terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Ladislau: quem quebrou o Estado brasileiro

no Outras Palavras

POR LADISLAU DOWBOR

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Examine os números: gasto social é moderado, enquanto pagamento de juros explode. País entra em crise — e governo mantém justamente as despesas mais devastadoras
Por Ladislau Dowbor
Você provavelmente se sente perplexo frente à situação econômica do país. Está em boa companhia. Quem é que entende de resultado primário, de ajuste fiscal e outros termos que povoaram os nossos noticiários? A imensa maioria balança a cabeça de maneira entendida, e faz de conta. Pois vejam que realmente não é complicado entender, é só trocar em miúdos. E com isso o rombo fica claro. Aqui vai a conta explicitada, não precisa ser economista ou banqueiro. E usaremos os dados do Banco Central, a partir da tabela original, pois confiabilidade, nesta era melindrada, é fundamental. Para ver os dados no próprio BC, é só clicar no link embaixo da tabela.
A política econômica do governo atual está baseada numa imensa farsa: a de que as políticas redistributivas da era progressista quebraram o país enquanto o novo poder, com banqueiros no controle do dinheiro, iriam reconstruí-lo. Segundo o conto, como uma boa dona de casa, vão ensinar responsabilidade, gastar apenas o que se ganha. A grande realidade é que são os juros extorquidos pelos banqueiros que geraram o rombo. A boa dona de casa que nos governa se juntou aos banqueiros e está aumentando o déficit.
Os dados publicados pelo Banco Central mostram a imagem real do que está acontecendo:
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TEXTO-MEIO
A tabela, tal como aparece no site do Banco Central, parece complexa, mas é de leitura simples. Na linha IX, “Resultado primário do governo central” é possível acompanhar a evolução dos números. O resultado primário é a conta básica de quanto o governo recolheu com os impostos e acabou gastando nas suas atividades, propriamente de governo, investindo em educação, saúde, segurança etc — ou seja, em políticas públicas.
Quando se diz que o governo deve ser responsável, não gastar mais do que ganha, é disto que estamos falando. Confira a tabela abaixo, extraída da tabela principal: trata-se apenas de melhorar a legibilidade.
tabela1_resultadoprimariogovernocentral
No caso, houve um superávit nos anos 2010 até 2013 (gastou menos do que arrecadou) e um déficit insignificante de 20 bilhões em 2014, e moderado em 2015, 116 bilhões de reais, 2% do PIB, perfeitamente normal.
Na União Europeia, por exemplo, um déficit de até 3% do PIB é considerado normal, com variações entre um ano e outro. Ou seja, fica claro, note-se que ao contrário do que dizem os gastos com as políticas públicas não causaram nenhum “rombo” como tem sido qualificado.
A linha seguinte da tabela, X – “Juros Nominais”, dá a chave da quebra e da recessão. Os juros nominais representam o volume de recursos que o governo gastou com os juros sobre a dívida pública. Esta é a caixa preta que trava a economia na dimensão pública.
Trata-se da parte dos nossos impostos que em vez de servirem para infraestruturas e políticas sociais, são transferidos para os bancos e outros intermediários financeiros, além de um volume pequeno de aplicadores individuais no tesouro direto. Estes em boa parte reaplicam os resultados, aumentando o volume de recursos apropriados.
A dívida pública é normal em inúmeros países, assegurando aplicações financeiras com risco zero e liquidez total, e por isto pagando em geral na faixa de 0,5% ao ano, nos mais variados países, inclusive evidentemente nos EUA e União Europeia. Não é para aplicar e ficar rico, é para ter o dinheiro seguro enquanto se busca em que investir.
No Brasil, o sistema foi criado em julho de 1996, pagando uma taxa Selic fantástica de mais de 15% já descontada a inflação. Instituiu-se assim por lei um sistema de transferência de recursos públicos para os bancos e outros aplicadores financeiros. Com juros deste porte, rapidamente o governo ficou apenas rolando a dívida, pagando o que conseguia de juros, enquanto o que não conseguia pagar aumentava o estoque da dívida. Nada que qualquer família brasileira não tenha conhecido quando pega dívida para saldar outra dívida. O processo vira, obviamente, uma bola de neve.
Em 2003 Lula assume com uma taxa Selic pagando 24,5%, quando a inflação estava em 6%. Importante notar que são lucros gigantescos para os bancos e os rentistas em geral, sem nenhuma atividade produtiva correspondente. E nenhum benefício para o governo ou a população, pois o governo, com este nível de juros, apenas rola a dívida.
O sistema é absolutamente inviável a prazo. E ilegítimo, pois se trata de ganhos sem contrapartida produtiva, gerando uma contração econômica. Na passagem de 2012 para 2013, o governo Dilma passa a reduzir progressivamente a taxa de juros sobre a dívida pública, chegando ao nível de 7,25% ao ano, para uma inflação de 5,9%, aproximando-se das taxas praticadas na quase totalidade dos países. Isto gerou uma revolta por parte dos bancos e por parte dos rentistas em geral.
Por que tantos países mantêm uma taxa de juros sobre a dívida pública da ordem de 0,5% ou menos? Porque um juro baixo sobre a dívida pública estimula os donos dos recursos financeiros a buscar outras aplicações mais rentáveis, em particular investimentos produtivos, que geram ganhos mas fomentando a economia. Aqui, estimulou-se o contrário: para que um empresário se arriscar em investimentos produtivos se aplicar na dívida pública rende mais?
A revolta dos banqueiros e outros rentistas levou a uma convergência com outras insatisfações, inclusive oportunismos políticos, provocando os grandes movimentos de 2013. E com um legislativo eleito pelo dinheiro das corporações, atacou-se na mídia qualquer tentativa de reduzir os juros e resgatar a política econômica do governo. Futuros candidatos também viram aí brechas oportunas. O governo recuou, iniciando um novo ciclo de elevação da taxa Selic, reconstituindo a bonança de lucros sem produção, essencialmente para bancos e outros rentistas.
Difícil dizer o que causou o recuo do governo. O fato é que desde meados de 2013 instalou-se a guerra política e o boicote, e não houve praticamente um dia de governo, seguindo-se a eleição e a desarticulação geral da capacidade de ação do Palácio do Planalto. O essencial para nós, é que não houve uma quebra de governo, e muito menos do Brasil, como dizem, pois as políticas públicas mantiveram o seu equilíbrio financeiro. O que quebrou o sistema, e fato essencial, está aprofundando a crise, é o volume de transferências de recursos públicos para bancos e outros intermediários financeiros que são essencialmente improdutivos.
Confira a tabela dos juros nominais:
tabela2_jurosnominais
Com a Selic elevada, o governo transferiu em 2010, nas contas do Banco Central, 125 bilhões de reais sobre a dívida pública. Em 2011, este montante se elevou para 181 bilhões, caindo para 147 bilhões em 2012 com a redução dos juros Selic (a 7,5%) por parte do governo Dilma. Em 2013 começa o drama: sob pressão dos bancos, voltam a subir os juros sobre a dívida pública, e o dinheiro transferido ou reaplicado pelos  rentistas sobe para 186 bilhões em 2013. Na fase do ministro Nelson Levy, portanto, com um banqueiro tomando conta do caixa, esse valor explode para 251 bilhões em 2014, e para 397 bilhões em 2015. Veja que o rombo criado pelos altos juros da dívida é incomparavelmente superior ao déficit das políticas públicas propriamente ditas, na linha IX “Resultado primário do governo central” visto acima.
Aqui são praticamente 400 bilhões de reais que poderiam se transformar em investimentos de infraestruturas e em políticas sociais, apropriados não por produtores, mas sim essencialmente por intermediários financeiros como bancos, fundos e inclusive aplicadores estrangeiros, gerando o rombo que agora vivemos e que aumenta ainda mais em 2016, pois continuamos com banqueiros no controle do sistema.
Confira, agora, a linha XI – Resultado Nominal do Governo Central, que vai apontar o rombo crescente. Trata-se do déficit já incorporando o gasto com juros sobre a dívida pública, hoje os mais altos do mundo. Veja o déficit gerado na tabela abaixo:
IX – Resultado Nominal do Governo Central
2010
2011
2012
2013
2014
2015
-45.785,5
-87.517,6
-61.181,7
-110.554,9
-271.541,9
-513.896,0
-1,2%
-2%
-1,3%
-2,1%
-4,8%
-8,7%

Ele passa de 46 bilhões em 2010, explodindo para 272 bilhões em 2014 já com a política econômica controlada pelos banqueiros, e chegando a astronômicos 514 bilhões em 2015, já com políticas confortavelmente orientadas para desviar recursos públicos para intermediários financeiros.
Essas três linhas da tabela do Banco Central mostram o equívoco do chamado “ajuste fiscal” do governo. E permitem entender, de forma clara, que não se tratou, de maneira alguma, de um governo que gastou demais com as políticas públicas, e sim de um governo em que os recursos foram desviados das políticas públicas para satisfazer o sistema financeiro.
Veja na tabela principal na linha “% do PIB gasto em juros” que o volume de recursos transferidos para os grupos financeiros passou de 3,2% do PIB em 2010 para 6,7% do PIB em 2015. E a conta cresce.
Quem gerou a crise é quem está no poder hoje, no Brasil, ditando o aumento da taxa Selic que voltou ao patamar surrealista de 14%. Em nome da austeridade, e de “gastar responsavelmente o que se ganhou”, aumentaram em 2016 o déficit primário para R$ 170 bilhões, repassando dinheiro para deputados e senadores (emendas parlamentares), aumentando os salários dos juízes e de segmentos de funcionários públicos (em nome da redução dos gastos) e assistindo a uma explosão dos juros pagos pela população.
Ponto chave: a PEC 241 trava os gastos com políticas públicas. São gastos que resultam no resultado primário, ou seja, onde o déficit é muito limitado e a utilidade é grande, tanto econômica como social. Mas a PEC 241 (e 55 no Senado) não limita os gastos com a dívida pública, que é onde ocorre o verdadeiro e imenso rombo.
Não se trata aqui, com esta medida, de reduzir os gastos do Estado, mas de aumentar os gastos com juros, que alimentam aplicações financeiras, em detrimento do investimento público e dos gastos sociais. Trata-se simplesmente de aprofundar ainda mais o próprio mecanismo que nos levou à crise.
Seriedade? Gestão responsável? A imagem da dona de casa que gasta apenas o que tem? Montou-se uma farsa. Os números aí estão. Assim o país afunda ainda mais e eles querem que o custo da lambança saia dos direitos sociais, das aposentadorias, da terceirização e outros retrocessos. Isto reduz a demanda e o PIB, e consequentemente os impostos, aumentando o rombo. Esta conta não fecha, nem em termos contábeis nem em termos políticos. Aliás, dizer que os presentes trambiques se espelham no modelo da boa dona de casa constitui uma impressionante falta de respeito.
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Nota: aqui abordamos a questão central dos juros sobre a dívida pública, visando mostrar o absurdo dos argumentos do governo ter “quebrado” a economia. Importante também mencionar que o próprio volume (estoque) da dívida, da ordem de 60% do PIB (e muito menos para a dívida líquida) não é particularmente maior do que a de outros países, e muito menor, por exemplo, do que a dos EUA ou do Japão. Para uma visão mais ampla, há um excelente documento Austeridade e Retrocesso, que traz a análise financeira completa. O documento é de outubro de 2016, 50p, disponível em http://brasildebate.com.br/wp-content/uploads/Austeridade-e-Retrocesso.pdf
Quanto ao endividamento da população, com juros absurdamente abusivos para pessoa física e pessoa jurídica, o mecanismo gerado pode ser consultado no documento Resgatando o potencial financeiro do país, inclusive com as propostas correspondentes. Veja em http://dowbor.org/2016/08/ladislau-dowbor-resgatando-o-potencial-financeiro-do-pais-versao-atualizada-em-04082016-agosto-2016-47p.html/
Para conferir a planilha do Banco Central, clique em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/resultado-do-tesouro-nacional e acesse a planilha de nome RTN ago. 2016.xlsx, Aba 4.1, Séries históricas – Resultado Fiscal do Governo Central – Estrutura Nova (janeiro/1997 – agosto/2016)

Ladislau Dowbor é professor de economia nas pós-graduações em economia e em administração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e consultor de várias agências das Nações Unidas. Seus artigos estão disponíveis online em http://dowbor.org

Privacidade, mercadoria de luxo

no Outras Palavras

POR RAFAEL EVANGELISTA

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Como a coleta invasiva de dados pessoais, sob o Capitalismo de Vigilância, elimina direitos, impõe comportamentos e torna totalitário o poder das corporações. Só escapa o 1% que comanda a máquina
Por Rafael Evangelista
Causou pequeno furor na Internet, recentemente, a notícia de que o Nubank poderia interromper as suas atividades no Brasil. O Nubank é uma dessas fintech, empresas de finanças que utilizam de ferramentas de alta tecnologia, principalmente big data, para realizarem suas operações de crédito e que também oferecem uma “experiência tecnológica” a seus clientes, como fazerem tudo pelo celular. O motivo do fechamento seriam mudanças na regulação do mercado de cartão de crédito propostas pela equipe econômica do famigerado Michel Temer, em especial o encurtamento no prazo de pagamento a ser feito aos lojistas pela financiadora quando alguém compra usando o cartão. O Nubank, choraram seus executivos, não teria caixa para antecipar pagamentos e não poderia manter práticas que o diferenciam de seus concorrentes, como a isenção de cobrança de anuidades. Por isso também a grita dos clientes.
Mas o ponto aqui não são as agruras dos portadores de cartões Nubank, e sim o quanto elas podem falar sobre privacidade. O direito de escolher entre ser totalmente transparente ou manter certos assuntos longe do escrutínio alheio tende a ser cada vez mais um privilégio dos ricos.
No caso acima, mantêm a privacidade aqueles com orçamento livre o suficiente para pagar a anuidade do cartão, ou que gastam tanto no crédito que gozam de benefícios dos bancos tradicionais. O cliente Nubank, assim que pede seu cartão de crédito, oferece poucos dados (e-mail, nome, CPF), mas é convidado a integrar seu perfil do Linkedin ao cadastro. Essa integração aumentaria a velocidade de resposta do Nubank ao seu pedido. É a partir do CPF e dos dados coletados em redes sociais que a empresa vai checar se o cliente é quem realmente diz ser e qual sua capacidade de crédito, que está relacionada não somente ao seu cadastro fiscal, mas também à sua inserção na sociedade, ou seja, o quem faz, onde trabalha, quem são seus amigos etc. Trata-se de uma escolha emblemática: os que podem pagar a anuidade podem ser mais obscuros ao banco; os que precisam economizar umas dezenas de reais por mês oferecem sua transparência.
O exemplo é até certo ponto trivial, uso-o aqui não por ser contundente, mas por convocar ao debate de uma questão mais ampla. Trata-se de uma investigação que todo banco faz, no entanto é uma amostra emblemática de uma mudança mais complexa e que tem a ver com o capitalismo de vigilância, uma nova lógica de acumulação do capitalismo. “Essa nova forma de capitalismo informacional pretende prever e modificar o comportamento humano como meio para a produção de lucros e o controle do mercado”, escreve Shoshana Zuboff, em um denso artigo chamado “Big Other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization
O artigo é um petardo e é prévia para um livro que deve chegar às livrarias no início de 2017. O capitalismo de vigilância funda-se em tecnologias como o big data, a extração e análise de grandes quantidades de dados para análises de mercado. Mas há outros dois pontos importantes de que Zuboff trata que nos ajudam aqui a mostrar como a privacidade vai se tornando cada vez mais difícil para os mais pobres.
TEXTO-MEIO
Um deles é a reflexão que Zuboff faz sobre o futuro dos contratos. No capitalismo de vigilância, passamos a ser monitorados por dispositivos informacionais o tempo todo. Eles garantem com muito mais efetividade se estamos ou não seguindo um determinado comportamento. A tendência seria, então, de emergência de novas formas contratuais, que ela chama de não-contratos, pois a forma tradicional desses compromissos legais seria baseada na incerteza e na confiança. Estas tendem a ganhar um papel secundário no futuro, dando lugar a um monitoramento maquínico.
Por exemplo, imaginemos um plano de saúde que, como condição para oferecer preços mais baixos, oferte ao cliente o uso ininterrupto de uma pulseira de monitoramento cardíaco. Antes, a empresa podia apenas recomendar ao cliente que se exercitasse três vezes por semanas por pelo menos 30 minutos ao dia para manter uma vida saudável pelo seu próprio bem. Com a pulseira, a sincronizar dados com os computadores da empresa diariamente, esta tem como estar certa de como o cliente se comportou, se fez exercícios ou não, verificando os batimentos cardíacos. Se o cliente não cumpriu o “recomendado” então os preços, automaticamente, sobem. O risco da empresa cai consideravelmente, pois dá preços mais altos aos sedentários, condição que ela verifica ao vigiar a que velocidade bate o coração do segurado.
Parece claro que aqueles que podem pagar, que têm mais dinheiro, podem se dar ao luxo de se eximir desse tipo de vigilância pela máquina. Isso é ainda mais verdade em situações profissionais. A revista TechRepublic publicou um interessante artigo ( sobre o Mechanical Turk, o site da Amazon dedicado a oferecer trabalho remoto, a ser feito em casa, por trabalhadores independentes, em troca de micro pagamentos. São tarefas muitas vezes auxiliares aos sistemas de inteligência artificial das grandes companhias do Vale do Silício. Incluem trabalhos simples como classificar fotos, classificação que será usada para “ensinar” sistemas de inteligência artificial; ou coisas traumatizantes, como assistir centenas de vídeos do ISIS, incluindo cenas de degolamentos, para definir se se trata de conteúdo impróprio ou não. Tudo isso por alguns centavos: na imensa maioria dos casos o rendimento do trabalhador fica abaixo do salário mínimo federal dos EUA, de 7,5 dólares a hora. O que a revista descreve é um cotidiano exaustivo, em que os trabalhadores passam o tempo todo conectados, pois o rendimento depende de ser estar disponível no momento em que a tarefa aparece. Essas são oferecidas preferencialmente àqueles designados como estando no “master’s level”, mas ninguém sabe como isso é definido. A vida privada, pessoal, fora do mundo do trabalho, desaparece, O trabalhador é transparente ao sistema, precisa estar disponível o tempo todo e abrir seus dados em extensos formulários de cadastramento. Mas o contratante é obscuro e, muitas vezes, anônimo. A Amazon coloca-se apenas como dona da plataforma que conecta trabalhadores e patrões.
Outro ponto importante no texto de Zuboff é a ideia que o capitalismo de vigilância não tem as populações somente como fonte da coleta de informações comportamentais, informações essas que vão orientar campanhas de marketing, publicidade e informar a produção de produtos. Aquele que é vigiado é também alvo de tentativas de orientação de comportamento. Tradicionalmente, a publicidade já opera dessa forma, busca fazer com que os indivíduos se comportem de uma determinada maneira que seja interessante aos lucros da empresa. Mas Zuboff está falando de algo em outro nível, que não opera pelo convencimento, pela escolha e decisão.
Trata-se de uma prática de controle da ação dos pontos em uma rede – as pessoas, no caso. Entende-se ação aqui como uma operação informacional: um like no Facebook, um clique que confirma a compra em um site, montar uma página na Internet em que alguém oferece seus serviços profissionais. “Na lógica do capitalismo de vigilância não há indivíduos, somente o organismo de escala mundial e todos os minúsculos elementos dentro dele”, escreve ela. O controle aí significa a limitação das escolhas ao mínimo ou a opções que não fazem muita diferença. A Netflix lhe oferece opções de filmes que parecem infinitas, a maioria dentro do mesmo padrão hollywoodiano e todas sendo comercializadas pelas mesmas distribuidoras do sistema. Você pode optar por não utilizar o dispositivo de rastreamento que a seguradora quer instalar em seu carro, só vai ter que pagar o dobro.
Na pirâmide social da atualidade – e que, em condições normais, tende a um afunilamento crescente – apenas o 1% que está no topo pode optar pelo privilégio da total obscuridade à rede. O grau de escolha sobre privacidade parece ir diminuindo quanto mais se aproxima da base. Inclusive o nível mais inferior dessa pirâmide, hoje desconectado, é objeto de desejo das grandes empresas de tecnologia, que lançam projetos de inclusão digital – como o Free Basics, do Facebook – de olho nos dados e operações informacionais que essa população pode produzir.

Nessa enorme parte do meio da pirâmide, para sobreviver, ou apenas para termos um pouco mais de conforto momentâneo, somos a todo tempo convidados a nos tornarmos mais transparentes. Mas essa transparência, ao mesmo tempo, aumenta nossa vulnerabilidade e o poder do outro. Os efeitos não são só individuais, a invasão de uma intimidade, como o sentido comum da expressão “perda da privacidade” pode nos convidar a pensar. Trata-se fundamentalmente de uma questão de poder.

Rafael Evangelista

Doutor em antropologia social e professor do Mestrado em Divulgação Científica e Cultural do IEL-Unicamp.
 
 
 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

PENSADOR - Morre o sociólogo Zygmunt Bauman, criador da 'modernidade líquida'

na Rede Brasil Atual

Sociólogo e pensador foi reconhecido por abordar a "liquidez" das relações sociais na modernidade e pós-modernidade, teoria que abriu um vasto campo de estudos para diferentes áreas das ciências humanas


bauman.jpg
Entre importantes pensadores contemporâneos, Bauman se dedicou a investigar problemas nas relações sociais

São Paulo – Morreu hoje (9), em Leeds, Inglaterra, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, aos 91 anos. A informação foi dada pela mídia polonesa. A causa da morte não foi divulgada. As informações são da Agência Ansa.
Nascido em 19 de novembro de 1925, em Poznan, Bauman serviu na Segunda Guerra Mundial e tem uma extensa biografia com reflexões sobre a sociedade e as mudanças do mundo atual.
Sua principal teoria, com a qual ficou mundialmente conhecido, é a da chamada "modernidade líquida", que aborda a "liquidez" das relações sociais na modernidade e pós-modernidade e abriu um vasto campo de estudos para diferentes áreas, como a filosofia, a cultura, o relacionamento humano. A teoria tem foco no individualismo e na efemeridade das relações – e até mesmo na revolução que as mídias digitais trouxeram para a sociedade moderna.
Mesmo aos 91 anos, Bauman não parava de trabalhar em livros e teorias, sendo um dos maiores filósofos e sociólogos do fim do século 20 e início do século 21. Grande parte das suas obras foram traduzidas para o português e o seu último livro lançado no Brasil foi A riqueza de poucos beneficia todos nós?.
Casado com Janine Lewinson-Bauman desde a época do pós-guerra, o filósofo deixa três filhas.
Com informações da Agência Brasil


CINEMA - Novo filme de Ken Loach é um grito aflito por mais humanidade

na Rede Brasil Atual

Inspirado em fatos reais, 'Eu, Daniel Blake' retrata as aberrações do sistema de ajuda social da Inglaterra e escancara desigualdade, burocracia e a falta de empatia dos agentes do Estado

por Xandra Stefanel

Daniel
Apesar das humilhações que Daniel sofre, ele não se deixa abater e luta para manter a dignidade


Daniel Blake (Dave Johns) é um carpinteiro de 59 anos que, depois de ter um problema no coração, é aconselhado pelos médicos a não voltar ao trabalho. Para sobreviver, procura ajuda social, mas o governo britânico o julga apto para retomar suas atividades. Ele depara então com uma burocracia sem fim do sistema previdenciário. Em uma de suas tentativas de solucionar o problema, Daniel acaba conhecendo Katie (Hayley Squires), mãe monoparental de duas crianças que não tem condições de se manter. Esta é a história do novo filme do cineasta britânico Ken Loach, Eu, Daniel Blake, que estreou esta semana no Brasil.
Ao defender a desconhecida Katie em uma das idas ao Departamento de Trabalho e Pensões, da Inglaterra, Daniel acaba se tornando como um pai para ela e um avô para as crianças. Eles se unem para ajudar um ao outro e esta relação acaba sendo um respiro de ternura dentro de uma engrenagem fria e burocrática que ambos têm de enfrentar.
Repleto de crítica ao sistema e ao desmonte da previdência, o longa-metragem vencedor de Palma de Ouro no último festival de Cannes é um grito que denuncia as desigualdades sociais de seu país e as injustiças engendradas pelo sistema capitalista. A trama mostra uma burocracia kafkiana cega, que dificulta ainda mais a vida dos que mais precisam de auxílio para sobreviver. Apesar das humilhações sofridas, Daniel não se deixa abater e luta para manter a dignidade.
O roteiro de Paul Laverty surgiu a partir de histórias coletadas em bancos de alimentos e de empregos, além de alojamentos onde frequentemente encontravam as geladeiras vazias. Estão nas telas os esquecidos pelo sistema e as primeiras vítimas de todas as crises econômicas. Com precisão documental, diretor descreve os métodos de sabotagem do aparelho governamental: a voz apática ao telefone, atendentes que mais parecem robôs, mal humor e descaso com os problemas dos cidadãos.
Em entrevista ao jornal El País, Loach analisa a situação social apresentada pelo filme como uma consequência do “desenvolvimento” do capitalismo. “É um processo inevitável, é a forma como o capitalismo se desenvolveu. As grandes corporações dominam a economia e isso cria uma grande leva de pessoas pobres. O Estado deve apoiá-las, mas não quer ou não tem recursos. Por isso cria a ilusão de que, se você é pobre, a culpa é sua. Porque você não preencheu seu currículo direito ou chegou tarde a uma entrevista. Montam um sistema burocrático que te pune por ser pobre. A humilhação é um elemento-chave na pobreza. Rouba a sua dignidade e a sua autoestima”, afirma.
Loach sabe que um filme apenas não muda a realidade, mas com Eu, Daniel Blake acaba suscitando reflexões capazes de promover mudanças significativas.
CartazEu, Daniel Blake
Título original: I, Daniel BlakeDireção: Ken Loach
Roteiro: Paul Laverty
Produção: Rebecca O'Brien
Elenco: Dave Johns, Hayley Squires
Fotografia: Robbie Ryan
Edição: Jonathan Morris
Música: George Fenton
Figurino: Joanne Slater
Gênero: Drama
País: Inglaterra
Ano: 2016
Duração: 97 minutos


sábado, 7 de janeiro de 2017

Manuela Carmena, prefeita de Madri: a política tem que ser ocasional, não uma carreira

no Socialista Morena

manuelamujica
Manuela Carmena, Pepe Mujica e sua mulher, Lucía Topolanski, em Madri: Foto: Elvira Megias/Ahora Madrid)

Por Lucas Rohan, de Lisboa

No início do ano, a prefeita da capital espanhola, da coligação de esquerda Ahora Madrid, causou o maior rebuliço ao revolucionar a tradicional Cavalgada de Reis, a grande data infantil do país. São os reis magos, e não o papai Noel, que entregam os presentes às crianças por lá. Pois Manuela Carmena resolveu dar umas tintas de realidade à festa e colocou um rei Baltazar negro de verdade, sem black face e vestido com trajes genuinamente africanos -afinal, se existiu, o rei mago possivelmente era negro.
Não foi a única polêmica de Manuela, que se considera uma “política vocacional” e não profissional. Aos 72 anos, foi eleita em 2015 como candidata independente por Ahora Madrid, que reuniu partidos de esquerda, entre eles o Podemos, e movimentos sociais, e pôs fim a 24 anos de hegemonia do neoliberal Partido Popular (PP) na capital espanhola. Regularizou a situação dos okupas que invadiram vivendas públicas sem uso, oferecendo-lhes a possibilidade de alugar os imóveis; rompeu o contrato com a agência Standard’s and Poors, que auditava a prefeitura madrilenha; autorizou o “dia sem maiô” nas piscinas municipais; criou um portal para ouvir a opinião da população sobre as mudanças no urbanismo da cidade; e fez declarações sobre o clitóris e a masturbação com a maior naturalidade.
mujicamanuela
(Manuela com Mujica em seu Fusca azul)
Uma foto do ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica levando Manuela para um churrasco em Montevidéu em seu Fusca azul viralizou na internet. A prefeita não nega que o uruguaio é uma de suas inspirações. “O senhor Mujica é um político absolutamente invejável”, diz. Agnóstica, ex-militante do Partido Comunista Espanhol, advogada dos trabalhadores presos na ditadura de Francisco Franco, juíza por mais de 30 anos, Manuela admite que trabalha num “ambiente masculino” e defende que “a política se feminize”. Pensando nisso, sua administração criou uma Escola de Igualdade Para Homens e Mulheres, com formação na área de gênero e empoderamento.
No início de seu mandato na prefeitura de Madri, começava também a fase mais aguda da crise dos refugiados. Mandou colocar uma faixa com os dizeres em inglês refugees welcome (bem-vindos refugiados) na fachada do Palácio de Cibeles, sede da administração e um dos principais edifícios históricos do centro de Madri. A ação correu o mundo através das redes sociais. Mais de um ano depois, com a crise dos refugiados ainda em curso, o cartaz gigante de boas-vindas continua lá.
madrirefugiados
Na contramão da esquerda tradicional, em um ponto o discurso da prefeita madrilenha se aproxima das novas caras da direita: defende que a política seja “ocasional”, e não uma carreira profissional, como tem sido para tantos. Manuela Carmena falou com o repórter Lucas Rohan pelo telefone. Leia.
– A senhora é considerada uma das principais figuras da chamada “nova política”. Mas o que é essa nova política para a senhora? Que diferenças há entre a senhora e os políticos profissionais?
– Bom, creio que a diferença fundamental é que eu sou uma pessoa cuja carreira nunca teve a ver com a política. Fui juíza até que me aposentei antecipadamente. E justo nesse período, que é um verdadeiro paraíso, de uma aposentadoria quando você está bem e com muita capacidade de trabalho, surgiu a possibilidade de me dedicar durante um tempo à política, que eu considero política vocacional.
– Mas o que seria essa nova política?
– Eu diria que tem muito a ver com ser um político ocasional, de ser uma política que não seja de carreira, uma política que tente que as estruturas clássicas, que se afastaram tanto da política, que se convertam em algo mais flexível, que permita a combinação da democracia representativa com a democracia política.
– A senhora se propôs a fazer um governo aberto e para isso foi criado o portal Decide Madrid. Como foi o primeiro ano da experiência?
– Nesse primeiro ano nós verificamos que houve um número representativo de acessos ao portal. No entanto, ainda não alcançamos a meta necessária para que a partir daí as propostas que os cidadãos fizeram lá sejam submetidas a um referendo. Se tivermos dez por cento do censo geral já poderemos ter uma proposta submetida a referendo em breve.
– Há algum exemplo de proposta cidadã enviada pelo portal que tenha se convertido em realidade?
– Há algumas que já se converteram em realidade porque foram medidas que tomamos na administração. O mais determinante é que uma das propostas que será discutida é a criação de um bilhete único que possa ser usado não somente em todos os transportes públicos de Madri, mas também das cidades da comunidade.
– Mas a senhora acredita que um portal é suficiente para garantir um governo aberto?
– Não, por isso tomamos muitas outras medidas que, diria eu, são tanto ou mais indicativas de que este é um governo aberto. Nós implantamos a transparência de todas as nossas agendas, assim que praticamente todo o trabalho que a administração municipal faz está disponível na internet e pode ser acessado por qualquer pessoa. Ainda que pareça surpreendente, qualquer cidadão pode conhecer 80% dos dados com os quais trabalhamos.
– A senhora esteve em viagem pela América Latina, onde se encontrou com o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica. Aceita o fato de que Mujica e a senhora são similares? A sua atuação política tem alguma inspiração nele?
– O senhor Mujica é um político absolutamente invejável. Ele sim é um político profissional, mas é exemplar. O que ele tem demonstrado em todas as suas atividades políticas indica as virtudes necessárias para o desenvolvimento de um trabalho de liderança política.
– Ainda sobre a América Latina, o que a senhora viu lá em termos de política?
– A Espanha e a América Latina ainda estão muito perto. Para mim o que é interessante desse momento da América Latina é o salto que deu. Acredito que a região viveu um desenvolvimento econômico muito importante atualmente. Após sofrerem com as grandes ditaduras com as responsabilidades históricas que devem ter, os países superaram, vieram as democracias e elas possibilitaram o desenvolvimento econômico. É verdade que se trata de um desenvolvimento que ainda é muito desigual, mas está gerando fontes de ingresso que são muito interessantes. Creio ser muito relevante ver como a América Latina está melhorando.
– No Brasil recentemente houve uma turbulência política, culminando com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, que muitos dizem que se tratou de um golpe. O que a senhora pensa sobre isso?
– Não conheço bem a realidade brasileira, não me atreveria a dizer ou muito menos fazer um diagnóstico. No entanto, acredito que a situação atual é lamentável, na qual parece que há uma grande diferença entre o que os eleitores brasileiros quiseram ao votar e o que está sendo feito agora pelos que detêm o poder político.
– Falando nisso, a presidente do Brasil disse muitas vezes que há um pouco de machismo no golpe contra ela, que a política é um lugar de homens branco e ricos. A senhora acredita que a política ainda é machista?
– A política continua sendo muito masculina e por isso eu acredito que é importante que as mulheres participem da política, não tanto mulheres no sentido biológico, mas também pessoas que assumam uma cultura diferente de política com relação à mulher. Eu acredito que sim, é necessário que a política se feminize.
– Uma das ações do seu primeiro ano de governo em Madri que mais chamaram a atenção fora da Espanha foi a recepção aos refugiados. A imagem da frase de boas-vindas no Palácio de Cibeles (sede do governo municipal, onde foi colocada uma faixa “refugees welcome”) foi vista em todo o mundo…
– Há muitas cidades europeias que estão se posicionando pedindo aos Estados que mudem a política diante dessa terrível situação que muitas pessoas estão vivendo, que tem que fugir porque não há outro remédio para salvar suas vidas da guerra na Síria. Muitas cidades, entre elas Madri, fizeram tudo o que foi possível. E continuaremos fazendo para acabar com esse calvário dos refugiados. Continuaremos buscando atender as necessidades, cuidar e fazer com que essas pessoas esqueçam o terror que tiveram que viver.


terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Dilma sobre chacina: Machismo encontrou eco no pensamento conservador

no Portal Vermelho


 


A presidenta salientou que "a misoginia mata todos os dias" e "matou Isamara Filier, uma criança, outras oito mulheres e três homens".

"O momento é de fortalecer a política de direitos humanos para defender as mulheres da cultura do ódio e da violência pelo único motivo de serem mulheres. 

Devemos defender com firmeza a Lei Maria da Penha e fazer valer a Lei do Feminicídio para que a impunidade não seja mais escusa para novas mortes", completou a presidenta.

O técnico de laboratório Sidnei Araújo matou a tiros a ex-mulher, o filho de 8 anos, outras 10 pessoas da família dela e em seguida se matou. Em carta que enviou aos amigos antes de cometer o crime, o assassino destila ódio contra os direitos humanos e atribui tudo à lei "vadia da Penha".

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

ILEGÍTIMO - Temer mente: reforma enfraquecerá trabalhador, diz CUT

na Rede Brasil Atual

Central defende mudanças, mas não retrocessos. PL 6.787 abre caminho para oportunistas e, ao mirar a destruição dos sindicatos, só fortalece os setores patronais

por Isaías Dalle, da CUT Nacional 

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Assembleia de trabalhadores metalúrgicos: assembleias é que devem decidir questões sobre condições de trabalho

São Paulo – O Natal deste ano foi ruim para a maioria dos brasileiros. Um dos responsáveis pela ausência de alegria nestas Festas é o Projeto de Lei (PL) 6.787/2016, anunciado dia 22 de dezembro pelo governo Temer que o chamou de Reforma Trabalhista.
O sentido geral do projeto é baratear ainda mais o valor do trabalho dos brasileiros e brasileiras, garantindo aos empresários e especuladores em geral melhores condições de aumentar seus lucros.
Elaborado em gabinetes, sem participação real dos representantes dos trabalhadores e trabalhadoras, um de seus principais elementos é permitir que negociações isoladas, entre empresas e empregados ou entre setores econômicos e seus trabalhadores, se sobreponham à lei existente, mesmo em casos que signifiquem redução de direitos para quem vive de salário.
A embalagem dada por Temer até parece sofisticada e bonita para os mais desatentos. Mas o fato é que a reforma representa um ataque à já frágil estrutura trabalhista brasileira e vai prejudicar a maioria, segundo análises da subseção Dieese da CUT Nacional, de dirigentes sindicais e de especialistas em Direito do Trabalho.
Mentiras e balelas
A primeira mentira do governo, ao anunciar e defender o projeto, é de que as "centrais" foram ouvidas. A CUT e a CTB foram logo a campo para negar que tenham participado de qualquer conversa a respeito com a equipe do Temer. Havia, sim, dirigentes sindicais presentes ao anúncio das medidas no Palácio do Planalto. Mas os que estiveram lá não representam o universo trabalhista brasileiro.
"Ao contrário do que disse o governo Temer, a CUT não foi chamada em momento algum para negociar mudanças na legislação trabalhista. A CUT é contra toda e qualquer retirada de direito da classe trabalhadora e lutará para que isso não aconteça. Não vendemos direitos dos trabalhadores", afirmou o presidente da Central, Vagner Freitas, em entrevista à Rede Brasil Atual. Em nota oficial, um dia antes, a CUT já havia feito a mesma denúncia.
Outra mentira, facilmente detectável, é a de que o papel negociador dos sindicatos vai ser fortalecido com a proposta do governo não eleito. O PL prevê que, em toda a empresa que tiver mais de 200 trabalhadores, será eleito um representante dos trabalhadores. Os candidatos não precisarão ser sindicalizados.
Mas a maior parte das empresas do país ficará de fora dessa exigência. Segundo o IBGE, a média de trabalhadores por empresa no Brasil, em 2015, era de 27 empregados. O maior problema, no entanto, refere-se ao fato de que esses representantes não precisarão ter origem nas bases de sua categoria, pois a atividade sindical, conforme expressado no PL, é desnecessária.
"Isso vai abrir espaço para que as empresas, os patrões, usem de artifícios para escolher esses representantes", pontua Vagner Freitas. "O representante tem de vir da base, escolhido por seus companheiros e companheiras de trabalho. Do jeito que o governo quer, isso poderá, ao contrário, ser feito à revelia do sindicato", diz o presidente da CUT, antevendo que os setores patronais é que sairão fortalecidos dessas eleições de representações de trabalhadores dentro das empresas.
Irônico é o governo que pretende destruir o legado trabalhista de Getúlio Vargas tentar usar da mesma artimanha de que Getúlio foi sempre acusado por seus detratores: manietar os sindicatos, intervindo nas decisões, com a ajuda das empresas. "Negociações têm de acontecer em condições de igualdade, e o resultado delas precisa ser aprovado em assembleia", crava o presidente da CUT. O PL de Temer sequer cita a palavra "assembleia".
Vagner Freitas faz questão de frisar que a CUT não é contra atualizações na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), muito menos contra a negociação soberana entre trabalhadores e patrões.
"O debate sobre modernização precisa acontecer", afirma. "Porém, isso tem de partir de um marco legal que impeça a destruição de conquistas já alcançadas", afirma Freitas. O PL 6787 fala expressamente na "ultratividade" das futuras negociações. Isso significa, grosso modo, que as leis ou convenções e contratos coletivos anteriores podem ser revogados a qualquer momento, assim que as partes decidirem negociar.
Negociação, sem luta, não
O presidente da CUT lembra que, desde sua fundação, a Central defende a renovação da estrutura sindical oficial. Muitos de seus sindicatos, entre eles alguns dos maiores e mais influentes, já mudaram práticas através de luta e negociação. Entidades cutistas construíram ao longo de décadas a representação por local de trabalho – cujos integrantes são escolhidos nas urnas, em cada empresa, e passam a integrar a direção do sindicato –; conseguiram consolidar a negociação nacional das convenções coletivas, além de devolver o imposto sindical para seus filiados; e solidificaram comissões sindicais por escola, inclusive com a participação de pais e alunos, entre outras conquistas registradas pelas bases.
"Mas para tanto é preciso renovar de fato a estrutura sindical como um todo, acabar com os sindicatos de fachada que não fazem luta e só vivem de receber o imposto e fazer acordos ruins. Neste sentido, devemos retomar os debates do Fórum Nacional do Trabalho, que produziu uma proposta de reforma sindical em consenso com governo, empresários e sindicatos trabalhistas em 2005".
Inconstitucionalidades
O que o governo propõe (e que Temer chamou de "paz entre patrões e empregados") é algo como um duelo entre um lutador de MMA e um maratonista – ou uma corrida de maratona entre os dois. "É preciso haver condições de igualdade", afirma Freitas.
Já o advogado trabalhista José Eymard Loguercio lembra que no Brasil ainda não existe lei contra práticas antissindicais, o que já permite a ação empresarial para enfraquecer e dividir os sindicatos. E a coisa deve piorar se o projeto de reforma trabalhista for adiante. "O governo quer institucionalizar algo que não existe por aqui, que é a negociação por empresa. Isso vai fragmentar mais ainda a luta da classe trabalhadora. Nossa principal arma de negociação são as convenções coletivas, em que categorias ou setores inteiros sentam à mesa com os patrões", avalia.
Na opinião de Eymard, o fato de o projeto não ter sido baixado por meio de uma medida provisória, que entraria em vigor imediatamente, ao menos "nos livra daquilo que seria o fim da picada". Para o advogado, é preciso intensificar a pressão sobre o Congresso e fazer um amplo trabalho de conscientização dos trabalhadores para alterar pontos do PL.
Do ponto de vista do trâmite legislativo, ele crê que é preciso concentrar esforços em combater as inconstitucionalidades do PL. Uma delas é o enfraquecimento, ou o quase banimento, do papel moderador da Justiça do Trabalho.
Em seu artigo 611-A, parágrafo primeiro, o PL da Reforma Trabalhista cita, genericamente, o "princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva". Outra inconstitucionalidade flagrante, aponta Eymard, é o desrespeito à máxima de que as negociações devem sempre prever a melhoria das condições de vida em geral da população. "Nosso problema é que quem tem decidido o que é ou não constitucional é o STF", alerta.
Tintas ditatoriais
"O golpismo quer enfraquecer os sindicatos e precarizar ainda mais a vida do trabalhador e da trabalhadora", diz Freitas. O projeto de Temer lembra o do general Ernesto Geisel, que em 1974 baixou lei que instituía o trabalho temporário e reduzia direitos. Naquele momento, o Brasil vivia o fim do chamado "milagre econômico", com a explosão da dívida em dólar e a crise do petróleo. "Hoje é a mesma coisa. A economia em baixa, uma crise política e uma instabilidade jurídica enormes não criam o ambiente de confiança para negociar uma mudança desse tamanho. O pacote é a cara do golpismo", sentencia o dirigente.