Moacir Gadotti – USP; IPF
gadotti@paulofreire.org
Resumo: Resgatar o papel da escola e do professor no século XXI, à luz da obra de Paulo Freire,
é o objeto deste ensaio, que considera a escola como um espaço de relações sociais e humanas e a
sociedade atual como aquela que oportuniza múltiplas oportunidades de aprendizagem.
Tomando
como referencial a obra de Paulo Freire, a tarefa da escola é formar para e pela cidadania, visando
construir os pilares de um outro mundo possível, educando para uma cultura da paz e da
sustentabilidade, na linha proposta pelo Fórum Social Mundial e o Fórum Mundial de Educação.
INTRODUÇÃO
A única maneira que alguém tem de aplicar, no seu contexto,
alguma das proposições que fiz é exatamente refazer-me, quer
dizer, não seguir-me. Para seguir-me, o fundamental e não me
seguir.
Paulo Freire, Por uma pedagogia da pergunta (p. 41).
Confesso que, cada vez mais, gostaria de participar de congressos apenas como
ouvinte. Com a idade e a experiência, alarga-se o campo da nossa ignorância e
precisamos ouvir mais, precisamos contar com o outro para superar a nossa
“incompletude” (Paulo Freire).
Mas, o pedido do querido amigo e irmão Benno Sander,
companheiro de utopias passadas e presentes, é, para mim, uma convocação. Sinto-me
novamente convocado para um novo desafio que aceito honrado e com prazer. O desafio
que ele nos propôs é o de pensar a escola do século 21 reinventada a partir da reinvenção
de Freire.
Lembro-me de Paulo como alguém que sempre falava bem da escola.
Com base
na minha leitura de Paulo Freire, em particular do livro Pedagogia da autonomia (São
Paulo, Cortez, 1997), gostaria de falar da escola do século 21, como um lugar especial,
um lugar de esperança e de luta. Já falamos muito mal da escola.
Costumamos reclamar
dos nossos professores como se eles fossem os responsáveis por todos os males da
humanidade. Mas é na escola que passamos os melhores anos de nossas vidas, quando
crianças e jovens. A escola é um lugar bonito, um lugar cheio de vida, seja ela uma escola
com todas as condições de trabalho, seja ela uma escola onde falta tudo. Mesmo faltando
tudo, nela existe o essencial: gente. Professores e alunos, funcionários, diretores. Todos
tentando fazer o que lhes parece melhor. Nem sempre eles têm êxito, mas estão sempre
tentando.
Por isso, precisamos falar mais e melhor de nossas escolas, de nossa educação.
A ESCOLA COMO ESPAÇO DE RELAÇÕES E APRENDIZAGEM
A escola é um espaço de relações. Nesse sentido cada escola é única, fruto de sua
história particular, de seu projeto e de seus agentes. Como lugar de pessoas e de relações,
é também um lugar de representações sociais. Como instituição social ela tem tanto
contribuído para a manutenção quanto para a transformação social.
Numa visão
transformadora ela tem um papel essencialmente critico e criativo.
A escola não é só um lugar para estudar, mas para se encontrar, conversar,
confrontar-se com o outro, discutir, fazer política. Deve gerar insatisfação com o já dito, o
já sabido, o já estabelecido. Só é harmoniosa a escola autoritária.
A escola não é só um
espaço físico. É, acima de tudo, um modo de ser, de ver. Ela se define pelas relações
sociais que desenvolve. E se ela quiser sobreviver como instituição, no século 21, precisa
buscar o que é específico dela numa sociedade de redes e de movimentos que é a
sociedade atual.
A escola não pode mudar tudo e nem pode mudar a si mesma sozinha.
Ela está intimamente ligada à sociedade que a mantém. Ela é, ao mesmo tempo, fator e
produto da sociedade. Como instituição social, ela depende da sociedade e para mudar-se
depende também da relação que mantém com outras escolas, com as famílias,
aprendendo em rede com elas, estabelecendo alianças com a sociedade, com a
população.
Não somos seres determinados, mas, como seres inconclusos, inacabados e
incompletos, somos seres condicionados. O que aprendemos depende das condições de
aprendizagem. Somos programados para aprender, mas o que aprendemos depende do
tipo de comunidade de aprendizagem a que pertencemos.
A primeira comunidade de
aprendizagem a que pertencemos é a família, o grupo social da infância. Daí a
importância desse condicionante no desenvolvimento futuro da criança. A escola, como
segunda comunidade de aprendizagem da criança, precisa levar em conta a comunidade
não-escolar dos aprendentes.
Quando os pais, mães, ou seus responsáveis, acompanham a vida escolar de seus
filhos, aumentam as chances da criança aprender. Os pais precisam também continuar
aprendendo. Se qualidade de ensino é aluno aprendendo, é preciso que ele saiba disso: é
preciso “combinar” com ele, envolvê-lo como protagonista de qualquer mudança
educacional. O fracasso de muitos projetos educacionais está no fato de desconhecer a
participação dos alunos. O aluno aprende quando o professor aprende; ambos aprendem
quando pesquisam.
Como diz Paulo Freire em sua Pedagogia da autonomia (p. 32), “não
há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no
corpo do outro. Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque
busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar,
constatando, intervenho, intervindo educo e me educo.
Pesquiso para conhecer o que
ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade”.
Vivemos hoje numa sociedade de múltiplas oportunidades de aprendizagem,
chamada de “sociedade aprendente”, na qual as conseqüências para a escola, para o
professor e para a educação em geral, são enormes. Torna-se fundamental aprender a
pensar autonomamente, saber comunicar-se, saber pesquisar, saber fazer, ter raciocínio
lógico, aprender a trabalhar colaborativamente, fazer sínteses e elaborações teóricas,
saber organizar o próprio trabalho, ter disciplina, ser sujeito da construção do
conhecimento, estar aberto a novas aprendizagens, conhecer as fontes de informação,
saber articular o conhecimento com a prática e com outros saberes.
Nesse contexto de impregnação da informação, o professor é muito mais um
mediador do conhecimento, um problematizador. O aluno precisa construir e reconstruir
o conhecimento a partir do que faz. Para isso, o professor também precisa ser curioso,
buscar sentido para o que faz e apontar novos sentidos para o quefazer dos seus alunos.
Ele deixará de ser um lecionador para ser um organizador do conhecimento e da
aprendizagem.
Poderíamos dizer que o professor se tornou um aprendiz permanente, um
construtor de sentidos, um cooperador, e, sobretudo, um organizador da aprendizagem.
Não há ensino-e-aprendizagem fora da “procura, da boniteza e da alegria”, dizia-nos
Paulo Freire. A estética não está separada da ética. E elas se farão presentes quando
houver prazer e sentido no conhecimento que construímos. Por isso, precisamos também
saber o quê, por que, para que estamos aprendendo.
A ESCOLA COMO ESPAÇO DA CIDADANIA E DA DEMOCRACIA
Ninguém nega a importância da escola para a formação da cidadania e como
forma de se preparar para o trabalho. Entretanto, muitos se perguntam para que servem
esses anos de estudo. Por isso, saber distinguir o essencial do secundário é muito
importante; saber distinguir o estrutural do conjuntural é decisivo. E saber aonde
queremos chegar é crucial. Educar para quê? Com que mundo sonhamos? Como educar
para um outro mundo possível?
A escola é conseqüência de um longo processo de
compreensão/realização do que é essencial, do que é permanente, e do que é transitório
para que um cidadão exerça criticamente a sua cidadania e construa um projeto de vida
considerando as dimensões individual e coletiva para viver bem em sociedade.
Paulo Freire foi um defensor da escola pública que é a escola da maioria, das
periferias, dos cidadãos que só podem contar com ela.
A escola pública do futuro, numa
visão cidadã freireana, tem por objetivo oferecer possibilidades concretas de libertação
para todos. Ele entendia a escola pública como "escola pública popular" (grande mote de
sua gestão na Prefeitura de São Paulo) como "escola cidadã", definida por ele, mais tarde,
como "escola de companheirismo que vive a experiência tensa da democracia", como
expressão concreta da “escola pública popular”.
Como o demonstra José Eustáquio Romão em várias de suas obras, a escola
cidadã é o resultado de um movimento crescente de renovação educacional tal como o
movimento da Escola Nova no final do século XIX, um movimento enraizado nas
experiências das gestões populares e democráticas da escola, inspiradas na pedagogia
freiriana. Caracteriza-se pelo pluralismo de instituições e de projetos políticopedagógicos.
Na Prefeitura Municipal de São Paulo, Paulo Freire defendeu a Escola Pública
Popular como escola autônoma, escola cidadã, mas teve dificuldades na sua
implementação, inclusive por divergências na sua equipe e porque essa não era a
concepção majoritária no Partido dos Trabalhadores, que havia conquistado o governo
municipal. Penso que o subtítulo do seu livro Pedagogia da autonomia, “saberes
necessários à prática educativa", pode ser traduzido como “os saberes necessários ao
educador para a construção da escola autônoma, da escola cidadã”. Porque esses saberes
referem-se a uma pedagogia da educação, como prática da liberdade e da autonomia.
Essa ideia ele repetiu diversas vezes no Instituto Paulo Freire, um dos espaços onde mais
ele analisou e refletiu sobre os últimos temas que o preocuparam, inclusive o tema da
ecologia, com seu querido amigo Francisco Gutiérrez.
Considero que o título "pedagogia da autonomia", é uma espécie de reflexão
crítica sobre o que conseguiu e o que não conseguiu realizar na Prefeitura Municipal de
São Paulo e que, no ano em que ele a publicou (1997), representava uma "reinvenção" do
que ele havia feito como Secretário. Isso em nada tira a importância da sua obra como
Secretário.
A repercussão reinventada do que ele fez pode ser percebida em numerosas
prefeituras que adotaram, posteriormente, as mesmas prioridades que a gestão dele em
São Paulo adotou. Na verdade ele se identificava muito com essas novas experiências de
gestão que estavam retomando o que ele havia feito, sem copiá-lo.
Paulo sentia-se constrangido, às vezes, quando alguns "seguidores" repetiam
mecanicamente o que havia escrito, dito ou feito. Ele era radicalmente contrário aos
"repetidores de idéias". Sempre retomava suas idéias a partir do contexto onde se
encontrava e, assim, nos deu exemplo de que não era um repetidor de suas próprias
idéias. Era coerente com elas, sem repeti-las. Daí que, para mim, Pedagogia da
autonomia representa não só seu último livro, mas um dos livros mais importantes que
ele escreveu. Sem dúvida, o mais importante para a formação do professor e para o gestor
público. Em sua última mensagem ele nos chama a atenção para a importância da
formação do professor para a autonomia da escola.
Para ele, a autonomia é uma
conquista. Não é doação. A autonomia não distanciará as escolas de um padrão nacional
de qualidade. Ao contrário, quanto maior for a autonomia da escola, maior será a sua
capacidade de chegar a esse padrão.
O professor precisa saber muitas coisas para ensinar. Mas, o mais importante não
é o que é preciso saber para ensinar, mas, como devemos ser para ensinar. O essencial
é não matar a criança que existe dentro de nós. Matá-la seria uma forma de matar o aluno
que está à nossa frente. O aluno só aprenderá quando tiver um projeto de vida e sentir
prazer no que está aprendendo. O aluno quer saber, mas nem sempre quer aprender o que
lhes é ensinado.
Devemos aprender com a rebeldia do aluno, que é um sinal de sua
vitalidade, um sinal de sua inteligência e de seu desejo de apender. Ela deve ser
canalizada para a criatividade social e não para a violência.
Educar é sempre impregnar de sentido todos os atos da nossa vida cotidiana. É
entender e transformar o mundo e a si mesmo. É compartilhar o mundo: compartilhar
mais do que conhecimentos, idéias... compartilhar o coração. Numa sociedade violenta
como a nossa, é preciso educar para o entendimento. Educar é também desequilibrar,
duvidar, suspeitar, lutar, tomar partido, estar presente no mundo. Educar é posicionar-se,
não se omitir.
Educar é reproduzir ou transformar, repetir servilmente aquilo que foi, optar pela
segurança do conformismo, pela fidelidade à tradição, ou, ao contrário, fazer frente à
ordem estabelecida e correr o risco da aventura; querer que o passado configure todo o
futuro ou partir dele para construir outra coisa. Por tudo isso, ser professor é um
privilégio. Não podemos imaginar um futuro sem ele.
Um dos primeiros saberes da
prática educativo crítica, segundo Paulo Freire:
É o saber do futuro como um problema e não como inexorabilidade. É o saber da
História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo
está sendo" (Pedagogia da autonomia, p. 85).
UM OUTRO MUNDO É POSSÍVEL
Não se pode entender o pensamento pedagógico de Paulo Freire descolado de um
projeto social e político.
Por isso, não se pode "ser freireano" apenas cultivando suas
idéias. Isso exige, sobretudo, comprometer-se com a construção de um "outro mundo
possível". Sua "pedagogia sem fronteiras" é um convite para transformar o mundo. Esta
afirmação de Paulo Freire tem tudo a ver com o lema do Fórum Social Mundial: "um
outro mundo é possível". É para construir esse outro mundo possível que Paulo Freire
propôs a sua “pedagogia da luta”, expressão que define a essência de sua obra segundo
Carlos Alberto Torres. É para isso que ensinamos e aprendemos: colocamos nosso saber à
disposição de uma causa. O Fórum Social Mundial (FSM) não teria sido criado no
Brasil, em 2001, sem a trajetória de mais de meio século de lutas do movimento da
educação popular, do qual Paulo Freire é um dos grandes inspiradores.
Dentre os inúmeros fóruns gerados a partir do FSM, destaca-se, sem dúvida, o
Fórum Mundial de Educação. Contra a ofensiva neoliberal, crescente no neste século,
também no campo da educação, o Fórum Mundial de Educação aprovou, em sua quinta
edição, realizada em Nairóbi (Quênia), no final de janeiro de 2007, uma Plataforma
Mundial em defesa do direito à educação pública e contra a mercantilização da educação.
Nesse contexto, o Fórum Mundial de Educação representa uma força real de resistência
às ameaças das políticas neoliberais e, ao mesmo tempo, uma esperança de construção da
educação necessária para um "outro mundo possível".
O que é educar para um outro mundo possível? Educar para um outro mundo
possível é visibilizar o que foi escondido para oprimir, dar voz aos que não são escutados;
é educar para conscientizar, para desalienar, para desfetichizar, para desmercantilizar a
vida; é educar para a emergência do que ainda não é, o ainda-não, a utopia; é também
educar para a ruptura, para a rebeldia, para a recusa; é fazer da educação, tanto formal,
quanto não-formal, um espaço de formação crítica e cidadã, e não apenas de formação de
mão-de-obra para o mercado; é inventar novos espaços de formação alternativos ao
sistema formal de educação e negar a sua forma hierarquizada numa estrutura de mando e
subordinação; é educar para mudar radicalmente nossa maneira de produzir e de
reproduzir nossa existência no planeta, portanto, é uma educação para a
sustentabilidade.
Paulo Freire deixou marcas profundas em muita gente, enquanto pessoas humanas
e enquanto profissionais. Não apenas pelas suas idéias, mas, sobretudo, pelo seu
compromisso ético-político. Foi assim que, em Los Angeles, no dia 12 de abril de 1991,
numa reunião com educadores e amigos, entre eles Carlos Alberto Torres, Paulo Freire
ficou entusiasmado com a idéia da criação de um instituto, já sugerida no Brasil por José
Eustáquio Romão e Walter Esteves Garcia e, mais tarde, secundada por Francisco
Gutiérrez. Seu desejo era encontrar uma forma de reunir pessoas e instituições do mundo
todo que, movidas pela mesma utopia de uma educação como prática da liberdade,
pudessem refletir, trocar experiências, desenvolver práticas pedagógicas nas diferentes
áreas do conhecimento que contribuíssem para a construção de um mundo com mais
justiça social e solidariedade.
Assim surgiu o Instituto Paulo Freire (IPF).
Hoje, Paulo Freire já não está entre nós, ou melhor, está em todos os nós da rede
que teceu. O IPF está hoje presente em mais de vinte países, buscando manter viva a sua
luta, continuando e reinventado Freire. Não se pode continuar Freire sem reinventá-lo.
Para esta tarefa não designou uma ou outra pessoa ou instituição. Esta tarefa ele a deixou
a todos nós, a todas e a todos os que estão comprometidos com a causa dos oprimidos.
Para nós, do IPF, Paulo Freire continua sendo, no século 21, a grande referência
de uma educação como prática da liberdade. Ele pode ser comparado a muitos
educadores do século XX, mas nenhum, melhor do que ele, formulou uma pedagogia dos
silenciados e da responsabilidade social, ao mesmo tempo dos oprimidos, dando-lhes
voz, e daqueles que não são oprimidos, mas estão comprometidos com eles e com eles
lutam. Colocar Paulo Freire no passado é não querer mexer na cultura opressiva de hoje.
POR QUE CONTINUAMOS LENDO PAULO FREIRE?
Alguns certamente gostariam de deixá-lo para trás na história das idéias
pedagógicas e outros gostariam de esquecê-lo, por causa de suas opções políticas. Ele não
queria agradar a todos. Mas havia uma unanimidade compartilhada por todos os seus
leitores e todos os que o conheceram de perto: o respeito à pessoa. Paulo sempre foi uma
pessoa cordial, generosa, muito respeitosa. Podia discordar das idéias, mas respeitava a
pessoa, mostrando um elevado grau de civilização.
A pedagogia do diálogo que pensou e praticou fundamenta-se numa filosofia
pluralista. O pluralismo não significa ecletismo ou posições "adocicadas", como ele
costumava dizer. Significa ter um ponto de vista e, a partir dele, dialogar com os demais.
É o que mantinha a coerência da sua prática e da sua teoria. Paulo era, acima de tudo, um
humanista. Seria a única forma de "classificá-lo" hoje.
É preciso reiterar que a força da obra de Paulo Freire não está só na sua teoria do
conhecimento, mas em ter insistido na ideia de que é possível, urgente e necessário
mudar a ordem das coisas. Ele não só convenceu tantas pessoas em tantas partes do
mundo pelas suas teorias e práticas, mas também porque despertava nelas a capacidade
de sonhar com uma realidade mais humana, menos feia e mais justa. Como legado, nos
deixou a utopia.
Estamos diante de um educador que não se submeteu a correntes e tendências
pedagógicas e criou um pensamento vivo orientado apenas pelo ponto de vista do
oprimido. Essa é a ótica básica de sua obra, à qual foi fiel a vida toda: a perspectiva do
oprimido. Esse compromisso nós podemos encontrar já na dedicatória do seu livro mais
importante, Pedagogia do oprimido, escrito no Chile, em 1968:
Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se,
com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam.
A pergunta que podemos fazer hoje é a seguinte: esse ponto de vista é ainda
válido, no século 21? Caso não seja válido, já não haveria mais porque continuar lendo
Paulo Freire. Ou melhor, Paulo Freire seria um autor já superado, porque sua luta pelo
oprimido estaria superada.
Ele passaria para a história como um grande educador, mas
que não teria mais nada a dizer para o nosso tempo. Pelo contrário, a sua pedagogia
continua válida não só porque ainda há opressão no mundo, mas porque ela responde a
necessidades fundamentais da educação de hoje.
A escola e os sistemas educacionais
encontram-se hoje frente a novos e grandes desafios diante da generalização da
informação na sociedade que é chamada por muitos de "sociedade do conhecimento", de
sociedade da aprendizagem.
As cidades estão se tornando educadoras e aprendentes,
multiplicando seus espaços de formação. A escola, nesse novo contexto de impregnação
do conhecimento, não pode ser mais um espaço, entre outros, de formação. Precisa ser
um espaço organizador dos múltiplos espaços de formação, exercendo uma função mais
formativa e menos informativa.
Precisa tornar-se um "círculo de cultura", como dizia
Paulo Freire, muito mais gestora do conhecimento social do que lecionadora.
Nesse contexto, o pensamento de Paulo Freire é mais atual do que nunca, pois, em
toda a sua obra, ele insistiu nas metodologias, nas formas de aprender e ensinar, nos
métodos de ensino e pesquisa, nas relações pessoais, enfim, no diálogo.
Devemos
continuar estudando a sua obra, não para venerá-lo como a um totem ou a um santo, nem
para ser seguido como a um guru, mas para ser lido como um dos maiores educadores
críticos do século 21. Honrar um autor é sobretudo estudá-lo e revê-lo criticamente,
retomar seus temas, seus problemas, seus questionamentos.
Nisso ele mesmo nos deu um belo exemplo. Paulo retomava com freqüência os
mesmos temas e problemas.
Como ele afirma em sua Pedagogia da autonomia (p.14),
Não creio, porém, que a retomada de problemas entre um livro e outro e no corpo de
um mesmo livro enfade o leitor. Sobretudo quando a retomada do tema não é a pura
repetição do que já foi dito. No meu caso pessoal retomar um assunto ou tema tem
que ver principalmente com a marca oral de minha escrita.
Há algo que permanece constante no pensamento dele: a sua preocupação ética,
seu compromisso com os "condenados da Terra" (Pedagogia do oprimido), com os
"excluídos" (Pedagogia da Autonomia). Seu ponto de vista foi sempre o mesmo.
O que
há de diferente é a ênfase em certas problemáticas que, estas sim, vão se diversificando e
evoluindo.
Em 2002 estive na Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA), durante a
realização do II Fórum Paulo Freire, organizado pelo Instituto Paulo Freire de Los
Angeles, e falei de duas perspectivas opostas de mundo, de humanidade nessa primeira
década do milênio. Perspectiva significa "ponto de vista" que é a vista de um ponto, de
um lugar. Daí eu ter escolhido como perspectivas a de dois lugares: a de Washington e a
de Angicos.
Paulo Freire nos incitava a ler o mundo. Lemos o mundo a partir do espaço, do
lugar onde nos "ubicamos", para me utilizar de uma expressiva palavra da língua
espanhola.
Não se trata de um lugar fixo, pois estamos sempre a caminho, em
movimento. Nosso ponto de vista sempre determina nossa visão do mundo. Não é por
nada que nossos pontos de vista são tão diversos e até antagônicos. Nos “ubicamos” em
muitos lugares. Essa diversidade é a riqueza da humanidade. Sem ela não haveria
mudança; o mundo seria estático, eternamente imutável, sem sentido, sem perspectiva. O
respeito à diversidade não é apenas uma exigência ética. É condição de humanidade.
É
condição sine qua non para o avanço da própria humanidade.
Paulo Freire nos fez sonhar porque falava a partir de um ponto de vista que é o
ponto de vista do oprimido, do excluído, a partir do qual podemos pensar um novo
paradigma humanitário, civilizatório, o sonho de um outro mundo possível, necessário e
melhor.
Por que, então, falo da perspectiva de Washington versus a perspectiva de
Angicos? Por que não falar da perspectiva do opressor e do oprimido – como dizia Paulo
Freire – do colonizador e do colonizado, do globalizador e do globalizado?
Falo de Washington como metáfora, símbolo de um poder, de uma política, de
uma visão de mundo, de um ponto de vista. Angicos foi a cidade onde Paulo Freire fez
sua mais importante experiência do seu método pedagógico. Foi a partir do êxito obtido
lá, em 1963, que ele ficou conhecido no mundo. Angicos e Washington podem ser
tomados hoje como metáforas de dois paradigmas civilizatórios do século 21. Mesmo
analisando dialeticamente – unidade e oposição de contrários – esses dois pontos de vista,
há entre eles uma irredutibilidade de fundo, como existe entre guerra e paz, entre poder
militar e poder da utopia, entre fundamentalismo e diálogo.
Contradições existem em tudo. Por isso existem mudanças. Ao propor essa
reflexão sobre essas duas vias opostas de humanidade, não intencionamos defender essa
irredutibilidade. Ao contrário, buscamos superá-la dialeticamente para que em "outros
mundos possíveis" (diante da pluralidade humana deve-se admitir uma pluralidade de
modos de bem viver dos seres humanos) não exista tanta fome e tanta pobreza como
existem hoje, sustentadas por guerras e fundamentalismos.
A beleza da diversidade não
deve ser confundida com a brutalidade da miséria frente à riqueza.
Estamos diante de uma escolha a fazer entre diálogo e guerra. E Paulo Freire pode
nos ajudar a encontrar um caminho mais seguro.
Contra a visão necrófila do mundo que
opõe um fundamentalismo a outro fundamentalismo, que leva à depredação ambiental, à
violência, que suscita e alimenta o terrorismo (político, econômico, religioso, militar, de
Estado...) existe outra visão, uma visão biófila que promove o diálogo e a solidariedade.
Por mais difícil que seja essa via, ela é a única capaz de evitar a guerra, a barbárie e o
extermínio. O terrorismo não pode nos impedir de pensar com lucidez.
O QUE ESPERAR DO PROFESSOR DO SÉCULO 21?
Espera-se do professor do século 21 que tenha paixão de ensinar, que esteja aberto
para sempre aprender, aberto ao novo, que tenha domínio técnico-pedagógico, que saiba
contar estórias, isto é, que construa narrativas sedutoras para seus alunos.
Espera-se que
saiba pesquisar, que saiba gerenciar uma sala de aula, significar a aprendizagem dele e de
seus alunos. Espera-se que saiba mediar conflitos, que saiba trabalhar em equipe, que seja
solidário. Espera-se, sobretudo, que seja ético. Não é competente o professor que não é
ético. A ética faz parte da natureza mesma do ser professor. Bom professor é o que “cuida
da aprendizagem”, como costuma dizer nosso querido amigo Pedro Demo.
O aluno
aprende quando o professor aprende e pesquisa. Bom professor é o que enxerga longe,
porque os alunos vão enxergar até onde o professor enxerga. Os alunos querem ver longe,
tem muitos sonhos na vida e desejam que os seus professores não lhes imponham limites
aos seus sonhos.
O QUE ESPERAR DA ESCOLA DO SÉCULO 21?
Espera-se da escola do século 21 que ofereça as condições de aprendizagem, um
ambiente formador, estético. Dizia Paulo Freire, na sua Pedagogia da autonomia (p.
160), “ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da
alegria”. Os professores são competentes, mas não têm condições de trabalho. Espera-se
da escola do século 21 que facilite a formação continuada de sua equipe de professores,
que ofereça as condições para que eles possam refletir sobre a sua prática, construir seus
projetos de vida, seus projetos pedagógicos e possam sentir-se bem na escola.
Espera-se
que a escola tenha um projeto pedagógico. Uma escola sem projeto não é uma escola, é
um fábrica de adestramento.
A força da obra de Paulo Freire não está só na sua pedagogia, mas no fato de ter
insistido na ideia de que é possível, urgente e necessário mudar a ordem das coisas. Ele
não apenas convenceu muitas pessoas em muitas partes do mundo pelas suas teorias e
práticas, mas, também, despertou neles e nelas a capacidade de sonhar um mundo "mais
humano, menos feio e mais justo". Ele foi uma espécie de guardião da utopia. Esse é o
legado que ele nos deixou. Esse legado, nesse início de milênio, é, acima de tudo, um
legado de esperança. Por isso, devemos continuar lendo Paulo Freire.