidade de Exeter, no Reino Unido, primeiro autor do estudo sobre os sítios do Tapajós, publicado em março na revista científica Nature Communications.
Com o auxílio de imagens de satélites e idas a campo, Souza e colegas britânicos de Exeter e brasileiros da Universidade Federal do Pará (UFPA), da estadual de Mato Grosso (Unemat) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) identificaram no Tapajós 104 construções ou desenhos geométricos escavados no solo, os chamados geoglifos. São valas e valetas geralmente de formato circular, com diâmetros que variam de 11 m a 363 m, dentro das quais há, em alguns casos, resquícios de velhas moradias. Também foram encontrados na área, situada entre os rios Aripuanã, Juruena e Teles Pires, peças de cerâmica, traços de caminhos que ligavam as aldeias e trechos com terra preta, um solo mais escuro formado a partir de detritos orgânicos acumulados onde houve ocupações humanas prolongadas.
Cinturão de ocupação humana
Descobrir esse tipo de sítio pré-histórico, pontuado por geoglifos ou por extensas valetas escavadas na terra, deixou de ser algo inédito na Amazônia nas duas últimas décadas. Há dezenas de lugares com essas formas geométricas na floresta tropical, desde a fronteira da Bolívia com o Acre, onde as figuras também podem exibir formas quadradas ou hexagonais, até a região do Alto Xingu, também no norte de Mato Grosso. Sítios pré-colombianos circundados por valetas ou paliçadas também existem na confluência dos rios Negro e Solimões, a cerca de 30 km de Manaus, no Amazonas, no Amapá e na Guiana Francesa. O diferencial da nova descoberta reside na localização das aldeias. “Focamos nossa pesquisa no Tapajós justamente por essa área estar entre os geoglifos do Acre e os sítios do Xingu. Queríamos saber se nessa nova região também haveria sítios similares”, explica Souza. “Os sítios do Tapajós não são idênticos aos do Acre ou do Xingu. Parecem pertencer a uma outra tradição cultural, mas que certamente está relacionada a essas duas áreas.”

Os autores do estudo afirmam que, se olhados em conjunto com os sítios da Bolívia, do Acre e do Xingu, os resquícios de presença humana no Tapajós fazem parte de um cinturão de 1.800 km de extensão com evidências de ocupação humana no sul da Amazônia no período pré-colonial. Apesar de haver distinções regionais, um grande traço comportamental uniria os habitantes dessa faixa meridional da floresta: esses povos desaparecidos, que viveriam em aldeias fortificadas, deixaram marcas no solo de sua presença. “Há 10 anos, prevíamos que também deveria haver geoglifos na bacia do Tapajós e isso se confirmou agora”, afirma o paleontólogo Alceu Ranzi, ex-professor das universidades Federal do Acre (Ufac) e de Santa Catarina (UFSC). Coautor do novo estudo, Ranzi foi um dos primeiros a identificar, mais de duas décadas atrás, essas grandes figuras geométricas em território acreano. De acordo com projeções e cálculos de ocupação populacional feitos por Souza e seus colegas, entre 500 mil e 1 milhão de indígenas teriam vivido nesse cinturão em até 1.500 aldeias entre os anos 1250 e 1500. A área dessa faixa equivale a 400 mil km2, apenas 7% de toda a bacia amazônica.
“Cidade-jardim”
Talvez o exemplo mais espetacular desse tipo de ocupação nas franjas meridionais da floresta resida nos sítios arqueológicos situados nas terras hoje habitadas pelo povo Kuikuro, dentro da reserva indígena do Xingu, no norte de Mato Grosso, a leste dos novos achados no Tapajós. Ao lado de colegas brasileiros e de dois índios dessa etnia, o antropólogo norte-americano Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, descreveu, em um artigo na revista Science em 2003, um grupo de 19 aldeias de formato circular, as maiores protegidas por fossas de até 5 m de profundidade e muros de paliçadas, interligadas por uma malha de estradas de terra batida. Os pesquisadores estimaram que entre 2.500 e 5.000 pessoas podem ter residido nas maiores aldeias.
Estudioso há três décadas do Xingu, onde já viveu e ainda passa temporadas, o antropólogo denomina esse tipo de ocupação de “cidade-jardim”, uma espécie de arquitetura amazônica que teria florescido no período pré-colonial. “Seria uma forma ‘galáctica’ de urbanismo pré-histórico, sem um centro de comando, mas com aglomerados representando pequenas entidades políticas independentes dentro de um sistema igualitário de poder regional”, explica Heckenberger. Um dos traços desse tipo de ocupação seria a profunda integração dos habitantes com os recursos da floresta, que não seria simplesmente mantida intacta, como algo sagrado, mas manejada de maneira a garantir o sustento de seus povos.
Além dos traços profundos no solo amazônico, a presença de vastas populações por um longo período teria deixado marcas sutis na floresta tropical, tão tênues que, até pouco tempo atrás, eram ignoradas ou interpretadas como elementos da configuração natural da mata. Estudos recentes feitos por biólogos, ecólogos, geólogos, botânicos, geralmente em parceria com arqueólogos, têm sugerido que vastas porções da floresta não são áreas virgens, intocadas pelo homem, mas sim setores da mata manejados pelos índios ao longo de gerações para seu sustento. Um artigo publicado em março de 2017 na Scienceindicou que havia maior concentração e diversidade de árvores que podem ser fonte de alimento perto dos antigos assentamentos humanos. O trabalho, cuja primeira autora era a bióloga Carolina Levis, doutoranda no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e na Universidade de Wageningen, na Holanda, listou 85 espécies vegetais que foram usadas e domesticadas pelos índios, como o açaí, a castanha-do-pará e a seringueira.
Castanheiras em torno dos sítios
Em um trabalho de 2015 publicado na revista científica Proceedings of the Royal Society B, um grupo de pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos mostrou que as castanheiras parecem se concentrar em torno das áreas ricas em terra preta que contornam os sítios arqueológicos. Essa correlação é mais visível nos antigos assentamentos humanos que ficavam no entorno dos rios Amazonas e Madeira e, em menor escala, no Tapajós (ver mapa). “Os índios pré-colombianos domesticaram o arroz na Amazônia há 4 mil anos e moldaram partes da floresta plantando seringueiras, castanheiras e outros cultivos”, comenta o arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), um dos grandes especialistas na pré-história da região e coautor do estudo. Para Neves, a descoberta dos novos sítios no Tapajós não é surpreendente. “Em qualquer lugar da Amazônia que escavamos, encontramos algo. Muitas áreas não estudadas podem ter abrigado culturas complexas”, sugere.
Monumento pré-colombiano feito de pedra, perto do litoral do Amapá
Uma zona em que a pesquisa arqueológica começou a se desenvolver há pouco mais de 10 anos é a costa norte do Amapá, perto da fronteira com a Guiana Francesa. Inicialmente, essa área chamou a atenção por causa do sítio do Rego Grande, no município de Calçoene, distante 460 km ao norte de Macapá. Apelidado de Stonehenge amazônico (o conhecido círculo de pedras erguidas há 4,5 mil anos no sul da Inglaterra), o lugar abriga um pequeno conjunto de megálitos, construções humanas feitas com grandes blocos de granito. Datações de carbono 14 realizadas pelo casal de arqueólogos Mariana Petry Cabral e João Darcy de Moura Saldanha, então a serviço do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa), indicaram que o sítio, provavelmente usado para fins cerimoniais e talvez funerários, foi ocupado entre 700 e mil anos atrás, também antes da colonização europeia.
Apesar de ter se mudado do Amapá, a dupla continua os estudos na região, onde calcula haver 500 sítios pré-históricos. “Descobrimos perto do Oiapoque antigos assentamentos humanos protegidos por fossos escavados no chão”, comenta Saldanha, que defendeu doutorado sobre essa região no ano passado no MAE-USP. “Ali havia também a cultura de promover grandes movimentações de terra.” Do outro lado da fronteira, na Guiana Francesa, os arqueólogos locais denominam os sítios protegidos por valas, geralmente situados em lugares mais elevados, de montanhas coroadas. Saldanha e Mariana ainda encontraram outro tipo de estrutura monumental associada a práticas cerimoniais e funerárias: círculos formados por grandes troncos de madeira que marcavam e delimitavam a presença de poços funerários com sepultamentos humanos, alguns em urnas antropomórficas. Não se sabe se os antigos habitantes da costa amapaense dividiam as mesmas tradições culturais dos povos que fizeram os geoglifos na Bolívia e no Acre e as valetas e construções geométricas do Xingu e do Tapajós. Há, no entanto, um possível elemento de ligação, apesar da distância geográfica. Nos tempos pré-colombianos, as terras do litoral perto da Guiana Francesa eram dominadas por tribos que falavam majoritariamente línguas da família aruaque.
Fragmentação linguística
Boa parte dos sítios arqueológicos que registram extensos trabalhos de movimentação de terra, como os geoglifos do Acre e as antigas aldeias do Xingu, situa-se em áreas que foram ocupadas por falantes de línguas das famílias aruaque e tupi-guarani. Segundo a linguista Patience Epps, da Universidade do Texas em Austin, as áreas em que essas duas famílias predominam na Amazônia tendem a não ser contíguas. “Durante muito tempo, esse padrão foi interpretado como um indicador de que havia um relativo isolamento entre os grupos de indígenas, que seriam formados por pequenas populações sem muita interação”, comenta Patience. “Mas argumento que essa fragmentação linguística poderia também ser entendida como um resultado da interação desses grupos, que seria compatível com a visão de que havia nessas áreas populações densas e estruturas sociais complexas.”
Patience estuda como os falantes das diferentes línguas da Amazônia se relacionam e travam contato, um tipo de proximidade que se expressa sobretudo pelo empréstimo de palavras de um idioma para outro e de semelhanças gramaticais. Há anos, ela coleta dados sobre o léxico e a gramática de centenas de línguas da região. Ela constatou, por exemplo, que as línguas das famílias aruaque e tupi-guarani são as que mais cederam palavras ou expressões para outras línguas. Alguns termos ou expressões, como os que designam a ave garça ou o numeral 4, são disseminados por toda a bacia amazônica e compartilhados por várias línguas. “Temos evidência desse tipo de interação em algumas zonas multilinguísticas, como o Alto rio Negro e o Xingu”, explica a estudiosa. “Nessas áreas, as diferenças entre as línguas fazem parte de como os grupos marcam seu lugar e seu papel social dentro de um sistema interativo maior, como as diferentes partes de uma grande engrenagem.”
Apesar de os indícios arqueológicos, botânicos e até linguísticos serem crescentes e compatíveis com a existência de uma grande população ao menos em setores da Amazônia pré-colonial, a questão demográfica ainda permanece em aberto. Se são cada vez mais raros os arqueólogos que pensam como Betty Meggers e ainda consideram que a região foi quase um deserto de gente antes da chegada dos europeus, também não há evidências que sustentem algumas estimativas exageradas, como as de que os povos pré-colombianos da Amazônia poderiam ter abrigado 50 milhões de pessoas. “Não creio que o estágio atual das pesquisas nos permita fazer generalizações para toda a Amazônia. Seria como generalizar a história de um grande continente”, pondera a arqueóloga boliviana Carla Jaimes Betancourt, da Universidade de Bonn, na Alemanha, que estuda sítios de seu país natal. “Temos evidências de grandes populações e de uma maior densidade demográfica em algumas regiões, como o Xingu e Moxos [Bolívia] ”, afirma Carla. “Mas também devemos admitir que algumas pesquisas, como as de [Dolores] Piperno [do Instituto de Pesquisa Tropical Smithsonian], comprovam que existiram igualmente áreas mais vazias.”
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Projeto
A arqueologia do Holoceno Médio e o início da domesticação de paisagens no sudoeste da Amazônia (nº 17/11817-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável: Eduardo Góes Neves (USP); Investimento R$ 161.053,20.
Artigos científicos
SOUZA, J. G. et al. Pre-Columbian earth-builders settled along the entire southern rim of the Amazon. Nature Communications. 27 mar. 2018.
CLEMENT, C. R. et al. The domestication of Amazonia before European conquest. Proceedings of the Royal Society B. 22 jul. 2015.

terça-feira, 29 de maio de 2018

ANTROPOLOGIA FORENSE - Uma luta contra o desaparecimento

na Revista Pesquisa Fapesp

Pesquisadores de várias especialidades compõem grupo que busca identificar desaparecidos da ditadura a partir de restos mortais da vala clandestina de Perus.

 Edição 250 dez. 2016

Armazenadas em 1.047 caixas em salas climatizadas...
Armazenadas em 1.047 caixas em salas climatizadas…Imagem: LÉO RAMOS
“Onde estão os nossos desaparecidos?” Diante da pergunta afixada na parede, cercada pelos retratos de 42 homens e mulheres desaparecidos na época da ditadura militar, uma equipe que inclui arqueólogos, médicos legistas, odontolegistas, geneticistas e bioantropólogos trabalha organizando, analisando e registrando ossadas em um processo que envolve desde ciência e tecnologia à atenção aos princípios de direitos humanos. “O grande diferencial do trabalho é o foco na equipe multidisciplinar”, declara o médico-legista Samuel Ferreira, da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) do Ministério da Justiça e Cidadania (MJC) e coordenador científico do Grupo de Trabalho Perus (GTP). Nessa casa do bairro paulistano Vila Mariana, mantida pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), funciona o GTP, que pretende identificar rostos do trágico mural no conteúdo das 1.047 caixas que abrigam os ossos retirados em 1990 da vala clandestina do cemitério Dom Bosco, em Perus, zona norte de São Paulo. Nesse processo também se pretende contribuir para sedimentar a área da antropologia forense no Brasil.
Fundado em 1971, o cemitério Dom Bosco teve em 1975 uma série de exumações. “Isso normalmente é feito quando há necessidade de espaço, mas na época uma parte substancial do cemitério ainda estava vazia”, conta a arqueóloga Márcia Hattori, coordenadora da parte ante mortem do trabalho, ressaltando o caráter suspeito do procedimento. A vala clandestina criada à época foi reaberta em 1990, em grande parte por pressão de familiares de desaparecidos, que sabiam que ali haviam sido enterradas pessoas como desconhecidos. As ossadas foram então transferidas para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob a responsabilidade do médico-legista Badan Palhares, onde nos primeiros anos se chegou a duas identificações por meio de um método que sobrepõe uma fotografia ao crânio, com base em algumas medidas-padrão. Mas, em meio a disputas sobre financiamento, o trabalho foi interrompido e o abandono acabou sepultando as análises já realizadas.
“A abordagem de agora, científica, é diferente da que veio antes”, ressalta Carla Borges, coordenadora de Direito à Memória e à Verdade da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC). Segundo ela, aconteceram iniciativas pontuais em diferentes gestões, com apenas um esforço constante: o das famílias dos desaparecidos, que nunca deixaram de cobrar respostas. Ela ressalta que o Estado (e não gestores individuais, como determinado prefeito ou presidente no exercício do mandato) tem a responsabilidade de procurar qualquer pessoa desaparecida naquela época. “Nunca estivemos tão perto de virar essa página”, afirma, argumentando pela continuidade do esforço.
Foco
O universo de busca é amplo, mas há candidatos mais prováveis cuja identificação já seria um sucesso. “Temos indicação de que os corpos de Dimas Antônio Casemiro, Francisco José de Oliveira e Grenaldo Jesus da Silva entraram em Perus”, diz Márcia. Os registros não ajudam. “As ruas do cemitério mudaram de nome nos anos 1970, o mapa das sepulturas é um quadriculado feito à mão e, quando há registro de exumação, não se sabe para onde foi transferido.” Ela e sua equipe recolheram informações de uma série de fontes para elaborar a lista de procurados. “Olhamos de maneira sistemática para os casos de ‘desconhecidos’ de toda a década de 1970 com o objetivo de mapear o caminho da morte na cidade de São Paulo durante o período e compreender a política de desaparecimento.”
....as ossadas são lavadas sob a coordenação de Ana Tauhyl
…as ossadas são lavadas sob a coordenação de Ana TauhylImagem: LÉO RAMOS
No processo de pesquisa, a equipe encontrou fotografias fornecidas pelas famílias quando a vala de Perus foi aberta, na tentativa de contribuir para a identificação: eram documentos preciosos, em um período anterior à fotografia digital. “A investigação dos crimes de ocultação acabou aprofundando o desaparecimento”, lamenta Márcia, que devolveu cópias das imagens às famílias. O GTP iniciou um trabalho que, além de forense, envolve atenção à dor de quem nunca soube o que aconteceu com pessoas queridas. Realizar o trabalho fora do IML de São Paulo, um local no passado associado à ditadura, faz parte disso. Pelo mesmo motivo o projeto contou com a colaboração das Equipes Argentina e Peruana de Antropologia Forense (EAAF e Epaf), que se formaram logo em seguida aos períodos de ditadura nos respectivos países. Os dados que a equipe ante mortem levantou formam um catálogo do que deve ser procurado nas análises das ossadas: características físicas ou acontecimentos que ficam gravados nos ossos, como fraturas ou perfuração por arma de fogo. “Procuramos materializar o morto que foi desaparecido”, esclarece.
O projeto envolve um tripé institucional: a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) do MJC, de que faz parte a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo (SMDHC) e a Unifesp. Neste momento, sua continuidade é incerta, devido à mudança de gestão na prefeitura paulistana e no governo federal. Na Unifesp, a reitora Soraya Smaili foi votada em novembro para permanecer no cargo e já se manifestou favoravelmente ao prosseguimento das atividades.
Em uma audiência pública no dia 28 de novembro, a secretária especial de Direitos Humanos do governo federal, Flávia Piovesan, afirmou o empenho da SEDH em garantir a continuidade do trabalho. “Me sensibilizou muito o compromisso com um trabalho tão necessário”, declarou, depois de ter conhecido o funcionamento do GTP. A contratação permanente dos profissionais ainda é um problema, já que vem sendo feita com recursos da SEDH por meio de uma cooperação internacional. Os contratos têm duração de um ano e é incerto o que acontecerá a partir de janeiro de 2017, quando vence a maior parte. A secretária disse estar buscando alternativas que garantam uma equipe permanente, essencial para manter a padronização do trabalho, em adição aos peritos oficiais que devem continuar o revezamento e a integrantes da Epaf. Há recursos garantidos para o próximo ano, mas insuficientes para o que precisa ser feito, de acordo com a reitora da Unifesp.
Desde 2014, quando as caixas contendo as ossadas foram transferidas para a casa batizada como Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), o grupo recomeçou o trabalho do início e já examinou 580 delas. “Precisamos de mais um ano, pelo menos, para conseguir analisar tudo”, conta a arqueóloga Ana Tauhyl, responsável pela abertura das caixas e limpeza dos ossos.
Arqueologia recente
O trabalho envolve um rigor bem diferente de quando as ossadas foram retiradas da vala por coveiros, sem atenção em manter a unidade de cada esqueleto. Ainda úmidos da terra, os ossos foram postos em sacos plásticos e logo começaram a ser degradados por mofo. E não foi o pior: os sacos, com cadeiras jogadas por cima, passaram até por uma inundação na Unicamp em consequência de uma torneira deixada aberta.
Os ossos são dispostos para secagem...
Os ossos são dispostos para secagem e em seguida analisados por Aline Oliveira e Marina GratãoImagem: LÉO RAMOS
O processo segue um protocolo elaborado pela Epaf e validado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha e pelo Comitê Científico do projeto, seguindo parâmetros nacionais e internacionais. Cada caixa é aberta por um integrante da equipe, que dispõe os ossos para serem fotografados e descritos por Ana em formulários. Além dos ossos, as caixas abrigam ainda pistas das etapas anteriores. Sacos de plástico azul com marcação do Serviço Funerário do Município de São Paulo algumas vezes aparecem esfacelados, sinal de que já estavam dentro da vala, e outras vezes estão íntegros, por serem posteriores. Outros sacos – de plástico, pano ou TNT – datam do trabalho na Unicamp, onde sempre que possível foram presos aos crânios discos de metal com o número de identificação gravado. Muitos dos ossos ainda estão recobertos de terra. Apesar de factual, o registro fotográfico não deixa de lado um cuidado que beira o artístico na disposição dos ossos e embalagens. Tudo em meio à poeira e ao cheiro de tinta da obra em andamento na casa, cujas instalações não estão finalizadas.
Depois de lavados e secos, os esqueletos são dispostos em mesas na posição dita anatômica, com ossos alinhados conforme a sua organização no corpo. Medições feitas dessa maneira permitem estimar um perfil biológico, que inclui estatura, faixa etária, sexo e outras características identificadoras, se comparadas com as informações ante mortem sobre os potenciais candidatos a identificação.
O ideal seria que esse processo permitisse afunilar a busca, mas o conjunto dos desaparecidos políticos procurados coincide com o perfil de boa parte dos enterrados na vala analisados até o momento: homens entre 20 e 40 anos de idade. Por isso, cerca de 70% das ossadas não podem ser descartadas. Diante do volume de trabalho pela frente, é preciso aliar rigor e pressa. “É um trabalho atrasado por si só, já se passaram 40 anos de espera”, diz a arqueóloga Patricia Fischer, responsável pelo laboratório e coordenadora do trabalho post mortem. Ela também avalia que 25% das caixas contenham mais de um indivíduo. Quando aparecem ossos suplementares, é preciso decidir qual não se encaixa no esqueleto sob análise – por cor, tamanho ou outras características morfológicas. Quando é possível estimar o perfil biológico, os dados são registrados em uma ficha identificada como “indivíduo B” e os ossos, guardados em sacos separados. Com isso, até 701 indivíduos podem estar representados nas 580 caixas já abertas.
Em uma tarde de trabalho em novembro, a bioantropóloga Mariana Inglez documentava uma série de fraturas feitas por volta do momento da morte em todo o lado esquerdo de um homem: na cabeça, em várias costelas, no braço. A pesquisadora mostra uma fratura tipo “borboleta” no úmero, o osso do braço, uma indicação de impacto. “Ele foi atingido por algo bem grande”, afirma, concordando com a possibilidade de atropelamento, enquanto segura um crânio e desenha as fraturas em um esquema à sua frente. Ela aponta uma pequena irregularidade no lado esquerdo da mandíbula, onde ela se encaixa no crânio. “Talvez ele sentisse dor nessa articulação”, supõe, anotando como possível característica para auxiliar na identificação.
Na mesa ao lado o odontolegista Marcos Paulo Machado, do IML do Rio de Janeiro, analisa a dentição de outro esqueleto. “É um caso incomum na vala”, conta ele, “por ser mulher, muito jovem e com acesso a tratamento dentário”. Ele mostra restaurações de amálgama e também a raiz incompleta do terceiro molar, que indica uma idade de menos de 21 anos. Ele faz parte do grupo de peritos de vários estados do país que se revezam para contribuir ao andamento do trabalho.
Em outra mesa a arqueóloga espanhola Candela Martínez consulta as colegas Marina Gratão e Aline Oliveira sobre duas vértebras fundidas, com uma fratura ocorrida próximo à morte. O desafio era descrever, sem interpretar em excesso, fraturas feitas em vários momentos da vida nas costelas, em vértebras, em um braço. Esta última se consolidou sem atendimento médico, deixando uma irregularidade no osso. “Ele sofreu muita violência em vida, agressões domésticas não bastariam para explicar”, diz Candela sobre o homem que parece ter morrido entre os 30 e os 47 anos de idade, uma estimativa com base em índices de maturidade e desgaste de partes específicas do esqueleto. Poderia ser um morador de rua ou alguém com um trabalho muito pesado, concluem. “Ele certamente tinha dificuldades de locomoção”, avalia Marina, mais uma característica que pode ajudar na identificação.
Ossos alinhados em posição anatômica permitem registrar particularidades e danos sofridos
Ossos alinhados em posição anatômica permitem registrar particularidades e danos sofridosImagem: LÉO RAMOS
Embora o GTP esteja concentrado em vítimas da ditadura, as consequências do trabalho podem ser muito maiores. Marina conta que logo no início dos trabalhos surgiu o esqueleto de uma idosa com o crânio despedaçado. Ao juntar as peças, foi possível enxergar a causa da morte: um tiro na cabeça. Não há idosas no mural, mas o achado reforçou a necessidade de estudar todos os esqueletos. Também há indícios de que ali tenham sido sepultadas vítimas de um surto de meningite abafado pelo governo entre 1972 e 1974. Sobretudo crianças, nesse caso. “Que essas pessoas tenham ou não sofrido tortura em uma prisão, elas podem ser vistas como vítimas de violência pelo Estado – no mínimo por omissão de assistência”, diz Patricia.
O Caaf pretende se estabelecer como um centro de pesquisa que possa efetuar convênios com órgãos públicos ou instituições da sociedade civil na investigação de casos de violência. O banco de dados resultante do GTP pode possibilitar a busca de qualquer pessoa desaparecida nos anos 1970, mesmo que sem ligações políticas. Outro projeto do centro, iniciado este ano sob coordenação do médico patologista Rimarcs Gomes Ferreira, da Unifesp, envolve um caso mais recente: os assassinatos ocorridos em maio de 2006 na Baixada Santista, por ocasião dos conflitos entre a polícia e o Primeiro Comando da Capital (PCC).
Genética
Um dos próximos passos do GTP, essencial para a identificação dos desaparecidos, é recorrer ao DNA. Samuel Ferreira coleta pessoalmente amostras de sangue de familiares para comparação com o material genético a ser extraído dos restos mortais. “Vamos aonde os familiares preferirem”, explica ele, que já amostrou 31 famílias residentes em 16 cidades de vários estados. Uma vez reunidas as amostras dos familiares e das ossadas, elas serão enviadas a um laboratório em Sarajevo, na Bósnia-Herzegovina, especializado na análise de restos mortais degradados e relacionados a situações de violação de direitos humanos. “O Brasil teria condições técnicas de fazer esse trabalho, mas não análises em larga escala na velocidade que o projeto demanda”, explica. A extração do DNA dos ossos não será fácil, segundo ele, devido ao mau estado de conservação, e deve começar ainda este ano.
Documentação sempre acompanha o material já estudado, até que volte para a respectiva caixa
Documentação sempre acompanha o material já estudado, até que volte para a respectiva caixaImagem: léo ramos
A Unifesp pretende aproveitar o ensejo para investir na formação em antropologia forense, a começar por um curso de especialização planejado para ter início em 2017. No Brasil, a formação em bioantropologia depende da iniciativa de cada profissional. A união entre direitos humanos e ciência é um legado que o GTP pretende deixar ao país.
“O procedimento científico que está sendo seguido nos dá segurança, alento”, afirma Amparo Araújo, que perdeu o marido e o irmão durante a ditadura. O corpo do marido, sem o crânio, foi encontrado no cemitério de Perus. Ela tem esperança de identificar o irmão entre as ossadas da vala, e para isso já teve seu sangue retirado algumas vezes, desde a fase da Unicamp. Com a falta de continuidade, porém, as primeiras amostras se perderam. “Nunca explicavam para que aquilo serviria, o que estava acontecendo”, lembra, em contraste com a transparência que destaca no processo atual.
Recentemente, Amparo viu um homem na rua e por uma fração de segundo achou que fosse o irmão. “Mas não podia ser, se passaram 45 anos e ele teria 70 anos, seria diferente do que me lembro.” Ela define o desaparecimento como uma morte que não se conclui. “Não vamos abrir mão da presença da universidade”, afirma, em nome do Comitê de Acompanhamento, formado por familiares.


O que são os direitos humanos?

no site ONUBR

Os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição.


Na imagem, a sala principal do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. Crédito: ONU/Jean-Marc Ferré

Os direitos humanos incluem o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre e muitos outros. Todos merecem estes direitos, sem discriminação.
Direito Internacional dos Direitos Humanos estabelece as obrigações dos governos de agirem de determinadas maneiras ou de se absterem de certos atos, a fim de promover e proteger os direitos humanos e as liberdades de grupos ou indivíduos.

Estudantes da Escola Secundária Butkhak em Cabul, no Afeganistão, participam da Semana de Ação Global, uma campanha internacional que defende uma educação gratuita e de qualidade para todas e todos. Foto: ONU/Fardin Waezi
Estudantes da Escola Secundária Butkhak em Cabul, no Afeganistão, participam da Semana de Ação Global, uma campanha internacional que defende uma educação gratuita e de qualidade para todas e todos. Foto: ONU/Fardin Waezi


Desde o estabelecimento das Nações Unidas, em 1945 – em meio ao forte lembrete sobre os horrores da Segunda Guerra Mundial –, um de seus objetivos fundamentais tem sido promover e encorajar o respeito aos direitos humanos para todos, conforme estipulado na Carta das Nações Unidas:
“Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, … a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações…”
Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948

Contexto e definição dos direitos humanos

Os direitos humanos são comumente compreendidos como aqueles direitos inerentes ao ser humano. O conceito de Direitos Humanos reconhece que cada ser humano pode desfrutar de seus direitos humanos sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outro tipo, origem social ou nacional ou condição de nascimento ou riqueza.
Os direitos humanos são garantidos legalmente pela lei de direitos humanos, protegendo indivíduos e grupos contra ações que interferem nas liberdades fundamentais e na dignidade humana.
Estão expressos em tratados, no direito internacional consuetudinário, conjuntos de princípios e outras modalidades do Direito. A legislação de direitos humanos obriga os Estados a agir de uma determinada maneira e proíbe os Estados de se envolverem em atividades específicas. No entanto, a legislação não estabelece os direitos humanos. Os direitos humanos são direitos inerentes a cada pessoa simplesmente por ela ser um humano.
Tratados e outras modalidades do Direito costumam servir para proteger formalmente os direitos de indivíduos ou grupos contra ações ou abandono dos governos, que interferem no desfrute de seus direitos humanos.
Algumas das características mais importantes dos direitos humanos são:
  • Os direitos humanos são fundados sobre o respeito pela dignidade e o valor de cada pessoa;
  • Os direitos humanos são universais, o que quer dizer que são aplicados de forma igual e sem discriminação a todas as pessoas;
  • Os direitos humanos são inalienáveis, e ninguém pode ser privado de seus direitos humanos; eles podem ser limitados em situações específicas. Por exemplo, o direito à liberdade pode ser restringido se uma pessoa é considerada culpada de um crime diante de um tribunal e com o devido processo legal;
  • Os direitos humanos são indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes, já que é insuficiente respeitar alguns direitos humanos e outros não. Na prática, a violação de um direito vai afetar o respeito por muitos outros;
  • Todos os direitos humanos devem, portanto, ser vistos como de igual importância, sendo igualmente essencial respeitar a dignidade e o valor de cada pessoa.
(Na imagem de capa dessa página, a sala principal do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. Crédito: ONU/Jean-Marc Ferré)