O artista plástico está, desde Outubro de 2014, no Beiral. Um dos principais pensadores da arte contemporânea angolana está, por isso, sem espaço para trabalhar – foi retirado dos escombros da União Nacional dos Artistas Plásticos (UNAP), onde vivia em péssimas condições desde 1996. Apesar do sucesso, sobretudo nos circuitos internacionais, Paulo Kapela está agora em ambiente de paz, mas sem espaço para expandir a sua voz, o seu trabalho, as suas ideias.
Por entre casas cor-de-rosa e umas brilhantes acácias rubras, rodeado por uma Terra Nova só de nome e longe do estilo actualizado-envidraçado como está a bater no Talatona, Paulo Kapela, o Mestre Kapela, arrasta-se para mais um dia de vida. A vida do Beiral, o lar de idosos afecto ao Governo Provincial de Luanda, não é suficientemente grande para alimentar o espírito.
“Penso muito mas não tenho a solução”, diz Mestre Kapela, contemplativo. “O que eu quero? Já falei com algumas pessoas sobre isso. Preciso de um espaço onde possa estar à vontade para trabalhar. Onde possa receber as pessoas que gostam de me visitar e os clientes interessados em conhecer ou comprar as minhas obras”.
Sente-se a falta de estímulo no olhar perdido debaixo de um chapéu de mais-velho e um calção de mais-novo. A vida já não é a loucura mundial da Mutamba, o frenesim dos carros, dos polícias, dos vícios. Dos jovens atirados a uma vida sem arte mas com muito talento para fumar o sinal de proibido: agora tudo se resume a três refeições, uma sombra fresca, visitas periódicas a um médico de bata-branca, sem nome, sem fé. Sem rosto.
“Preciso de um espaço onde possa estar à vontade para trabalhar”
Parece tudo bastante simples, parece que tudo se pode resolver num estalar de dedos. Mas não. Nada na vida de Kapela tem uma solução descomplicada. Se, antes de o receberem no Beiral, o dia-a-dia era passado na sede da UNAP, onde vivia, a obra de Kapela é muito mais do que um tecto rasgado, um chão imundo e um altar despido de amor – mas repleto de latas vazias de Coca-Cola.
“Várias pessoas têm procurado uma solução, têm tentado ajudar-me, mas até agora não foi possível. O Nuno Pimentel, por exemplo, é como um irmão para mim. Chegou a sugerir um espaço que ele tem em Cacuaco, mas também é muito distante. Quero trabalhar e fazer as minhas coisas”, frisa Kapela, em conversa com o Rede Angola.
No seu sincretismo, na conjugação dos factores morais, políticos e universais, a sua obra – entre pintura, instalação, colagem – é uma reflexão histórica meio animista, meio católica. Abraça a crítica dos modelos ocidentais de sociedade e de economia. Abraça as técnicas ancestrais de negociação divina: o espelho é um elemento central que nos transporta para um imaginário ligado às esculturas Nkisi.
E é também uma flecha no discurso universal e na narrativa predominante das classes que (des)governam o mundo, ao mesmo tempo que anuncia o que está por vir.
Autodidacta, Paulo Kapela começou a pintar em 1960 na Escola POTO-POTO (Brazzaville – República do Congo). Fixou-se em Luanda em 1996. A sua marginalidade, impulsionada pelo facto de não dominar o português numa Luanda arreigada a hábitos assimilados (expressa-se maioritariamente em kikongo, lingala e francês), pode também estar associada ao estigma que até hoje assalta os angolanos originários das províncias do Zaire e do Uíje. O Mestre Paulo Kapela nasceu em 1947, em Maquela do Zombo, província do Uíje.
Apesar da quase invisibilidade interna, o facto é que o Mestre tem participado em inúmeras exposições colectivas em África e na Europa: verdade que quase não se reflecte no seu tempo pessoal. Ficaram para a história, sim, mas para a história enquanto tal ou mesmo para a história de outras pessoas.
No âmbito do projecto Trienal de Luanda, integrou a exposição “No Fly Zone” (Lisboa, 2013) e a representação angolana da Bienal de Veneza na exposição “Check List – Luanda Pop”. As suas obras integraram a circulação da exposição “Africa Remix” (2004/2006) e “Réplica e Rebeldia” (2006). Em 2003 recebeu o prémio CICIBA – Centro Internacional de Civilizações Bantu, em Brazzaville.
Rebeldia pós-capitalista
Não é fácil encontrar um ponto-de-encontro entre a projecção externa do Mestre Kapela e o lar de idosos onde agora passa os dias. Há um ponto-de-sucesso e um ponto-de-esquecimento que envolve o seu trabalho. A internet leva-nos rapidamente a interessantes artigos nacionais e internacionais, a críticas mais ou menos sérias, que absolvem a criatividade do profeta-xamã, enxaguam as lágrimas exteriores e vangloriam a ideia de caos na indigência. Será justo?
Fernando Alvim, o rosto da Trienal de Luanda, evento que proporcionou novos espaços e novos caminhos às artes na capital do país, reconhece que as condições em que o Mestre vivia não eram “as mais indicadas”. “Quem é que se atreve a dizer que a UNAP tem boas condições para uma pessoa viver? Todos sabemos que, devido ao espírito aberto, ao facto do Kapela gostar de conviver com os jovens, ao espírito comunitário que ele tem, muita gente aproveitou-se do seu talento”.
Kapela lembra-se destes momentos. A voz fica (ainda mais) embargada, a lamentação surge rapidamente. “Durante os anos muitas pessoas levaram da UNAP obras minhas sem autorização. Outras enganaram-me”, recorda o artista plástico que, actualmente, tem apenas o apoio directo do amigo Rasta Kongo.
Fernando Alvim, artista e curador angolano, que é uma das figuras da Fundação Sindika Dokolo, financiada pelo homónimo Sindika Dokolo (o congolês-democrata, casado com Isabel dos Santos, tem investido em arte africana ao longo dos últimos anos e, por via disso, possui uma das principais colecções do continente), destaca o que lhe atrai na perspectiva do Mestre Kapela.
“Ele lê as coisas que se passam à nossa volta com muita coerência. E desenvolveu uma estética profetizante, é uma espécie de xamã, com uma profunda visão pacifista das pessoas. Também aprecio a quantidade de informação presente nos seus trabalhos e a utilização de referências da cultura católica (os crucifixos) que são depois misturadas com outros elementos”, explica Fernando Alvim.
Os coleccionadores angolanos são, muitas vezes, apontados como co-responsáveis pela situação em que se encontra o artista – já que as suas obras têm sido motivo de interesse tanto dentro, como fora do país. A exposição “No Fly Zone” (Lisboa, 2013) mostrou obras de Kapela, Kiluanji Kia Henda, Bynelde Hyrcam, Nástio Mosquito, Edson Chagas e Yonamine – mas Kapela foi o único que não esteve presente na inauguração, no Museu Berardo, em Lisboa (Portugal).
“Mas por acaso o Kapela tem passaporte?”, questiona Fernando Alvim. “Todos sabemos que não tem os documentos em dia. Defendo que ele deve-se organizar e aproveitar o tempo que está no Beiral para tratar de toda a documentação enquanto cidadão – e também para cuidar da sua saúde”, lembra Alvim.
A Fundação Sindika Dokolo anunciou, ainda em 2014, que está a conceder uma bolsa mensal de Kz 100 mil, em benefício do Mestre Kapela. Com a duração de 12 meses. “O período é curto porque acho que, no final, devemos reanalisar o processo”, esclarece Fernando Alvim em conversa com o Rede Angola.
“Penso que o Kapela, no Beiral, pelo menos tem assistência, tem acesso a três refeições diárias e a cuidados médicos. Mas ainda não fui lá ver a situação com os meus próprios olhos”, confessa um dos maiores coleccionadores angolanos de arte, Nuno Pimentel. O coleccionador começou a investir no mercado de arte, em 2003, quando comprou um quadro de Marco Kabenda. Hoje tem mais de 200 obras de artistas angolanos de referência.
António Tomás Ana “Etona”, actual secretário-geral da UNAP, considera que a situação do Mestre Kapela é, na verdade, “um problema da nação artística angolana”. “A classe artística não está estruturada. Mesmo a sociedade angolana está afastada das artes – não é fácil encontrar angolanos num museu, é muito mais fácil encontrar angolanos numa discoteca. Neste contexto, a UNAP serviu de abrigo para várias pessoas. O local onde estava o Kapela já tinha sido do falecido Viteix. Julgo que, para o Kapela, neste momento é importante garantir as condições mínimas para que possa ter estabilidade”, defende Etona.
Kiluanji Kia Henda, Kapela Studio, 2006
O líder associativo não deixa de fazer críticas aos agentes do mercado da arte, que utilizam o trabalho do Mestre Kapela “numa condição de exploração”. “Para já, a questão é importante porque é um ser humano que está em causa. Mas há outros artistas com os mesmos problemas. O ideal seria que a UNAP conseguisse ter uma Casa dos Artistas – uma instituição que pudesse prestar alguns serviços sociais a quem necessita. Mas a realidade está muito longe deste sonho”, lembra Etona.
Por outro lado, há muito tempo que o edifício da UNAP, na Mutamba, está sob pressão do sector imobiliário. Etona não esconde que a UNAP está “aberta a negociar” o imóvel. “Para já, não há nenhuma indicação oficial mas é algo que pode acontecer no futuro”, admite.
A Mutamba, o Mestre Kapela, a UNAP, o Elinga e o seu teatro e as suas noites, a confluências de jornalistas, intelectuais, quadros técnicos do sector público e privado, meninos de rua, indigentes, drogados e prostitutas, deram origem a uma geração pós-tudo que se tem destacado a vários níveis – e o Mestre Kapela é uma das influências directas deste movimento.
“Sempre gostei muito do trabalho do Kapela. Daquilo que ele tem feito por Angola. Sempre gostei muito dele. Gosto das instalações, da utilização do vidro, das colagens que ele faz, onde é capaz de colocar frente-a-frente o rosto do José Eduardo dos Santos e do Simão Toko. São reflexões do quotidiano. O seu trabalho influencia até hoje toda uma geração, sobretudo as pessoas que frequentam os ambientes da Mutamba”, frisa Nuno Pimentel.
As influências de Kapela, não apenas estéticas mas também de visão do mundo, podem ser apreciadas no trabalho de Kiluanji Kia Henda, Yonamine, Marco Kabenda, Edson Chagas, entre outros novos nomes do meio artístico angolano.
Voltamos ao lar de idosos. O Beiral está calmo, em posição fetal, virado para si mesmo. Longe agora das lutas que envolvem as sociedades contemporâneas. Impera o silêncio sem arte. A batida é velha e sem torpor: o que se passa lá fora simplesmente não interessa. O combate passa por adaptar o tempo a uma nova linha do horizonte. A uma nova vitória.