(1921-1997)
Pesquisa e texto de Moacir Gadotti (Instituto Paulo Freire) e Maria Ines Duque-Estrada (jornalista).
"Eu gostaria de ser lembrado como alguém que amou o mundo, as pessoas, os bichos, as árvores, a terra, a água, a vida", disse Paulo Freire em sua última entrevista, em 16 de abril de 1997, duas semanas antes de morrer de infarto no dia 2 de maio, aos 75 anos. E assim tem sido lembrado pelos que com ele conviveram e trabalharam. "Paulo era um homem feliz", comenta Moacir Gadotti, diretor do Instituto Paulo Freire, próximo dele nas últimas três décadas. Os amigos contam que apreciava a boa mesa, a comida simples nordestina. Todos falam de seu entusiasmo, bom-humor e alegria. Motivos para isso, teve muitos. Casou-se duas vezes e foram dois casamentos felizes. Em vida, conquistou reconhecimento mundial para suas propostas no campo da educação. Razões para tristeza também não lhe faltaram e os mais íntimos devem tê-lo surpreendido em momentos de desânimo. Mas sobre isso, ele próprio dizia: "Não sou de choramingar, de lamentar. Sempre aprendo com a negatividade ou a positividade da situação", logo emendando: "Não é por vergonha de sofrer não!".
De fato, Paulo Reglus Neves Freire encontrou muitas situações adversas desde a infância, quando a crise financeira de 1929 forçou sua família a mudar-se de um bairro de classe média, em Recife, onde nasceu em 19 de setembro de 1921, para Jaboatão, área mais pobre, na periferia da capital pernambucana, onde completou o primário. "Fiz a escola primária no período mais duro da fome, de uma fome suficiente para atrapalhar o aprendizado", contou uma vez. Aos treze anos perdeu o pai, seu grande incentivador, e aos dezessete começou a trabalhar para ajudar em casa. Graças a uma bolsa de estudos, pôde cursar um colégio particular, o Ginásio Oswaldo Cruz. Já tinha quinze anos quando fez o exame de admissão — equivalente, hoje, à passagem do curso primário para o primeiro grau.
Entre os "ensinamentos educativos", a prisão não foi dos menores, mas ela o preparou — contou o educador na mesma entrevista — para o exílio de quinze anos, durante o regime militar, quando viu por terra um sonho que começava a se realizar com sucesso: o de alfabetizar e dar voz aos iletrados, aos oprimidos brasileiros, sonho que deve ter se iniciado em criança, ao ver outras crianças vivendo de catar guaiamus no lodo, nas condições de higiene mais abjetas.
Durante o longo período de exílio, entretanto, continuou a pôr em prática seu método de ensino e a difundir seu pensamento em vários contextos nacionais — na América Latina, nos Estados Unidos, na África, na Europa — e a formar colaboradores no Brasil e lá fora. De tal forma que hoje o método Paulo Freire pode ser comparado às vacinas: qualquer pessoa medianamente informada conhece sua existência e nenhum trabalho sério de alfabetização pode ser empreendido ignorando-o.
O método e sua prática
O método Paulo Freire parte da pesquisa do universo vocabular e temático do grupo a ser alfabetizado para selecionar situações que servirão de instrumento não só do aprendizado da escrita e da leitura, mas também da discussão da realidade, relacionando o processo educativo ao meio social do aluno. Através dessa pesquisa, o educador identifica as "palavras geradoras". O exemplo mais conhecido é o que utiliza a palavra geradora "tijolo": o professor apresenta ao grupo a imagem de uma construção na qual se destacam o objeto tijolo e a palavra "tijolo". As sílabas desta palavra serão usadas progressivamente para a construção de outras palavras, como laje, lote, luta.
Mas a grande inovação de Paulo Freire foi basear seu método no diálogo, em que professor e aluno aprenderiam juntos, ao mesmo tempo, acabando com a escola autoritária e dando vida a uma nova escola, democrática e preparadora do homem para o mundo. "Um dos grandes pecados da escola é desconsiderar tudo com que a criança chega a ela. A escola decreta que antes dela não há nada", dizia. E outra concepção fundamental: Paulo Freire viu o analfabetismo como resultado de uma situação não só econômica e social como também política e histórica de opressão.
Os fundamentos básicos de sua teoria encontram-se em Educação como prática da liberdade, escrito nos intervalos das prisões e concluído no exílio, no Chile, que tem um instigante prefácio do sociólogo Francisco Weffort, genro de Paulo Freire e mais tarde Ministro da Cultura. Também foi no Chile que publicou, em 1968, Pedagogia do oprimido, sua obra mais conhecida, que dedicou "aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas sobretudo com eles lutam". Editado primeiro em inglês e espanhol em 1970, só apareceu no Brasil quatro anos depois.
— Em sociedades cuja dinâmica estrutural conduz à dominação de consciências, a pedagogia dominante é a pedagogia das classes dominantes. A educação libertadora é incompatível com uma pedagogia que, de maneira consciente ou mistificada, tem sido prática de dominação. A prática da liberdade só encontrará adequada expressão numa pedagogia em que o oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica — disse no prefácio a Pedagogia do oprimido o professor Ernani Maria Fiori, que acompanhou a elaboração do livro em Santiago do Chile, também como exilado político.
— Pedagogia do oprimido provocou em mim e em muitos outros educadores uma verdadeira revolução copernicana em matéria educativa — disse frei Betto durante longa conversa sobre educação com Paulo Freire, em 1985, que foi transformada em livro pelo jornalista Ricardo Kotscho (Essa escola chamada vida, Ed. Ática). O diálogo de vários dias com o educador norte-americano Ira Shor, em 1987, também se transformou em interessante livro (Medo e ousadia, Paz e Terra).
Para Angela Antunes Ciseski, professora municipal de São Paulo desde 1987 e membro do Núcleo de Educação para a Cidadania do Instituto Paulo Freire, a experiência foi também decisiva. Certo dia ela passou um dever para os alunos, com palavras para serem acentuadas. Depois de recolhidos, os trabalhos foram lidos e corrigidos em classe. Dado momento, Angela se depara com "mulher" e adverte: "Esta palavra termina com r, não tem acento". O garoto responde: "Mas eu não falo mulher, falo mulhé e vou continuar falando". "Então - disse a professora - vou continuar a diminuir sua nota".
O episódio fez Angela pensar e foi Paulo Freire quem lhe deu a resposta. Provavelmente nessa resposta haveria um eco daquilo que ele próprio aprendera da professora que o alfabetizou, Eunice Vasconcelos. "Ela me ensinou a respeitar a maneira bonita com que se exprimem as pessoas do povo, mesmo ao eventualmente cometerem erros gramaticais", ele escreveria mais tarde em um de seus livros.
Tem o mesmo tema o registro que fez em Educação como prática de liberdade:
"Em levantamentos vocabulares que figuravam nos arquivos do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife não são raros esses exemplos: 'Janeiro em Angicos - disse um homem deste sertão do Rio Grande do Norte - é duro de se viver, porque janeiro é cabra danado para judiar de nós'. 'Afirmação ao gosto de Guimarães Rosa' disse o professor Luís Costa Lima, que fazia parte de nossa equipe do Serviço".
Como outros pensadores, Paulo Freire assinalava: "A linguagem tem a ver com as classes sociais, sendo que a identidade e o poder de cada classe se refletem na sua linguagem". Ele considerava que os critérios lingüísticos da elite são muito difíceis de serem alcançados pelas pessoas comuns de baixa extração econômica. "Ao entender os aspectos elitistas e políticos do uso padronizado da língua, o professor libertador evita culpar os estudantes pelos seus erros de utilização da língua", escreveu. Isto não quer dizer que o professor libertador deva desprezar o ensino do uso correto da língua segundo a norma culta: "Do meu ponto de vista — acrescentou — "o educador deverá tornar possível o domínio, pelos estudantes, do padrão, para que possam sobreviver, mas sempre discutindo com eles todos os ingredientes ideológicos dessa ingrata tarefa".
Críticas à escola tradicional
Paulo Freire formulou críticas argutas ao sistema de formação de professores.
Entre elas: "Há uma coisa que é dita aos professores: que o ensino não tem nada a ver com a pesquisa, com a produção de conhecimentos. Por causa disso, há um mito que diz que se você é um professor que não faz nenhum tipo de pesquisa, perde prestígio. Como se orientar um seminário de um semestre sobre o conhecimento atual em Biologia, ou Química, ou Filosofia, não tivesse importância alguma, como se você não estivesse sendo uma espécie de pesquisador. Essa dicotomia entre ensino e pesquisa também explica a dicotomia entre os dois momentos do ciclo do conhecimento: o da produção do conhecimento novo e o do conhecer o conhecimento existente".
Ao substituir a autoridade pelo diálogo democrático na sala de aula, a nova pedagogia não abole a disciplina. A esse respeito, Freire apontou várias armadilhas que, na escola tradicional, levam ao empobrecimento do papel do professor. Por exemplo, ele via com suspeita a substituição do tratamento de "professora" por "tia" nas escolas. "A candura e o carinho da tia — advertiu — encobre subrepticiamente uma deslegitimização e uma desprofissionalização do docente e de seu papel, e, enfim, um conjunto de sentidos não tão cândidos a respeito dos quais professores e professoras deviam no mínimo estar conscientes e alertas. A professora pode gostar de ser tia e preferir continuar sendo chamada de tia. Nada tenho contra isso. Mas é preciso que ela saiba o que há de manha ideológica nesse tratamento".
Outras situações, ao contrário, levam à aceitação do autoritarismo por parte dos alunos. Um exemplo é quando o professor responde em voz alta a suas próprias perguntas e encerrar o assunto, ao enfrentar o silêncio da turma ou respostas monossilábicas. Freire descreveu esse momento como "o mais angelical da pedagogia tradicional, porque os alunos aprendem como a resposta ideal já está resolvida na cabeça do professor ou no manual. Como é que suas próprias respostas poderiam ser melhores? Se ficarem quietos o tempo suficiente, forçarão o professor a dizê-las em voz alta e poderão copiá-las com o menor trabalho possível".
Também o machismo, revelado principalmente nas classes de adultos, não escapou a Paulo Freire ao escrever: "Tenho observado em minhas aulas que os homens interrompem as mulheres que estão falando, mas as mulheres não interrompem os homens. Quando vejo que isso acontece, e que as mulheres não terminaram sua exposição, interrompo o homem. Digo-lhe que a aluna ainda não terminou. E que tanto os homens como as mulheres têm o direito de terminar de falar sem ser interrompidos. Isso é uma novidade para os alunos — que os homens estão violando uma regra democrática, dos direitos iguais na discussão. Outro aspecto do problema é que as alunas tendem a falar em voz mais baixa do que os homens, e tenho que encorajá-las a elevar o volume da voz.
Foi essa valorização e esse apreço pelas mulheres um dos fatores que certamente contribuíram para aproximar Rosiska Darcy de Oliveira, presidente do Conselho Nacional da Mulher, de Paulo Freire. Advogada e hoje professora da PUC-RJ, ela fez parte do grupo de exilados brasileiros que em 1971 fundaram, com Paulo Freire, o Instituto de Ação Cultural (Idac), em Genebra, com sede no Rio de Janeiro desde 1979. "Ao denunciar as práticas educativas a serviço do poder, Freire redefiniu o próprio conceito de educação e de saber" , diz Rosiska.
Do mesmo grupo do Idac fez parte Claudius Ceccon, hoje secretário-executivo do Centro de Criação da Imagem Popular (Cecip), no Rio de Janeiro. Ele conheceu o educador depois do exílio no Chile, já em Genebra, sede do Conselho Mundial das Igrejas, para o qual ambos — Claudius, metodista, e Paulo, católico — trabalharam juntos." Foram mais de dez anos de viagens internacionais, encontros, congressos, simpósios, conferências e papos. Isso mesmo, papos, ocasiões em que Paulo se punha à disposição de estudantes, educadores, intelectuais ou semi-analfabetos, para conversar ou, como ele preferia, dialogar", conta Claudius em depoimento recente.
Uma das experiências mais ricas para os dois, nessa época, foi a de Guiné-Bissau, logo após a independência da antiga colônia portuguesa, quando Amilcar Cabral pediu a Paulo Freire e sua equipe do Idac que ajudassem a realizar uma campanha nacional de alfabetização. O trabalho resultou num livro, Cartas a Guiné-Bissau. Registro de uma experiência em processo, publicado em 1977. "O projeto de assessoria durou cinco anos, até 1980, e serviu para preparar Paulo para a volta ao Brasil em 1979, logo que a anistia permitiu", comenta Claudius Ceccon.
- Ao chegar depois de quinze anos, ele foi homenageado no Tuca (teatro da PUC-SP). Quando apareceu de terno branco no palco, o público de dentro e de fora do teatro aplaudiu delirantemente por mais de dez minutos. Ele só abria os braços. E disse: "Estou hoje tomado por uma felicidade-menina, de volta a meu país". Convidado para trabalhar por várias universidades, escolhera a Universidade Católica de São Paulo, que resistira ao arbítrio da ditadura militar — relata Alipio Casalli, antigo companheiro de exílio.
Sua primeira visita ao Rio depois do exílio alvoroçou a Faculdade de Educação. Ele ia falar no auditório da Faculdade Notre Dame, em Ipanema. Marlene Carvalho, então aluna e mais tarde diretora do curso de pedagogia da UFRJ recordou, na cerimônia em que ele recebeu o título de doutor honoris causa por esta universidade em abril de 1993, a "noite memorável".
— O convite ainda soava um tanto arriscado, mas fomos em grupo. O auditório enorme estava lotado, um ambiente de euforia. Paulo Freire estava tranqüilo e falou pouco. Agradecia muito a todos mas estava cansado e emocionado para discursar. Disse que admirava aqueles que haviam resistido à tentação do exílio e as pessoas comuns, que haviam ficado, sofrido e lutado. Saímos do encontro dignificados.
Um educador no mundo
O depoimento de Moacir Gadotti sobre sua formação nos anos do regime militar mostra como Paulo Freire era uma referência para os estudantes, apesar da censura:
— Em 1967, ao concluir o curso de pedagogia, escrevi meu trabalho final sobre Educação como prática da liberdade. Paulo Freire era conhecido principalmente por seu método de alfabetização de adultos. Concentrei meu estudo no terceiro capítulo, que trata de massificação versus educação. Três anos haviam se passado do golpe. Os jornais e até mesmo alguns intelectuais apenas começavam a tomar conhecimento da brutalidade do regime. A Pedagogia do oprimido ainda não havia sido publicada. Li-o pela primeira vez em francês, quando já estava no exterior, em Genebra, trabalhando com Paulo. O encontro, em 1974, na Universidade de Genebra, com o educador que eu havia estudado sete anos antes, foi muito emotivo para mim. Era tudo com que eu sonhava na terra de Jean-Jacques Rousseau.
Assim, mesmo ausente por tanto tempo, Paulo Freire viu seu trabalho frutificar também no Brasil a partir da experiência-piloto, em Angicos (RN). Os resultados ali obtidos, 300 trabalhadores alfabetizados em cerca de 45 dias, impressionaram profundamente a opinião pública e a aplicação do método pôde estender-se, já então sob o patrocínio do governo federal, a todo o território nacional entre junho de 1963 e março de 1964.
— Num dos Círculos de Cultura da experiência de Angicos — que fora coordenado por uma de nossas filhas, Madalena — no quinto dia de debate, um dos participantes foi ao quadro negro e redigiu: "o povo vai resouver os poblemas do Brasil votando conciente". Como explicar que um homem analfabeto até poucos dias escreva palavras com fonemas tão complexos antes mesmo de estudá-los? É que, tendo dominado o mecanismo das combinações fonêmicas, tentou e conseguiu expressar-se graficamente, pela fala — contou Paulo Freire.
Isto se verificou em todas as experiências que passaram a ser feitas no país e que pretendia aprofundar através de um Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação, extinto depois do golpe militar. "Se tivéssemos cumprido o programa elaborado no governo Goulart, deveríamos ter, em 1964, mais de vinte mil círculos de cultura em todo o país".
Foi entre os quinze e os vinte e três anos que Freire disse ter sido "atraído pela educação". O casamento, em 1944, com a professora primária Elza Maria Costa Oliveira, aumentou seu interesse pelas questões relacionadas ao ensino. Já formado em direito pela atual Universidade Federal de Pernambuco (antiga Universidade do Recife), onde ingressara aos vinte e dois anos, exerceu o cargo de diretor do setor de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria (Sesi) entre 1947 e 1954, passando a diretor de 1954 a 1957. Através do Sesi que teve o primeiro contato com a alfabetização de adultos.
Em 1956, a convite do prefeito progressista Pelópidas Silveira, Paulo Freire passou a integrar o Conselho Consultivo de Educação de Recife. Dois anos depois, num congresso sobre educação de adultos, no Rio de Janeiro, sistematizou pela primeira vez seu método de alfabetização que, por integrar consciência política e aprendizado da escrita, valeu-lhe na época o repúdio dos "conservadores".
Lecionava filosofia da educação, disciplina pela qual se doutorou com a tese Educação e atualidade brasileira, quando, em 1961, foi nomeado diretor da Divisão de Cultura da Secretaria Municipal de Educação pelo então prefeito de Recife, Miguel Arraes. Por iniciativa de Arraes, o seu método de alfabetização foi aplicado como experiência em trinta trabalhadores braçais do Departamento de Obras. Os resultados foram tão surpreendentes que o prefeito decidiu ampliar a experiência através do Movimento de Cultura Popular, criado pelo artista plástico Abelardo da Hora para levar educação e atendimento de saúde à população dos mocambos da cidade.
Veio a seguir sua colaboração na campanha "De pé no chão também se aprende a ler", empreendida com sucesso pelo então prefeito de Natal (RN) , Djalma Maranhão. Ao organizar e dirigir a campanha de alfabetização de Angicos, Freire ficou mais conhecido nacionalmente como educador voltado para as questões do povo. Logo depois foi para Brasília, a convite do ministro da Educação Paulo de Tarso Santos, do governo João Goulart, para realizar o Programa Nacional de Alfabetização que pretendia alfabetizar e politizar cinco milhões de adultos, eleitores em potencial — na época, o voto do analfabeto não era permitido. Mas o tempo foi curto: menos de um ano, por causa do golpe de Estado.
Em setembro de 1964, setenta dias de prisão em Olinda e Recife e a pressão de inquéritos policiais-militares fizeram com que Paulo Freire se decidisse a deixar o país, sob a proteção do embaixador da Bolívia. Pouco tempo depois, um golpe de Estado nesse país levou-o para o Chile onde, com a família, iniciou nova etapa de sua vida e de sua obra. De abril de 1969 a fevereiro de 1970, morou em Cambridge, Massachusetts, dando aulas sobre suas próprias reflexões na Universidade de Harvard, como professor convidado. Em seguida, mudou-se para Genebra, para ser consultor especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas.
A volta ao Brasil ampliou sua atividade ainda mais, como relata Gadotti:
— Em 1980, Paulo visitou o Cedes (Centro de Estudos Educação e Sociedade), uma organização não-governamental que eu dirigia junto à Universidade Estadual de Campinas, que o havia convidado a trabalhar. Dois anos depois, como membros do Partido dos Trabalhadores, criamos a Fundação Wilson Pinheiro para subsidiar o partido com estudos, pesquisas e reflexões sobre questões sócio-políticas, econômicas e culturais. Começamos um intenso programa de debates e conferências em diversas partes do mundo. Escrevemos alguns trabalhos em parceria.
Com a morte da primeira esposa em 1986, Freire abateu-se. Até quando, "optando pela vida", casou-se novamente em 1988 com Ana Maria Araújo, filha do diretor do Ginásio Oswaldo Cruz, onde estudara em Recife. Pôde então iniciar nova etapa, aceitando inclusive novos desafios como homem público. Assim, em 1989, assumiu a Secretaria Municipal de Educação, tendo Moacir Gadotti na chefia do seu gabinete, quando o Partido dos Trabalhadores, do qual foi um dos fundadores, chegou ao poder com a eleição de Luiza Erundina para prefeita de São Paulo.
O Instituto Paulo Freire (IPF), criado em 1991, era para ele um espaço de busca de novas teorias e práticas educacionais. Havia projetado ministrar ali vários cursos, inclusive um para estudantes estrangeiros. Dizia ser muito sacrifício para quem, como ele, não gostava de avião, ser forçado a viajar para o exterior e achava melhor receber no IPF os estudantes estrangeiros que desejassem ouvi-lo.
— Nos últimos anos — conta Gadotti — ele programava uma série de vídeos para possibilitar o acesso ao conhecimento a maior número de pessoas. Não se aprende tudo na escola, continuava insistindo. A TV, o vídeo e o computador podem ser ferramentas preciosas para as camadas populares. Mas precisamos aprender a ser emissores e não apenas receptores de idéias. Paulo prezava a cultura midiática como complemento do que aprendemos na escola e como um motor do conhecimento. Ela pode nos despertar para certos temas geradores que o saber escolar ignora ou valoriza pouco, que podem ser, por exemplo, de um lado, a pobreza e a violência, e, de outro, a solidariedade e a interculturalidade. Só aprendemos o que sentimos profundamente. A mídia pode nos sensibilizar e a escola pode partir desta sensibilização para ir além. A escola e o vídeo são espaços diferentes de aprendizagem e não antagônicos.
O legado de Paulo Freire
Um mês antes de morrer, Paulo Freire esteve em Nova York para um encontro de professores. Na época, acabara de lançar seu último livro, Pedagogia da autonomia (Ed. Paz e Terra), e escrevia um novo, que se chamaria Cartas pedagógicas. "É sobre determinados envolvimentos nossos na vida em casa, na relação doméstica, na escola, na rua, procurando esclarecer como essas situações têm muito a ver com o destino democrático do Brasil", revelou. "Estou pensando em dirigi-lo aos pais, às mães, aos meninos também, aos professores e às professoras". No livro, ele reitera: "Escrevo fazendo um apelo para que se possa fazer qualquer coisa no sentido de melhorar a educação brasileira. Para isso, é urgente que se respeitem professores e professoras. E uma das condições de respeito é pagar bem, ou menos imoralmente. A outra condição é acreditar".
Nessa definição de metas transparecem dois traços complementares da personalidade de Paulo Freire: a capacidade de sonhar e, ao mesmo tempo, de manter os pés no chão. "Meu sonho de sociedade ultrapassa os limites do sonho que aí estão", afirmara ele em junho de 1985. E, ao lamentar a sua morte, a primeira-dama Ruth Cardoso, que o conheceu no exílio chileno, declarou: "Ele era um homem capaz de formular propostas concretas de ação para a construção de um Brasil moderno".
Entre as centenas de mensagens que chegaram à família, muitas diziam textualmente: "Minha vida não seria a mesma se não tivesse lido a obra de Paulo Freire. O que escreveu ficará no meu coração e na minha mente". Professores de cerca de 150 universidades enviaram condolências, evidenciando a repercussão e a influência de sua pedagogia em várias partes do mundo.
Paulo Freire deixou diversos livros que continuam sendo publicados em diversas línguas e influenciaram toda uma geração de educadores e militantes políticos. Ainda vivo, virou nome de nove escolas, tornou-se cidadão honorário de nove cidades, recebeu seis prêmios internacionais e batizou três cátedras universitárias. Foi doutor honoris causa por 28 universidades, nome de rua em Itabuna (BA) e de 26 centros de estudo e documentação em questões educacionais em países tão heterogêneos quanto a Itália, o Chile, a Bélgica e os Estados Unidos. Sem falsas modéstias, não escondia seu prazer com as homenagens: "Elas me alegram e me fazem bem", confessa emPedagogia da Esperança (1992). Mas apesar de todas as que recebeu, foi sobretudo um homem simples.
— Qualquer conhecimento que lhe chegasse de alguém mais humilde se tornava uma nova comprovação de suas teorias. E seus hábitos eram também singelos. Gostava de comer banana frita, galinha de cabidela e peixe ao leite de coco. Escreveu seus livros à mão, usando lápis ou caneta hidrográfica. Gostava de cães e passarinhos, tinha um jeito bonachão, acentuado pela fala vagarosa e pelo grisalho de suas barbas. Não aparentava, em definitivo, o currículo que bem poucos brasileiros poderão um dia reunir — lembra o jornalista João Batista Natali.
É por isso que Moacir Gadotti insiste:
— Dar continuidade a Freire não significa tratá-lo como um totem, ao qual não se pode tocar mas se deve apenas adorar; nem como um guru, que deve ser seguido por discípulos, sem questionamentos. Nada menos freireano do que esta idéia. Paulo Freire foi, sobretudo, um criador de espíritos. Por isso deve ser tratado como um grande educador popular. Adorar Freire como um totem significa destruí-lo como educador. Por isso não devemos repetir Freire, mas "reinventá-lo", como ele mesmo dizia, e levar adiante o esforço de uma educação com uma nova qualidade para todos.
E qual foi o legado que Paulo Freire deixou?
— Em primeiro lugar, ele nos deixou sua vida, uma rica biografia. Paulo nos encantou com a sua ternura, sua doçura, seu carisma, sua coerência, seu compromisso, sua seriedade. Suas palavras e suas ações foram palavras e ações de luta por um mundo "menos feio, menos malvado, menos desumano". Ao lado do amor e da esperança, ele também nos deixou um legado de indignação diante da injustiça. Diante dela, dizia que não podemos "adocicar" nossas palavras — afirma Gadotti, organizador da Biobibliografia de Paulo Freire (Ed. Cortez, 1996) com 780 páginas, a obra mais completa sobre o educador, que está sendo traduzida em diversas línguas.
Ele contou que em março de 1997, quando um grupo de jovens de Brasília ateou fogo e matou um índio pataxó, Paulo Freire ficou muito impressionado. E se perguntava por que chegamos a tamanha barbárie:
— As causas são múltiplas: há a mídia, a escola, a sociedade... todos somos responsáveis. Mas há a impunidade que permite, sobretudo às classes poderosas, fazer quase tudo o que quiserem sem ser punidas. Raramente são punidas. Poucos são os ricos que estão nas cadeias. Por isso precisamos dizer "não pode" sem ter medo de sermos antidemocráticos. Há o que pode e o que não pode ser feito. Paulo Freire nos falava com freqüência de uma pedagogia da indignação. Diante da injustiça, da impunidade e da barbárie, precisamos de uma pedagogia da indignação. Dizer "não" provoca conhecimento. O "não" desacomoda, incomoda, desinstala. Dizer "não" é buscar a ética, é valor, é postura.
O que mais preocupava o educador nos últimos anos era o avanço de uma globalização capitalista neoliberal. Ele atacava tanto o neoliberalismo por ser uma doutrina visceralmente contrária ao núcleo central de seu pensamento, que é a utopia.
— Para Paulo Freire — continua Gadotti — o futuro é possibilidade. Para o neoliberalismo o futuro é uma fatalidade. O neoliberalismo apresenta-se como única resposta à realidade atual, desqualificando qualquer outra proposta. Desqualifica principalmente o Estado, os sindicatos e os partidos políticos. Denuncia a política fazendo política.
Outro legado de Paulo Freire, acrescenta, é a esperança :
— Ele era um ser humano esperançoso. Não por teimosia, mas por "imperativo histórico e existencial", como afirma em Pedagogia da esperança. Além da esperança, cultivou a autonomia, que é a capacidade de decidir-se, de tomar o próprio destino nas suas mãos. Diante de uma economia de mercado que invade todas as esferas de nossa vida, precisamos lutar — também através da educação — para criar na sociedade civil a capacidade de governar e controlar o desenvolvimento (alternativa ao socialismo autoritário).
No desenvolvimento da sua teoria da educação, Paulo Freire conseguiu, de um lado, desmistificar os sonhos do pedagogismo dos anos 60, que sustentava a tese de que a escola tudo podia, e, de outro lado, conseguiu superar o pessimismo dos anos 70, para o qual a escola era meramente reprodutora do status quo. Fazendo isso — superando o pedagogismo ingênuo e o pessimismo negativista — conseguiu manter-se fiel à utopia, sonhando sonhos possíveis. Fazer hoje o possível de hoje, para amanhã fazer o impossível de hoje
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