quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Os sentidos da Operação Lava Jato: devolve, Gilmar! A promiscuidade entre política e mundo dos negócios produz enormes prejuízos para a democracia: além da corrupção, dá poder às empresas de eleger candidatos e conseguir maioria no Congresso

Gilmar Mendes
Ministro Gilmar Mendes pediu vistas do processo que acaba com financiamento empresarial de campanhas 
em abril, mas nada fez a respeito.

por José Gilbert Arruda Martins (Professor)

Queria muito que colegas de trabalho que votaram em Aécio e, nos intervalos na escola esbravejam palavras de moralidade e palavras de antipetismo, tivessem a oportunidade de ler essa matéria de Jean Wyllys.

Em minhas breves intervenções nas discussões, tenho afirmado a importância de tentarmos enxergar o papel da "grande" mídia nesse processo todo.

Tenho afirmado que, longe de tentar escamotear a responsabilidade que o governo e o Partido dos Trabalhadores têm nessa questão, a corrupção é um problema do país, é um problema endêmico de toda a sociedade, de toda a classe política é, enfim um problema de praticamente todos os partidos e todos os governos. Chego a dizer que a corrupção está no DNA do brasileiro, do mais pobre ao mais rico, guardando, claro, as devidas proporções.

A matéria do deputado Jean logo abaixo é esclarecedora, didática até, para que as pessoas entendam os caminhos da operação Java Jato.

Entendam que, quem mais perde é a Democracia, é o país, é a sociedade como um todo.

A Petrobrás, é a maior empresa do Brasil; é uma das maiores empresas de petróleo do mundo. A classe política e a imprensa precisão deixar o ódio ao PT de lado e agir de forma serena para aproveitar o momento e resolver de vez a situação da estrutura política do país que favorece a corrupção.

O país precisa urgente de uma Reforma Política. O Sr. Gilmar Mendes precisa devolver o processo que desde de abril está com ele, e que o plenário do Supremo Tribunal Federal possa votar e acabar de vez com o financiamento de empresas a campanhas eleitorais no Brasil. 

Devolve Gilmar!!!


Os sentidos da Operação Lava Jato: devolve, Gilmar!

A promiscuidade entre política e mundo dos negócios produz enormes prejuízos para a democracia: além da corrupção, dá poder às empresas de eleger candidatos e conseguir maioria no Congresso

Jean Wyllys   -  no site da Carta Capital



Operação Lava Jato poderia ser uma oportunidade excepcional, dessas que quase nunca ocorrem, para discutir seriamente o problema da corrupção no Brasil e a forma com que ela prejudica a democracia. Pela primeira vez, as principais empreiteiras estão sendo investigadas e 21 executivos foram presos pela Polícia Federal, entre eles os presidentes de algumas delas. Não estamos falando de quaisquer empresas, mas daquelas que realizam as mais importantes obras públicas, financiadas pelos governos federal, estaduais e municipais de diferentes partidos e que, ao mesmo tempo, são as principais financiadoras das campanhas eleitorais que elegeram esses governantes.
Os grandes esquemas de corrupção — que sempre são apresentados pela cobertura jornalística, de forma falaz, como se fossem apenas uma espécie de degeneração moral de determinadas pessoas — geralmente associada ao partido que está no governo, revelam-se no caso da Lava Jato como o que realmente são: um componente fundamental de um sistema econômico e político controlado não por funcionários corruptos, mas pelas empresas corruptoras.
Repassemos alguns dados.
As empreiteiras investigadas são nove: OAS, UTC, Queiroz Galvão, Odebrecht, Camargo Corrêa, Iesa, Galvão Engenharia, Mendes Junior e Engevix. Juntas, elas têm contratos com a Petrobras de 59 bilhões de reais. Só no Rio de Janeiro, três dessas empreiteiras (OAS, Camargo Corrêa e Odebrecht) participam, associadas em diferentes consórcios, das dez maiores obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas (linha 4 do metrô, Maracanã, Parque Olímpico, Transcarioca, Transolímpica, Porto Maravilha etc.) por um valor total de 30 bilhões. Elas têm contratos com governos de quase todas as cores. Várias delas também participam da privatização dos aeroportos e das obras do PAC, do governo federal, mas também das obras do metrô de São Paulo, envolvidos num caso de corrupção pelo qual é investigado o governador Geraldo Alckmin, que também recebeu dinheiro de empreiteiras para sua campanha.
Com negócios diversificados e participação em diferentes escândalos de corrupção, a lista das empreiteiras mais importantes do País é liderada pela Odebrecht que, segundo o ranking da revista O Empreiteiro, tem um faturamento de 5.292 bilhões de reais. Você sabe quanto dinheiro "doou" essa empresa para diferentes partidos e candidatos nas últimas eleições? Mais de 30 milhões de reais! A Odebrecht doou para todos os seguintes partidos: PSDB, PT, PSB, PMBD, PP, DEM, PCdoB, PV, Solidariedade, PROS, PRB, PSD, PPS, PSC, PCdoB, PTC e PSL. Eles doaram 2,95 milhões para a campanha da Dilma, 2 milhões para a campanha do Aécio e 500 mil para a campanha de Eduardo Campos (depois somou quase 50 mil a mais para a campanha da Marina), mas também para candidatos a governador e deputado e para os comitês financeiros e as direções nacional e estaduais de diferentes partidos.
De todos os partidos que elegeram representantes para o Congresso Nacional, o único que não recebeu dinheiro de nenhumadas empreiteiras investigadas (aliás, de nenhuma empreiteira!) foi o PSOL. Sim, foi o único!
A segunda maior empreiteira do ranking, com um faturamento de 5.264 bilhões, é a Camargo Corrêa, que doou, por exemplo, 1,5 mi para o DEM. A empreiteira Queiroz Galvão fez doações de campanha por mais de 50 milhões, beneficiando candidatos de 15 partidos, entre os quais o PT, o PSDB, o PMDB, o DEM e o PSB. Também doaram 200 mil reais para a campanha do nanico pastor Everaldo. Outra campeã das doações foi a OAS, com uma generosidade política de mais de 52 milhões que beneficiou Aécio, Dilma, Marina e candidatos de 12 partidos. A UTC fez doações de 34 milhões e também foi ampla na distribuição, beneficiando a 11 partidos, entre os quais estavam os mais importantes da situação e da oposição. E por aí vai. Todas elas estão envolvidas na investigação da Polícia Federal.
Alguns candidatos não recebem dinheiro de uma determinada empresa de forma direta, mas essa empresa doa para o comitê do partido, ou para sua direção nacional ou estadual, que por sua vez faz uma doação ao candidato. Ou então a empresa pode doar para um candidato a deputado, que depois faz uma doação para o candidato a presidente, ou vice-versa. Algumas empresas têm diferentes denominações, cada uma com um CNPJ distinto. Mas a quantidade de dinheiro que sai da União, dos Estados e dos municípios e vai para as empreiteiras mediante contratos para obras públicas, e que sai das empreiteiras e vai para os candidatos e seus partidos, é imensa. E essa promiscuidade entre política e mundo dos negócios produz enormes prejuízos para a democracia.
O problema não é apenas a corrupção direta, a propina e a lavagem de dinheiro. É também o poder que essas empresas têm para desbalancear o sistema democrático, apoiando determinados candidatos e candidatas com quantias absurdas de dinheiro que fazem com que os e as concorrentes de outros partidos tenham pouquíssimas chances de vencer, a não ser que entrem no esquema.
Nas últimas eleições, 326 parlamentares tiveram suas campanhas financiadas por empreiteiras (nenhum do PSOL!). E, entre eles, 255 receberam dinheiro das envolvidas na operação Lava Jato. Façamos as contas. Os candidatos das empreiteiras são maioria no Congresso! Dentre eles, 70 deputados e 9 senadores são citados nas investigações. E há governistas e opositores — inclusive petistas e tucanos (mas alguns jornais e revistas citam apenas os petistas).
O financiamento empresarial das campanhas favorece esse esquema e prejudica os que não querem fazer parte dele. Eu fui o sétimo deputado federal mais votado do estado do Rio de Janeiro, com 144.770 votos, e a receita total da minha campanha foi de 70,892.08 mil reais em doações físicas, sendo que, destes, 14 mil correspondem a trabalhos de voluntários. Não recebi (e nem quero!) um centavo das empreiteiras.
Agora vou dar um exemplo contrário: deputado Eduardo Cunha, que teve 232.708 votos e foi o terceiro mais votado do estado, declarou uma receita de mais de 6,8 milhões de reais! Sim, você leu bem: quase 7 milhões. Os diretórios nacional e estadual do PMDB, seu partido, que também doou dinheiro para ele, receberam "ajuda" da OAS (3,3 milhões), da Queiroz Galvão (16 milhões), da Galvão Engenharia (340 mil) e da Odebrecht (8 milhões). O PMDB governa o estado que dá a algumas dessas empreiteiras obras públicas milionárias. Isso sem falar dos bancos, empresas de mineração, shoppings e outros empreendimentos que depositaram na conta de Cunha.
Vocês percebem como o é injusto e antidemocrático que um candidato honesto, que conta apenas com doações de amigos, militantes e simpatizantes, contra outro que recebe quase 7 milhões de bancos e empreiteiras? Vocês percebem como isso faz com que nosso poder, eleitor, seja cada vez menor, e com que o poder da grana se imponha cada vez mais?
Agora pense no seguinte: Eduardo Cunha pode ser o próximo presidente da Câmara dos Deputados! Ele é um dos cérebros da bancada fundamentalista, foi o grande articulador da presidência da CDHM para o pastor Marco Feliciano e é o porta-voz do que há de mais reacionário, retrógrado, conservador e antipopular no Congresso. Algumas pessoas acham que o grande vilão da direita é Jair Bolsonaro, mas na verdade, ele é apenas um personagem caricato, bizarro, que tem mais holofotes do que merece. O verdadeiro poder radica em personagens menos conhecidos, como Cunha, que se mexem nas sombras. E as doações milionárias entram na conta dele.
Mas eu comecei dizendo que tudo o que está acontecendo em torno da operação Lava Jato poderia ser uma oportunidade excepcional para discutir seriamente o problema da corrupção no Brasil e a forma com que ela prejudica a democracia. Poderia ser, mas não está sendo. A maioria da imprensa e alguns líderes da oposição com espaço na mídia está tentando passar a impressão de que se trata, apenas, de um novo "escândalo de corrupção do PT".
Delegados e fontes do judiciário ligadas a partidos de direita vazam de forma seletiva informações que envolvem apenas os corruptos petistas, mas escondem as que poderiam prejudicar os corruptos tucanos ou de outros partidos. Tudo passa a ser “culpa da Dilma, do Lula e dos petralhas". E o PSDB e seus aliados da direita tentam se apropriar da operação e se apresentar como os paladinos da moral e da honestidade que querem nos livrar dessas mazelas. Hipócritas!
É claro a corrupção na Petrobras durante os governos petistas que tem que ser investigada — mas também durante os governos tucanos e os governos anteriores aos tucanos! É claro que temos que investigar todos os funcionários e parlamentares envolvidos nos esquemas, seja do partido que forem. O PT e seus aliados têm uma enorme responsabilidade nisso tudo. Mas enquanto pensarmos na corrupção apenas como uma sucessão de casos particulares e olharmos para ela apenas como um problema moral seremos como aquele personagem da publicidade "Sabe de nada, inocente!". O escândalo está sendo instrumentalizado por uma parte da imprensa não apenas para atacar o governo, mas também para colocar a Petrobras no alvo de discursos privatizadores! Ou seja, a questão é muito mais complexa!
Por isso, e se realmente quisermos fazer algo que tenha impacto real contra a corrupção, o primeiro passo é acabar com o financiamento empresarial de campanha. A OAB apresentou no Supremo Tribunal Federal uma ADIN (ação direta de inconstitucionalidade) para proibi-lo, e tem todo o apoio do PSOL. Seis dos onze ministros já votaram favoravelmente, mas o ministro Gilmar Mendes, Advogado Geral da União durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso, pediu vistas do processo em abril desse ano e, desde então, nada fez a respeito.
Diversos movimentos sociais e políticos lançaram a campanha #devolvegilmar, para que o ministro conclua suas vistas e permita que ela seja julgada. O fim do financiamento empresarial de campanhas deveria ser, também, um dos principais eixos da reforma política que o Brasil precisa. Porque com um Congresso cujos integrantes foram financiados pelas principais empreiteiras envolvidas nesses esquemas, não haverá "CPI das empreiteiras", da mesma forma que não avançará a CPI da Petrobrás. Tudo será tratado como mais um escândalo.
Se quisermos que a corrupção deixe de ser, apenas, o tema favorito das manchetes de jornal, e passe a ser combatida de forma realista e eficaz, sem hipocrisia, precisamos produzir reformas estruturais no sistema político e econômico e não apenas fazer julgamentos morais partidarizados. Precisamos cortar um dos principais rios de dinheiro que corrompe a política e, ao mesmo tempo, diminui o poder dos eleitores, transformando os governos e o Congresso em reféns dos interesses de um pequeno grupo de empresários com negócios bilionários.
Devolve, Gilmar! Vamos falar sério dessa vez!

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Acordo determina permanência de comunidade indígena em fazenda no MS Comunidade Pyelito Kue é a mesma que, em outubro de 2012, escreveu carta anunciando suicídio coletivo

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no Rede Brasil Atual

São Paulo – Acordo mediado pelo Ministério Público Federal (MPF), no último dia 14, assegura a permanência da comunidade indígena Pyelito Kue, na fazenda Cambará, no município de Iguatemi (MS). Pela determinação, a comunidade ficará em uma área de 97 hectares, mas deve deixar a sede administrativa da propriedade até 4 de dezembro.
Os indígenas ocupam a fazenda Cambará há dois anos e, por isso, estão sendo processados. O acordo prevê a suspensão do processo contra a comunidade até que seja feita pela Fundação Nacional do Índio (Funai) a demarcação de terras.
O antropólogo Spensy Pimentel disse ontem (18) à Rádio Brasil Atual que os Pyelito Kue saíram das reservas próximas a Iguatemi e ocuparam a fazenda por não aguentarem a situação de conflito armado, em que fazendeiros e pequenos agricultores atingem a comunidade. Pimentel acrescenta que já existem 40 mil hectares na região sinalizados pela Funai como terras indígenas.
Eles são os mesmos índios que, em outubro de 2012, escreveram uma carta, após determinação da Justiça para que saíssem da fazendo que ocupavam, em que afirmaram estarem prontos para morrer. "A terra indígena desse grupo é a terra Iguatemi, que já teve seu relatório de identificação publicado no início do ano passado depois, justamente, de um temor que aconteceu por conta de uma carta que essa comunidade publicou e ficou famosa", relatou Pimentel.
Na visão do antropólogo, o acordo significa um avanço para a região do Mato Grosso do Sul, pois permite que outras comunidades consigam negociar territórios para ficar instaladas enquanto aguardam demarcação de sua terra de origem. "Hoje fala-se de acordos necessários no Mato Grosso do Sul com relação aos Guarani Kayowá, o segundo maior grupo de indígenas no Brasil, são quase 50 mil e mais de 70 comunidades, e esse grupo passa por uma situação de crise humanitária", disse.
O dono da fazenda concordou em permitir construção de escola, casa de reza, instalação de energia elétrica e outras instalações necessárias para a sobrevivência digna da comunidade. A Funai se comprometeu a ajudar os índios a preparar solo para plantio e fornecer produtos agrícolas.

Tamires Gomes, da periferia ao Centro Acadêmico, via Prouni A primeira mulher negra a presidir um CA no Mackenzie atribui avanços sociais do país aos movimentos, é devota da participação política e avisa aos que se acham donos da política: a juventude pede passagem

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Para Tamires, sociedade brasileira nunca foi estimulada a pensar coletivamente. 'Muita gente confunde democracia com fazer o que quer'

por José Gilbert Arruda Martins (Professor)

Sou professor de História. Trabalho em uma Escola Pública aqui em Brasília. Nossos alunos e alunas são em sua maioria de cidades satélites, inclusive, muitos (as) do Entorno. São estudantes filhos e filhas de trabalhadores. Muitos viajam cerca de 30 a 50 km até a escola no Plano Piloto.

Nossa escola não conhece a questão negra. Nossos jovens não têm aula sobre a África.

Um colega, foi surpreendido, quando resolveu passar um filme sobre a África, mais precisamente sobre religiões afro-brasileiras, parte dos estudantes se recusou a assistir e ameaçaram sair da sala de aula.

Precisamos, agora no início do próximo ano, planejar toda a escola, não apenas o curso ou disciplina de História, mas todo a comunidade, para trabalharmos a História do continente africano do início ao fim do ano. A África é importante demais, para se reduzir a palestras pontuais e/ou eventos de curtíssima duração e folclorizado como vem acontecendo nas escolas públicas do Brasil há anos.

Parabéns Tamires, força, muita força e continue sua luta.

Tamires Gomes, da periferia ao Centro Acadêmico, via Prouni

A primeira mulher negra a presidir um CA no Mackenzie atribui avanços sociais do país aos movimentos, é devota da participação política e avisa aos que se acham donos da política: a juventude pede passagem

por Paulo Donizetti de Souza-  no Rede Brasil Atual

A técnica em laboratório Rosemary Gomes Sampaio, 47 anos, contou com a ajuda dos pais e irmãos para criar a filha única. Moradora da zona leste de São Paulo, trabalhava em posto de saúde da prefeitura paulista enquanto cursava a faculdade de Psicologia em Guarulhos, na região metropolitana. No início da década passada, saiu do aluguel para o atual apartamento em Guaianazes – num prédio de quatro andares, dois dormitórios, sala, cozinha e banheiro. Rosemary sempre foi frequentadora do sindicato dos servidores e ativista do movimento negro. Levava tanto a filha pequena em eventos e manifestações que, Tamires Gomes Sampaio, fã incondicional da mãe, desenvolveu paixão própria por “participar das coisas”.
Tamires faz 21 anos neste 13 de novembro. Desde os 18, começou a militar com as próprias pernas e opiniões em movimentos contra a violência policial sobre a juventude negra e contra a discriminação racial. Em setembro tornou-se a primeira mulher, negra, moradora da periferia, bolsista do Prouni, a presidir o Centro Acadêmico João Mendes Júnior, da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, uma das instituições privadas mais tradicionais de São Paulo. Sua chapa, Catarse, foi formada por integrantes da Frente Perspectiva, coletivo de estudantes de esquerda de diversos matizes ideológicos. Venceu a eleição com maior número de participantes da história do CA, pouco mais de 1.600. “Diante de 6.600 alunos do Direito, é pouco ainda, né?”
Para ela, a participação política é a principal atitude que a sociedade pode ter para mudar a realidade. As políticas de cotas, ações para a juventude pobre, a criação de órgãos como a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e o Estatuto da Igualdade Racial são resultados práticos de demandas dos movimentos sociais transformadas em políticas públicas. “Elas ainda precisam ser melhoradas e ampliadas, mas já surtem efeitos nas condições de vida e na criação de oportunidades para muita gente que não tinha”, avalia, ela própria um exemplo de oportunidade.
Tamires sempre estudou em escola pública. Conseguiu bolsa para fazer cursinho pré-vestibular enquanto terminava o colégio. Por meio das notas no Enem, e graças ao Prouni, conseguiu ingressar, em 2011, e se manter até hoje no Mackenzie. Lá, nunca se considerou diretamente discriminada em razão de sua origem. “É o ambiente da universidade que compõe um retrato mais amplo do processo de discriminação que está na formação da nossa sociedade”, observa. “Você sente ao entrar no campus, passar por um segurança negro, deparar com a faxineira negra no banheiro e chegar numa sala com 80 alunos e apenas quatro negros. E ver outras que não têm nenhum.”
O feminismo discutido fora da questão racial não traz a emancipação de todas as mulheres. Se a gente não consegue protagonismo para todas, não serão todas as emancipadas; será a branca e ‘tudo bem’, vivemos em uma sociedade racista
Como é a rotina de estudante que leva o curso a sério, faz estágio, preside um Centro Acadêmico de quase 60 anos de tradição e ainda participa de movimentos sociais?
(risos) Eu saio de casa às 6h da manhã para chegar na faculdade às 7h30. Com atividade no Centro Acadêmico, fico entrando e saindo no decorrer da aula várias vezes, os professores ficam até meio “assim” comigo. Saio da aula, passo mais um tempo no CA, almoço, vou para o estágio na Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da prefeitura, às 13h30, à noite volto para o CA e fico até umas 22h. E aí, se tem manifestação a gente vai, se tem reunião a gente vai... O CA representa 6.600 alunos – só da Faculdade de Direito. Participaram da eleição pouco mais de 1.600 votantes, a maior participação da história da faculdade, e mesmo assim a gente percebe que ainda é pouco, né? É preocupante. É como nas eleições gerais, que tiveram 20% de abstenção. A gente luta tanto por democracia para as pessoas não participarem? Nossa chapa, Catarse, teve 627 votos e uma vantagem de mais de 200 sobre a segunda colocada – e isso foi surpreendente, porque a gente se elegeu dizendo que era de esquerda, que queria fazer o combate às opressões, que faltava horizontalidade para estimular a participação dos alunos nos assuntos da universidade. Na semana seguinte já estávamos organizando sabatinas entre candidatos a cargos legislativos, e temos dito que é preciso estimular o movimento estudantil no Mackenzie. Muitos vêm falar com a gente, parabenizar. E não falta também oposição. Faz parte.
Você observa uma relação de ódio permeando as divergências na sociedade?
Nossa sociedade nunca foi estimulada a pensar coletivamente. Muita gente confunde democracia com “fazer o que a gente quer”. Como se se resumisse a poder votar e seu candidato ganhar, se ele não ganhar os que votaram nos outros estão errados, são burros. E isso acontece com gente de oposição e da situação. A gente vê as pessoas perdendo a capacidade de aceitar a crítica e de ser tolerante com a opinião do outro. Não sei de onde vem essa predisposição. Acho que é um misto de várias coisas. Uma delas é o processo de educação, que não estimula a formação crítica, o pensar, debater ideias. Outra é essa luta de classes diária, parcela da sociedade mais abastada pensa de uma forma, e outra parcela que não teve acesso a tantas oportunidades pensa de outra. São vários pontos de vista sobre o Brasil – e tudo isso é o Brasil – mas essas pessoas não conseguem entender essa diversidade de ideias, cultural, étnica e de gênero que a gente tem. A gente vive em uma sociedade estruturalmente racista, machista, classista, homofóbica, e isso se reflete nessas ações.  
Que tipo de leitura a atrai e faz parte da sua formação?
Gosto muito de filosofia, de ciência política. A nossa chapa, a Catarse, utilizou esse termo porque o Gramsci (o pensador antifascista italiano Antonio Gramsci, 1831-1937) considera catarse a transição de um momento mesquinho, individual, para um momento ético-político em que todo mundo vai ser representado. A gente queria fazer uma catarse no movimento estudantil, para o CA deixar de ser de um grupo e representar a coletividade. Estou lendo muito sobre segurança pública, pois meu trabalho de conclusão de curso vai ser sobre o genocídio da juventude negra. Estou lendo muito sobre o sistema prisional, a desmilitarização da polícia, a mentalidade policial. Esse é o meu foco. Como sou militante do movimento negro, acho que o movimento deve vir até a academia, ocupar a academia para, combinado com pesquisas, dados concretos, trazer a realidade para dentro da academia. Por exemplo, a gente sabe que a Polícia Militar mata três vezes mais jovens negros do que brancos. Se a gente não tiver a academia mostrando que não são dados da minha boca, mas de uma pesquisa de um grupo de pesquisadores da UFSCar, a gente não consegue convencer todo o mundo. A gente vive em um país que viveu dois terços da sua história sob regime de escravidão e, ao assinar a Lei Áurea, um papel, não se acabou o processo de exploração e opressão de uma raça sobre outra. Não foi feita nenhuma política de inserção da raça que foi explorada. E não existe mágica. Esse preconceito histórico se tornou estrutural e, hoje, institucional.
Junho de 2013 foi um momento em que as pessoas foram para as ruas e mostraram que participação social pode mudar o curso de um governo. Os antigos meios de se organizar precisam se transformar também
A polícia pode funcionar sem ter a força da arma e da hierarquia militar?
Não tenho respostas, mas acho que a transformação vem a partir da educação. Falta formação crítica nas escolas, onde vão estudar inclusive crianças e jovens que um dia vão querer ser policiais. Precisa haver uma formação mais humanizada dos policiais, e uma formação mais crítica da sociedade para cobrar que se cumpra a lei. Por exemplo, a Lei 10.639, que exige o ensino da história afro-brasileira. Se a gente tivesse essa disciplina bem aplicada, seria muito diferente. Nossa cultura é muito grande, a religião é muito rica. A ausência do ensino desse processo histórico acaba refletindo na formação da personalidade do negro, que é criado para não ter a autoestima, não ocupar os espaços de poder.
Você é religiosa?
Sou batizada na Igreja Católica, fiz catequese, mas não adotei religião. Ultimamente tenho estudado sobre o candomblé, umbanda. Nas escolas, não se tem noção de que a África é um continente com tanta diversidade. É a partir do movimento negro que você descobre que a diversidade cultural é enorme. Sou muito curiosa. A religião africana é fascinante, orixás, guerreiras... Se, antigamente, as nossas referências de mulheres bonitas eram Branca de Neve e Cinderela, ali você descobre Iansã, Oxum, Iemanjá, princesas guerreiras. Isso é muito bacana porque você passa a ter referência de uma mulher negra bela, guerreira, rainha, com poderes para influenciar positivamente a vida das pessoas, e isso muda bastante a concepção de como você se vê.
Você também atua em questões de gênero? Acompanho alguns grupos. Por exemplo, sou coordenadora nacional do Para Todas, um coletivo de movimentos estudantis, que se organiza nas universidades do Brasil inteiro, a partir da UNE. Acompanho a Marcha Mundial de Mulheres. Minha mãe fez um curso de promotoras legais, que surgiu depois da Lei Maria da Penha e estimula pessoas da comunidade a mediar conflitos, e eu acompanho também. O debate de gênero está muito ligado à questão do racismo, na minha concepção, porque são opressões estruturais. A gente tem de debater isso em todos os espaços porque não é uma questão pontual. O feminismo, em si, é uma questão muito diversa porque, mesmo na questão de gênero, a questão de raça é deixada de lado. É progressista, quer a transformação social, mas se é colocada uma questão de raça, dificilmente é considerada com tranquilidade. De um tempo para cá, as mulheres negras têm se auto-organizado numa vertente diferente, o feminismo negro. Se a mulher branca sofre machismo, a mulher negra sofre o machismo e o racismo, o tratamento diferente, e é importante saber fazer essa ligação e esse recorte.
Os movimentos de mulheres, descolados da questão racial, têm conseguido ampliar mais seus espaços de oportunidade? É uma causa que tem alcançado resultados mais efetivos?
Por exemplo, na minha sala de aula são 80 pessoas, 50 são mulheres. Na maior parte das salas de aula, na universidade, as mulheres têm ocupado os espaços, mas a mulher negra não. São apenas duas universitárias negras na minha sala. O feminismo discutido fora da questão racial não traz a emancipação de todas as mulheres. Cada mulher tem a sua especificidade. Se a gente não consegue dar o protagonismo para todas, não serão todas as que serão emancipadas. Vai ser a mulher branca, porque a gente vive em uma sociedade racista, e tudo bem. A gente tem sempre de fazer esse recorte, porque senão não teremos a emancipação, de fato, de todas as mulheres.
A Dilma é guerreira, enfrentou a ditadura e enfrentou o ódio. E venceu. Que bom. Mas o resultado da eleição mostrou que é preciso diálogo, e o PT voltar às bases. Senão, na próxima vai perder
Você acha que a presidenta Dilma conseguiu uma grande vitória por enfrentar uma situação de massacre da imprensa e mesmo assim vencer, ou acha que o resultado apertado é para o governo e o PT quase uma derrota?
Um pouco das duas coisas. O resultado mostrou para o governo e para o PT que, se continuar esse modo de política e de governo, sem diálogo direto com o movimento social, como aconteceu nos últimos anos, na próxima eleição vai perder. Ainda assim, é uma grande vitória porque prevaleceu sob vários ataques. A Dilma é uma mulher guerreira, que enfrentou a ditadura e se mostrou forte, mostrou que consegue enfrentar qualquer coisa. Enfrentou o ódio. A gente falava que a esperança vai vencer o ódio, o amor vai vencer o ódio, e venceu. Que bom que venceu. Mas o governo e o PT precisam entender que não dá pra fazer política como vem sendo feita nos últimos anos. Se continuar nessa politica de concessão, o governo vai pender para a direita. É perigoso. O PT, historicamente de esquerda, fez uma transformação social muito grande. Se se deixar levar por esse Congresso que aí está, ou por acordos como os que foram feitos nos últimos anos, vai acabar toda a história.
Espero que tanto o PT como o governo tenham entendido esse recado dado pelas urnas. A gente saiu do mapa da miséria. Agora, o negro pode fazer universidade, pode trabalhar no serviço público, em cargos importantes. Tem o Pronatec, o Bolsa Família, vários outros programas que propiciaram uma transformação muito grande. A “nova classe média”, que surgiu no governo do PT, está votando no PSDB. Um colega da chapa conservadora na eleição do CA é negro, prounista e votou no Aécio. Tenho outro colega negro, prounista, filiado ao PSDB. Isso, em muito, culpa do PT que não fez esse debate na sociedade. Precisa fazer, voltar às bases. Dialogar com os movimentos sociais não só no momento da campanha, mas durante os quatro anos de governo.
Em que área do Direito você pretende se especializar? Em princípio penso na área penal, mas preciso amadurecer isso. Sei que quero ser professora universitária. Mas ainda não sei se vou ser advogada... criminal, se vou pleitear o Ministério Público, que foi o que me moveu a entrar na faculdade. Aí a gente vai percebendo que o Ministério Público não funciona como deveria.
Você escreveu em seu blog que 2013 foi um ano “muito louco” em sua vida. Por quê?
Ah, você encontrou meu blog? O ano passado foi especial porque depois dos 18 anos, quando parei de ser uma acompanhante da minha mãe em atividades de militância, passei a ser a militante Tamires. Então participei de congresso da UNE, de encontros de mulheres da UNE, da conferência de igualdade racial – tanto no encontro regional como no nacional –, foi um ano em que mergulhei de cabeça em movimentos sociais, feminista, negro, partido, e isso me transformou muito. Porque a luta transforma, muda o seu modo de ver as coisas, parece que havia uma venda nos meus olhos que sumiu a partir do momento em que mergulhei nela. Por isso 2013 mudou bastante a minha vida. Fora as manifestações de junho, que transformaram a sociedade como um todo. Foi um momento em que as pessoas foram para as ruas e mostraram que a participação social pode mudar o curso de um governo. Foi um momento que mostrou também que os antigos meios de se organizar estão ultrapassados, precisam se transformar também.
Foi um recado contra a política tradicional e os políticos tradicionais. Mas não foi esse o setor que se saiu melhor nas eleições para o Congresso, e quase também na presidencial? O PT perdeu mais que os conservadores pouco identificados pela marca partidária?
Não sei se foi o PT, só. A esquerda em geral, incluídas as organizações e movimentos tradicionais da sociedade que se organizam há muito tempo. Foi passado um recado. Tem de haver uma oxigenação. Terão de passar a ouvir mais essa juventude que está aí e quer lutar – e que não viveu as lutas que eles viveram no passado, mas que viveu essas jornadas de agora e quer se manifestar, quer uma forma diferente de se organizar. Se não houver essa autocrítica, em reconhecer que essa juventude que está se manifestando não quer mais ser comandada por quem se acha dono da política porque é mais velho e participou de outras lutas, esses setores serão engolidos por essa galera que está se organizando de outra forma.

A importância da imaginação pós-capitalista

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David Harvey mergulha no estudo das contradições do sistema e busca alternativas: desmercantilização, propriedade comum, renda básica permanente, gratuidades…
Entrevista a Ronan Burtenshaw e Aubrey Robinson* | Tradução Vila Vudu
Mês que vem completam-se cinco anos que Lehman Brothers foram protagonistas do maior caso de falência de banco na história dos EUA. O colapso sinalizou o início da Grande Depressão – a crise mais substancial do capitalismo mundial desde a 2ª Guerra Mundial. Como entender os fundamentos desse sistema agora em crise? E, com o sistema em guerra contra a classe trabalhadora, sob o disfarce da “austeridade”, como imaginar um mundo depois disso?
Poucos pensadores geraram respostas mais influentes para essas perguntas que o geógrafo marxista David Harvey. Aqui, em entrevista recente, ele fala a Ronan Burtenshaw e Aubrey Robinson sobre esses problemas.
Você está trabalhando agora num novo livro, The Seventeen Contradictions of Capitalism [As 17 contradições do capitalismo]. Por que focar essas contradições? 
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A análise do capitalismo sugere que são contradições significativas e fundamentais. Periodicamente essas contradições saem de controle e geram uma crise. Acabamos de passar por uma crise e acho importante perguntar que contradições nos levaram à crise? Como podemos analisar a crise em termos de contradições? Uma das grandes ditos de Marx foi que uma crise é sempre resultado das contradições subjacentes. Portanto, temos de lidar com elas próprias, não com os resultados delas.
Uma das contradições a que você se dedica é a que há entre o valor de uso e o valor de troca de uma mercadoria. Por que essa contradição é tão fundamental para o capitalismo e por que você usa a moradia para ilustrá-la?
Temos de começar por entender que todas as mercadorias têm um valor de uso e um valor de troca. Se tenho um bife, o valor de uso é que posso comê-lo, e o valor de troca é quanto tenho de pagar para comê-lo.
A moradia é muito interessante, nesse sentido, porque se pode entender como valor de uso que ela garante abrigo, privacidade, um mundo de relações afetivas entre pessoas, uma lista enorme de coisas para as quais usamos a casa. Houve tempo em que cada um construía a própria casa e a casa não tinha valor de troca. Depois, do século 18 em diante, aparece a construção de casas para especulação – construíam-se sobrados georgianos [reinado do rei George, na Inglaterra] para serem vendidos. E as casas passaram a ser valores de troca para consumidores, como poupança. Se compro uma casa e pago a hipoteca, acabo proprietário da casa. Tenho pois um bem, um patrimônio. Assim se gera uma política curiosa – “não no meu quintal”, “não quero ter gente na porta ao lado que não se pareça comigo”. E começa a segregação nos mercados imobiliários, porque as pessoas querem proteger o valor de troca dos seus bens.
Então, há cerca de 30 anos, as pessoas começaram a usar a moradia como forma de obter ganhos de especulação. Você podia comprar uma casa e “passar adiante” – compra uma casa por £200 mil, depois de um ano consegue £250 mil por ela. Você ganha £50 mil, por que não? O valor de troca passou a ser dominante. E assim se chega ao boom especulativo. Em 2000, depois do colapso dos mercados globais de ações, o excesso de capital passou a fluir para a moradia. É um tipo interessante de mercado. Você compra uma casa, o preço da moradia sobe você diz “os preços das casas estão subindo, tenho de comprar uma casa”, mas outro compra antes de você. Gera-se uma bolha imobiliária. As pessoas ficam presas na bolha e a bolha explode. Então, de repente, muitas pessoas descobrem que já não podem usufruir do valor de uso da moradia, porque o sistema do valor de troca destruiu o valor de uso.
E surge a pergunta: é boa ideia permitir que o valor de uso da moradia, que é crucial para o povo, seja comandado por um sistema louco de valor de troca? O problema não surge só na moradia, mas em coisas como educação e atenção à saúde. Em vários desses campos, liberamos a dinâmica do valor de troca, sob a teoria de que ele garantirá o valor de uso, mas o que se vê frequentemente, é que ele faz explodir o valor de uso e as pessoas acabam sem receber boa atenção à saúde, boa educação e boa moradia. Por isso me parece tão importante prestar atenção à diferença entre valor de uso e valor de troca.
Outra contradição que você comenta envolve um processo de alternar, ao longo do tempo, entre a ênfase na oferta, na produção, e ênfase na demanda, pelo consumo, que se vê no capitalismo. Pode falar sobre como esse processo apareceu no século 20 e por que é tão importante?
Uma grande questão é manter uma demanda adequada de mercado, de modo que seja possível absorver seja o que for que o capital esteja produzindo. Outra, é criar as condições sob as quais o capital possa produzir com lucros.
Essas condições de produção lucrativa quase sempre significam suprimir a força de trabalho. Na medida em que se reduzem salários – pagando salários cada vez menores –, as taxas de lucro sobem. Portanto, do lado da produção, quanto mais arrochados os salários, melhor. Os lucros aumentam. Mas surge o problema: quem comprará o que é produzido? Com o trabalho arrochado, onde fica o mercado? Se o arrocho é excessivo, sobrevém uma crise, porque deixa de haver demanda suficiente que absorva o produto.
A certa altura, a interpretação generalizada dizia que o problema, na crise dos anos 1930s foi falta de demanda. Houve então uma mudança na direção de investimentos conduzidos pelo Estado, para construir novas estradas, o WPA [serviços públicos, sob o New Deal] e tudo aquilo. Diziam que “revitalizaremos a economia” com demanda financiada por dívidas e, ao fazer isso, viraram-se para a teoria Keynesiana. Saiu-se dos anos 1930s com uma nova e forte capacidade para gerenciar a demanda, com o Estado muito envolvido na economia. Resultado disso, houve fortes taxas de crescimento, mas as fortes taxas de crescimento vieram acompanhadas de maior poder para os trabalhadores, com salários crescentes e sindicatos fortes.
Sindicatos fortes e altos salários significam que as taxas de lucro começam a cair. O capital entra em crise, porque não está reprimindo suficientemente os trabalhadores. E o “automático” do sistema dá o alarme. Nos anos 1970s, voltaram-se na direção de Milton Friedman e da Escola de Chicago. Passou a ser dominante na teoria econômica, e as pessoas começaram a observar a ponta da oferta – sobretudo os salários. E veio o arrocho dos salários, que começou nos anos 1970s. Ronald Reagan ataca os controladores de tráfego aéreo; Margaret Thatcher caça os mineiros; Pinochet assassina militantes da esquerda. O trabalho é atacado por todos os lados – e a taxa de lucros sobe. Quando se chega aos anos 1980s, a taxa de lucro dá um salto, porque os salários estão sendo arrochados e o capital está se dando muito bem. Mas surge o problema: a quem vender aquela coisa toda que está sendo produzida.
Nos anos 1990s tudo isso foi recoberto pela economia do endividamento. Começaram a encorajar as pessoas a tomarem empréstimos – começou uma economia de cartão de crédito e uma economia de moradia pesadamente financiada por hipotecas. Assim se mascarou o fato de que, na realidade, não havia demanda alguma. Em 2007-8, esse arranjo também desmoronou.
O capital enfrenta essa pergunta, “trabalha-se pelo lado da oferta ou pelo lado da demanda”? Minha ideia, para um mundo anticapitalista, é que é preciso unificar tudo isso. Temos de voltar ao valor de uso. De que valores de uso as pessoas precisam e como organizar a produção de tal modo que satisfaça à demanda por aqueles valores de uso?
Hoje, tudo indica que estamos em crise pelo lado da oferta. Mas a austeridade é tentativa de encontrar solução pelo lado da demanda. Como resolver isso? 
É preciso diferenciar entre os interesses do capitalismo como um todo e o que é interesse especificamente da classe capitalista, ou de uma parte dela. Durante essa crise, a classe capitalista deu-se muitíssimo bem. Alguns saíram queimados, mas a maior parte saiu-se extremamente bem. Segundo estudo recente, nos países da OECD a desigualdade econômica cresceu significativamente desde o início da crise, o que significa que os benefícios da crise concentraram-se nas classes mais ricas. Em outras palavras, os ricos não querem sair da crise, porque a crise lhes traz muitos lucros.
A população como um todo está sofrendo, o capitalismo como um todo não está saudável, mas a classe capitalista – sobretudo uma oligarquia que há ali – está muito bem. Há várias situações nas quais capitalistas individuais operando conforme os interesses de sua classe, podem de fato fazer coisas que agridem muito gravemente todo o sistema capitalista. Minha opinião é que, hoje, estamos vivendo uma dessas situações.
Você tem repetido várias vezes, recentemente, que uma das coisas que a esquerda deveria estar fazendo é usar nossa imaginação pós-capitalista, e começar por perguntar como, afinal, será um mundo pós-capitalista. Por que isso lhe parece tão importante? E, na sua opinião, como, afinal, será um mundo pós-capitalista? 
É importante, porque há muito tempo trombeteia-se nos nossos ouvidos que não há alternativa. Uma das primeiras coisas que temos de fazer é pensar a alternativa, para começar a andar na direção de criá-la.
A esquerda tornou-se tão cúmplice com o neoliberalismo, que já não se vê diferença entre os partidos políticos da esquerda e os da direita, se não em questões nacionais ou sociais. Na economia política não há grande diferença. Temos de encontrar uma economia política alternativa ao modo como funciona o capitalismo. E temos alguns princípios. Por isso as contradições são interessantes. Examina-se cada uma delas, por exemplo, a contradição entre valor de uso e valor de troca e se diz – “o mundo alternativo é mundo no qual se fornecem valores de uso”. Assim podemos nos concentrar nos valores de uso e tentar reduzir o papel dos valores de troca.
Ou, na questão monetária – claro que precisamos de dinheiro para que as mercadorias circulem. Mas o problema do dinheiro é que pessoas privadas podem apropriar-se dele. O dinheiro torna-se uma modalidade de poder pessoal e, em seguida, um desejo-fetiche. As pessoas mobilizam a vida na procura por esse dinheiro, até quem não sabe que o faz. Então, temos de mudar o sistema monetário – ou se taxam todas as mais-valias que as pessoas comecem a obter ou criamos um sistema monetário no qual a moeda se dissolve e não pode ser entesourada, como o sistema de milhagem aérea.
Mas para fazer isso, é preciso superar a dicotomia estado/propriedade privada, e propor um regime de propriedade comum. E, num dado momento, é preciso gerar uma renda básica para o povo, porque se você tem uma forma de dinheiro antipoupança é preciso dar garantia às pessoas. Você tem de dizer “você não precisa poupar para os dias de chuva, porque você sempre receberá essa renda básica, não importa o que aconteça”. É preciso dar segurança às pessoas desse modo, não por economias privadas, pessoais.
Mudando cada uma dessas coisas contraditórias chega-se a um tipo diferente de sociedade, que é muito mais racional que a que temos hoje. Hoje, o que acontece é produzimos e, em seguida, tentamos persuadir os consumidores a consumir o que foi produzido, queiram ou não e precisem ou não do que é produzido. Em vez disso, temos de descobrir quais os desejos e vontades básicas das pessoas e mobilizar o sistema de produção para produzir aquilo. Se se elimina a dinâmica do valor de troca, é possível reorganizar todo o sistema de outro modo. Pode-se imaginar a direção na qual se moverá uma alternativa socialista, se nos afastamos da forma dominante da acumulação de capital que hoje comanda tudo.

* Esse é um trecho da entrevista, publicado hoje. A íntegra da entrevista será publicada na edição de outono de The Irish Left Review (http://www.irishleftreview.org/ )
Confira em nossa livraria algumas obras do autor em promoção.

Democracia: a alternativa radical do Podemos

Manifestação dos "Indignados", movimento que deu origem ao "Podemos", Para Pablo Iglesias, referência do grupo, "o poder não teme à esquerda mas, sim, ao povo organizado
Manifestação dos “Indignados” espanhóis, de onde surgiu o “Podemos”, Para Pablo Iglesias,  referência do grupo, “o poder não teme à esquerda mas, sim, ao povo organizado”
É possível desafiar o sistema político, propor transformações sociais profundas e disputar eleições com chances reais? Novo partido-movimento ensina algo
Pablo Iglesias, entrevistado por Olga Rodríguez, no El Desconcierto | Tradução João Victor Moré Ramos
Milhões de brasileiros viverão, hoje, uma experiência democrática restrita. Seu voto elegerá o principal governante do país e diferenças reais, entre os candidatos, tornam a eleição muito relevante. Mas só os muito ingênuos engolirão o velho slogan que a TVs matraqueará ao longo do dia. Não viveremos a “festa da democracia”.
Ela está em declínio em todo o mundo, como lembrou José Saramago, há quase quinze anos. No Brasil, talvez a marca principal de seu esvaziamento seja a promiscuidade entre sistema político e poder econômico. As leis permitiram às empresas financiar os partidos e suas campanhas. Para disputar eleições com chances, os candidatos – do presidente ao vereador – comprometem-se cada vez mais profundamente com o mundo corporativo. Aos poucos, a lógica do capital torna-se a dos políticos. As disputas eleitorais, cada vez mais custosas, reduzem-se a guerras de marketing. Temas essenciais para o país desaparecem do debate. Quem falou em Reforma Agrária, nos últimos meses? Quem abordou a necessidade de estabelecer uma rede de transportes públicos (inclusive uma malha ferroviária nacional) que nos livre da ditadura do automóvel?
A colonização da política pelo dinheiro é tão profunda que parece, às vezes, irreversível. A crítica estaria restrita aos que se condenam a permanecer à margem, e por isso impotentes – ou pregando o voto nulo, ou defendendo candidaturas inviáveis. Por isso, vale examinar certas experiências inovadoras que estão conseguindo vencer este círculo de ferro. São poucas, mas efetivas – e dialogam diretamente com nosso cenário.
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Na entrevista a seguir, Pablo Iglesias, principal referência do grupo político espanholPodemos, expõe a ascensão surpreendente deste partido-movimento que se surgiu este ano, a partir do movimento dos Indignados e se transformou, em pouco meses, na principal surpresa no cenário de seu país. Iglesias, um cientista político de apenas 35 anos, explica que pelo menos três de suas características são marcantes.
O Podemos mantém-se radical, na crítica à velha política que marcou os Indignados (“ni políticos, ni banqueros”). Rechaça uma possível estratégia de acúmulo gradual de forças por meio de alianças celebradas no interior do sistema. Sabe que seria contaminado pela lógica hegemônica, muito antes de conseguir desafiá-la. Rejeita, inclusive, receber qualquer tipo de financiamento corporativo – algo que seria viável, dado seu avanço eleitoral meteórico. Suas despesas são custeadas por arrecadação autônoma em rede (“crowdfunding”), com prestação de contas permanentemente atualizada, no site do movimento.
Mas, ao contrário do que recomendaria uma postura anarquista clássica, o Podemos não se recusa a disputar eleições. Percebe que, apesar da crise de desconfiança diante do mundo político, a esmagadora maioria da população continua a esperar algo das instituições tradicionais – inclusive porque não há, no momento, outra forma de coordenar a vida social. O movimento quer dialogar permanentemente com esta maioria, ao invés de se fechar numa atitude de vanguarda e se limitar ao debate cômodo com pequenos grupos de convertidos.
Como resultante das duas primeiras características, o Podemos assumiu um perfil em que se combinam um programa radicalmente à esquerda e uma ruptura com as formas tradicionais de organização partidária (inclusive as da esquerda clássica…). Suas três propostas principais para o cenário atual, explica Iglesias na entrevista, são o fim dos despejos de quem tornou-se inadimplente nos financiamentos imobiliários; a revisão da dívida pública (para que o Estado assegura direitos sociais) e o veto à presença de ex-dirigentes dos partidos nos conselhos de administração das grandes empresas (a principal forma de promiscuidade entre poder político e econômico, na Espanha).
Seus métodos incluem uma estrutura partidária reduzidíssima e ampla abertura de espaços para participação cidadã. A lista de candidatos do partido para as eleições ao Parlamento Europeu foi definida por votação direta, inclusive via internet. Rejeita-se, porém, o método de assembleia permanente, que leva a procrastinar “ad aeternum” as decisões. Iglesias lembra que, na construção de sua primeira lista eleitoral, o movimento foi mais democrático e mais ágil que todos os demais…
Ao assumir tais posições, o Podemos converte-se em algo como um partido-plebiscito. Sua contraposição tanto ao atual sistema político quanto aos rumos econômicos seguidos pela Espanha é tão radial que uma eventual vitória nas eleições produzirá, quase automaticamente, a necessidade de vasta reforma política. Por isso mesmo, o Podemos propõe uma Assembleia Constituinte, para rever por completo as instituições.
Este conjunto muito original de atitudes e programa tem se mostrado altamente popular. Constituído em janeiro deste ano, o Podemos disputou as eleições para o Parlamento Europeu apenas quatro meses depois. Estreou com 7,98% dos votos, elegendo cinco eurodeputados (Iglesias está entre eles). Continuou ganhando força. No início de setembro, pesquisas de opinião revelaram que o partido é agora apoiado par cerca de 21% dos eleitores e ameaça o tradicional monopólio que dois partidos tradicionais (PP, de direita, e PSOE, ex-social-democrata) exercem sobre a política institucional europeia. Especula-se que o Podemos pode ter força suficiente para vencer, em maio próximo, eleições municipais em grandes cidades – o que produziria um grande tremor político.
Segue a entrevista de Iglesias. Vale refletir sobre ela, no dia em que o Brasil vai novamente às urnas. Valerá, provavelmente, ainda mais, no período contraditório, cheio de possibilidades e riscos, que se abrirá a partir de 2015. (A.M.)
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Quais suas impressões ao reunir-se, em Bruxelas com Alexis Tsipras, [líder do Syriza, um partido-movimento que lidera as preferências populares na Grécia]?
A impressão é que existe um trabalho duro a ser feito e muita esperança de levar-lo a cabo. Com Tsipras, conversamos sobre a situação em nosso país, a situação na Grécia, e na Europa em geral. Fiquei satisfeito com a reunião, convencido de que ele pode ser o próximo presidente grego e com muita vontade de trabalhar com outros europeus do Sul — até porque não queremos ser uma colônia da Alemanha. Temos que construir outra Europa que defenda sua soberania, os direitos sociais e que ponha freio a algumas instituições a serviço dos bancos.
Em Outubro, o Podemos fará seu primeiro Congresso. Como evitar que seu crescimento espetacular o leve a ser um partido como os demais?
Qualquer um que se organize assume riscos. Somos conscientes disso. Cabe construir um espaço político com características novas. O êxito do Podemos tem a ver com um nível de protagonismo dos ativistas incompatível com a forma de partido que conhecemos até agora. Quem pensa com noções velhas não entendeu o processo político que nosso país está vivendo.
O Podemos apela à participação cidadã. Haverá mecanismos de controle, para evitar que ingressem personagens que não cumpram os requisitos éticos básicos?
Evidentemente, há riscos. A forma de decidir a lista de candidatos do Podemos para as eleições europeias não só foi a mais democrática, mas também a mais ágil. Se compararmos com as lutas internas e as guerras de famílias que se dá nas demais formações políticas, creio que estamos muito animados por ter feito as coisas de outra maneira. Claro: é preciso dotar-se de mecanismos éticos e queremos buscar fórmulas para que não haja, entre nossas listas de candidatos, pessoas que queira apenas aproveita-se de nossa popularidade. Já tivemos que enfrentar uma situação difícil, quando um prefeito (de Benicull) fez uma série de gestos de que não gostamos. Dissemos claramente que aqui há tolerância zero com desvios. [Depois de afastar-se de seu partido anterior, Esquerda Unidas, o prefeito Vicent Alberola anunciou que passaria ao Podemos, com todo seu grupo partidário na cidade. O Podemos respondeu que esta não era sua maneira de estar à frente de prefeituras, e que Alberola deveria participar dos processos internos de escolha de candidatos, se desejasse ingressar no movimento]
Especula-se sobre o futuro próximo das eleições municipais. Fala-se em cenários de confluência com outras forças à esquerda. Qual a sua opinião?
Temos que ser coerentes conosco mesmo. Buscar a unidade de esquerda está muito bom, mas temos que saber que o que realmente amedronta o poder é a unidade das pessoas. É preciso ser muito míope para pensar que o poder teme a esquerda. Um processo de confluência não se faz através de anúncios de dirigentes de organizações. Faz-se através da construção da soberania popular. O tabuleiro político na Espanha não é o eixo esquerda-direita, mas sim o eixo que separa democracia de oligarquia. Vamos trabalhar nessa direção. Com a mão estendida, para que todo mundo possa confluir, mas sem aceitar a unidade baseada nos velhos métodos.
Qual seu diagnóstico sobre o que passa no Partido Socialista (PSOE)?
O que passa no PSOE é a chave da crise do regime. Há uma distância enorme entre o que pensam as bases e as decisões que tomam suas elites, pertencentes a castas, que acabam em conselhos de administração de empresas e que, nas decisões estratégicas fundamentais, estão com o Partido Popular [PP, de direita]. A ultima prova foi sua postura ante a abdicação do rei [o PSOE recusou-se a apoiar o movimento cidadão que pedia um plebiscito sobre a continuidade ou não da monarquia]. Vivem num processo depasokização [referência aos socialistas gregos, o PASOK, que, depois de abandonar suas convicções, em meio à crise econômica, passou de detentor do governo a um partido minoritário]. Continuarão agonizando enquanto persistirem nas práticas atuais. É também uma das grandes pernas da grande coalizão — a grande coalizão que governa a Alemanha, a Grécia, a que aspira a governar na Europa.
O que necessita o PSOE para mudar?
Digo o que disse Julio Anguita: programa, programa, programa. Eu estou disposto a sentar-me com qualquer um. Diria a eles: acabemos com as portas giratórias [que, na Espanha, permitem aos dirigentes do PSOE e PP passar, "naturalmente", aos conselhos das grandes empresas]. Façamos uma reforma tributária, para que os ricos contribuam com a manutenção dos serviços públicas, uma auditoria publica da divida e uma lei de emergência para proibir os despejos [dos proprietários de imóveis endividados]. Se estiverem de acordo com isso, não tenho nenhum problema. Mas que não me digam que as mudanças no PSOE são a saída do [antigo secretário-geral Alfredo Pérez] Rubalcaba e a chegada de Carme Maria Chacón. Ela está dizendo agora que seu modelo é Matteo Renzi, que fez, na Itália, uma reforma (da lei eleitoral) pactuada com Berlusconi, para que somente dois partidos possam revezar-se no poder. O problema não é que haja mais ou menos rugas na cara de porta-vozes ou candidato, e sim as questões programáticas.
Qual é seu diagnóstico sobre a situação da Esquerda Unida?
Nas eleições europeias, alcançaram um resultado magnífico, triplicando seus votos em relação ao pleito anterior. Creio que se formularam bons planos para ocupar o espaço abandonado pelo PSOE entre os eleitores de esquerda, mas ainda há muito trabalho para se fazer por ali. Nós, talvez tenhamos feito uma analise diferente da situação.
Em que sentido?
Pensamos que a chave neste país não é colocar-se à esquerda do sistema político, do PSOE, e sim quebrar a relação que separa os cidadãos da oligarquia. A única maneira de construir uma maioria social é ter um projeto de país que assuma a possibilidade de converter essa maioria social, que já existe, em maioria política. Creio que certas etiquetas ideológicas tornam difícil para construir isso. Mas esperamos que todas as forças que estão no campo da democracia possam jogar-se no esforço pela abertura de um processo constituinte.
Como se constrói esse modelo diferente de que vocês falam?
É preciso conquistar o poder político. Mas este poder político, quem tem que conquistar são as pessoas. Nós dizemos que a democracia não é só se eleger a cada quatro anos, mas que o poder tem que estar nas mãos das pessoas. É muito importante acumular o poder suficiente para converter as instituições e os diferentes espaços sociais de democracia, de participação e de deliberação coletiva.
Quer margens resta para governar quando se tem que enfrentar um poder financeiro com controle sobre o poder político?
São margens de manobra difíceis. Por isso, dizemos que faz falta inclusive uma aliança geopolítica entre os povos e países ao sul da Europa. Não creio que haja solução no marco do Estado-Nação. A possibilidade dessas alianças geopolíticas se darem e de que algumas coisas comecem a mudar passa também pela conquista de espaços de poder administrativo em todos os âmbitos: municipal, autônomo [regional] e nacional.
Quando se fala de defender a soberania popular, a que se refere?
Não é casual que na campanha apelemos às Forças Armadas e à policia. Queremos assinalar que não se pode consentir que se convertam em guarda-costas dos ricos. A soberania não é ameaçar alguém por falar outra língua, a defesa da soberania não é negociar contratos nos campos de futebol ou em restaurantes reservados. Defender a soberania é defender os hospitais públicos, as escolas públicas, que as pessoas não sejam expulsas de suas casas. Para isso todos os setores sociais tem que se mobilizar.
O que seria a primeira exigência a Bruxelas [sede da União Europeia], se puder haver uma união de países da Europa do Sul?
Primeiro, que as instituições europeias têm que ser democráticas. E depois, que essas instituições não podem estar ao serviço de poderes financeiros ou bancos alemães, senão ao serviço da soberania, dos direitos civis, sociais e humanos que não hoje são sistematicamente desrespeitados na Europa. Não é algo particularmente radical. Estamos exigindo que se cumpra a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Se governarem a Espanha, quais as primeiras três medidas que adotariam?
Primeira: um decreto de lei de expropriação ou confisco das habitações vazias que estão em mãos dos bancos, para constituir um parque público de moradias. Em segundo lugar, a proibição das portas giratórias que comunicam o Conselho de Ministros com os conselhos de administração das grandes empresas. E em terceiro lugar, ordenar que se faça uma auditoria da divida pública, para avançar até sua reestruturação e ver que elementos dessa dívida são legítimos. Ou seja, recuperar a capacidade do Estado para resgatar seus cidadãos.
Também reivindicam a aposentadoria aos 60 anos ou uma renda mínima básica.
Defender uma renda mínima básica é reivindicar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz que toda pessoa tem direito a uma moradia, a vestimenta, a atenção à Saúde e a receber educação digna. Dizia Keynes, que não era nenhum revolucionário, que das crises não se saía empobrecendo as pessoas. Só podemos sair com políticas públicas que favoreçam o consumo e para isso as pessoas necessitam dinheiro para gastar. Quando existir uma renda básica, ninguém terá que humilhar-se e trabalhar por 400 euros ao mês.
Uma das estratégias fundamentais do Podemos tem sido levar em conta a importância da comunicação na política
Começamos com nosso programa La Tuerka com a vontade de criar um estilo diferente ao habitual das organizações de esquerda. Era preciso disputar palavras como democracia ou soberania. Em seguida, eles começaram a chamar a grande mídia, porque ampliavam audiência.
Ao que se deve o êxito de audiência?
Está relacionado às mudanças no país, os novos desafios colocados pelo 15M aos consensos imperantes até então. Sem nosso papel nos encontros e nas experiências do Podemos, não teria sido possível. Por isso é tão importante trabalhar em nosso programa, La Tuerka. Pode ser que um dia as mídias tradicionais deixem de nos chamar, mas necessitamos de um espaço para que o debate siga avançando. As pessoas não seguem os debates parlamentares. Os debates na televisão sim.
A Espanha é um dos países da Europa com mais diferença salarial entre homens e mulheres. Que propõem para impulsionar uma igualdade real?
Evitar medidas que somente sejam cosméticas. Creio que nesta campanha, por exemplo, abordou-se o tema do machismo de maneira muito limitada.
Por que?
O debate ficou em torno apenas de um comentário repugnante de alguém sobre uma mulher na televisão. No entanto, em nosso país, o rosto da precariedade e da greve é um rosto feminino. Esse rosto feminino não esteve presente em nenhum debate eleitoral. Pareceu que todo o machismo neste país resume-se a que Miguel Arias Cañete tenha feito um comentário esdrúxulo sobre Elena Valenciano. É preciso fazer políticas publicas sérias, que servirão para que a igualdade seja real também nos dados econômicos.
Sobre a organização territorial das regiões o Podemos apoia seu direito a decidir?
No caso da Catalunha, deverá ser o que decidiam os catalães e catalãs. Em nenhum caso, deve haver medo de que as pessoas expressem sua opinião sobre qualquer coisa. Parece-me uma piada que o partido Convergência e União [CiU, de direita, no poder na Catalunha] faea sobre soberania, quando o que tem sido feito foi destruir sistematicamente as bases do exercício de soberania por meio de privatizações, assumindo um modelo corrupto. Nós defendemos o direito de decidir sobre tudo. Isso quer dizer também decidir sobre as questões econômicas.
Diga-nos algum pensador e político de referências pra você.
Um dos que mais leio e debato é Immanuel Wallerstein. Dos clássicos, Antonio Gramsci. Perry Anderson me entusiasma, David Harvey é uma chave para organizar minhas aulas, Slavoj Zizek me diverte muitíssimo. Políticos de referencia: um espanhol, Julio Anguita, e um estrangeiro, Salvador Allende.
Como definiria sua ideologia politica?
Diria que socialista, mas socialista em um sentido que seguramente não tem nada a ver com a dos partidos socialistas atuais. Em términos de formação como politólogo sou claramente marxista. Mas essas etiquetas, quando se trata de fazer política, se simplificam muito porque não estamos em um momento em que determinadas diferenças serão chave em termos políticos. Agora mesmo o que nós estamos defendendo é algo majoritário: a democracia real, a democratização da economia, os direitos humanos.

Boaventura examina a “onda Podemos”

15/10/14 - Pablo Iglesias, principal referência do Podemos, fala a mais de 8 mil ativistas, reunidos em Madri, para abrir assembleia em que movimento começou a definir sua estratégia e princípios éticos coletivos
15/10/14 – Pablo Iglesias, principal referência do Podemos, fala a 8 mil ativistas, reunidos em Madri para assembleia em que movimento começou a definir sua estratégia e princípios éticos coletivos

POR BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS - no Outras Palavras

Partido-movimento sugere resgatar democracia sequestrada e pode impulsionar iniciativas semelhantes em todo o mundo – desde que não seja visto como solução mágica
Os países do Sul da Europa são social e politicamente muito diferentes, mas estão sofrendo o impacto da mesma política equivocada imposta pela Europa Central e do Norte, via União Europeia (UE), com resultados desiguais mas convergentes. Trata-se, em geral, de congelar a posição periférica destes países no continente, sujeitando-os a um endividamento injusto na sua desproporção, provocando ativamente a incapacitação do Estado e dos serviços públicos, causando o empobrecimento abrupto das classes médias, privando-os dos jovens e do investimento na educação e na pesquisa, sem os quais não é possível sair do estatuto periférico. Espanha, Grécia e Portugal são tragédias paradigmáticas.
Apesar de todas as sondagens revelarem um alto nível de insatisfação e até revolta perante este estado de coisas (muitas vezes expressadas nas ruas e nas praças), a resposta política tem sido difícil de formular. Os partidos de esquerda tradicionais não oferecem soluções: os partidos comunistas propõem a saída da UE, mas os riscos que tal saída envolve afasta as maiorias; os partidos socialistas desacreditaram-se, em maior ou menor grau, por terem sido executores da política de austeridade. Criou-se um vazio que só lentamente se vai preenchendo. Na Grécia, Syriza, nascido como frente em 2004, reinventou-se como partido em 2012 para responder à crise, e preencheu o vazio. Pode ganhar as próximas eleições. Em Portugal, o Bloco de Esquerda (BE), nascido quatro anos antes do Syriza, não soube reinventar-se para responder à crise, e o vazio permanece. Na Espanha, o novo partido Podemos constitui a maior inovação política na Europa desde o fim da Guerra Fria e, ao contrário do Syriza e do BE, nele não são visíveis traços da Guerra Fria.
Para entender Podemos, é preciso recuar ao Fórum Social Mundial, aos governos progressistas que emergiram na América Latina na década de 2000, aos movimentos sociais e aos processos constituintes que levaram esses governos ao poder, às experiências de democracia participativa, sobretudo em nível local, em muitas cidades latino-americanas a partir da experiência pioneira de Porto Alegre e, finalmente, à Primavera Árabe. Em suma, Podemos é o resultado de uma aprendizagem a partir do Sul que permitiu canalizar criativamente a indignação nas ruas de Espanha. É um partido de tipo novo, um partido-movimento, ou melhor, um movimento-partido assente nas seguintes ideias: as pessoas não estão fartas da política, mas sim desta política; a esmagadora maioria dos cidadãos não se mobiliza politicamente nem sai à rua para se manifestar, mas está cheia de raiva em casa e simpatiza com quem se manifesta; o ativismo político é importante, mas a política tem de ser feita com a participação dos cidadãos; ser membro da classe política é algo sempre transitório e tal qualidade não permite que se ganhe mais que o salário médio do país; a internet permite formas de interação que não existiam antes; os membros eleitos para os parlamentos não inventam temas ou posições, veiculam os que provêm das discussões nas estruturas de base; a política partidária tem de ter rostos, mas não é feita de rostos; a transparência e a prestação de contas têm de ser totais; o partido é um serviço dos cidadãos para os cidadãos e por isso deve ser financiado por estes e não por empresas interessadas em capturar o Estado e esvaziar a democracia; ser de esquerda é um ponto de chegada e não um ponto de partida e, portanto, prova-se nos fatos. Exemplo: quem na Europa é a favor da Parceria Transatlântica para o Investimento e Comércio não é de esquerda, mesmo que militante de um partido de esquerda. Este tratado visa os mesmos objetivos que a Área de Livre Comércio das Américas, vulgo ALCA, proposta por Bill Clinton em 1994 e engavetada em 2005, em resultado do vigoroso movimento de protesto popular que mobilizou as forças progressistas de todo o continente.
Em suma, o código genético do Podemos reside em aplicar à vida interna dos partidos a mesma ideia de complementaridade entre democracia participativa e democracia representativa que deve orientar a gestão do sistema político em geral. Convém salientar que Podemos é uma versão particularmente feliz e potencialmente mais eficaz de inovações políticas que têm surgido em diferentes partes do mundo, tendo por pano de fundo o inconformismo perante o esvaziamento da democracia representativa provocado pela corrupção e pela captura dos partidos de governo pelo capital. Na Itália, surgiu em 2009 o Movimento Cinco Estrelas, liderado por Beppe Grillo, com fortes críticas aos partidos políticos e defendendo práticas de democracia participativa. Teve um êxito eleitoral fulgurante, mas as suas posições radicais contra a política criam grande perplexidade quanto ao tipo de renovação política que propõe. Em 2012, foi criado na Índia o Partido Aam Admi (partido do homem comum, conhecido pela sigla em inglês AAP). Este partido, de inspiração gandhiana e centrado na luta contra a corrupção e na democracia participativa, toma como impulso originário o fato de o homem comum (e a mulher comum, como acrescentaram as mulheres que se filiaram ao partido) não ser ouvido nem levado em conta pelos políticos instalados. Um ano depois da sua fundação tornou-se o segundo partido mais votado para a assembleia legislativa de Delhi.
É possível uma onda Podemos que se alastre a outros países? As condições variam muito de país para país. Por outro lado, Podemos não é uma receita, é uma orientação política geral no sentido de aproximar a política dos cidadãos e de mostrar que tal aproximação nunca será possível se a atividade política circunscrever-se a votar de quatro em quatro anos em políticos que se apropriam dos mandatos e os usam para fins próprios.
Curiosamente, na Inglaterra acaba de ser criado um partido, Left Unity, diretamente inspirado pelas ideias que subjazem ao Syriza e ao Podemos. Em Portugal, a onda Podemos é bem necessária, dado o vazio a que me referi acima. Portugal não tem a mesma tradição de ativismo que a Espanha. Em Portugal, Podemos será um partido diferente e, neste momento, terá pouca repercussão. Portugal vive o momento Costa. Em face dos fracos resultados do Partido Socialista (PS) nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, António Costa, prefeito da cidade de Lisboa, disputou com êxito a liderança da secretaria-geral do partido, eleita no último congresso. A disputa tomou a forma de eleições primárias abertas a militantes e simpatizantes do partido. As eleições tiveram muita participação e mostraram o que disse atrás: a distância dos cidadãos é só em relação à política de costume, sem horizonte de mudança em face de uma situação socioeconômica intolerável e injusta. O momento Costa faz com que a onda Podemos em Portugal se destine sobretudo a preparar o futuro: para colaborar com o PS, caso este esteja interessado numa política de esquerda; ou para ser uma alternativa, caso o PS se descredibilize, o que fatalmente ocorrerá se ele aliar-se à direita. Por agora, a segunda alternativa é a mais provável.
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Será possível que a onda Podemos chegue à América Latina, como que devolvendo ao continente a inspiração que recebeu deste e da sua brilhante primeira década do século XXI? Certamente seria importante que isso ocorresse nos dois grandes países governados por forças conservadoras, México e Colômbia. Neste países, os esforços para formular e dar credibilidade a uma nova política de esquerda não conseguiram até agora furar o bloqueio da política oligárquica tradicional. No caso do México, há que referir tentativas tão diversas quanto La Otra Campaña, por iniciativa do Exército Zapatista de Libertação Nacional, ou o movimento político aglutinado em redor de López Obrador, e, no caso da Colômbia, o Polo Democrático e todas as vicissitudes por que passou até hoje (polo democrático independente, polo democrático alternativo).
Nos países onde as forças progressistas conseguiram grandes vitórias na primeira década do século XXI e onde os partidos de governo foram, eles próprios, emanação de lutas populares recentes, poderá pensar-se que a onda Podemos teve aqui a sua fonte e por isso nada de novo pode fazer acontecer. Refiro-me ao Partidos dos Trabalhadores (PT) no Brasil, ao Movimiento al Socialismo (MAS) na Bolívia, à Alianza Pais no Equador e ao Partido Socialista Unido (PSUV) na Venezuela.
Trata-se de realidades políticas muito distintas, mas parecem ter duas características em comum: procuraram dar voz política às classes populares em grande medida oprimidas pelas classes dominantes, ainda que concebam as classes populares, não como coletivos, mas antes como grupos de indivíduos pobres; tiveram êxito político e o exercício do poder de governo pode estar a descaracterizar a marca de origem (seja por via do caudilhismo, da corrupção, ou da rendição aos imperativos do desenvolvimento neoliberal etc). O desgaste político é maior nuns do que noutros, apesar das vitórias recentes, algumas delas retumbantes (caso do MAS nas eleições de 2014). Nestes países, tal como, de resto, nos dois outros países com governos de centro-esquerda assentes em partidos mais antigos, a Argentina e o Chile, a onda Podemos, se vier a ter alguma relevância, tenderá a assumir duas formas: reformas profundas no interior destes partidos (mais urgentemente reclamadas no PT do que nos outros partidos); criação de novos partidos-movimento animados pela mesma dinâmica interna de democracia participativa na formulação das políticas e na escolha dos líderes.
Como o caso do indiano AAP mostra, o impulso político que subjaz ao Podemos não é um fenômeno da Europa do Sul/América Latina. Pode aparecer sob outras formas noutros continentes e contextos. Um pouco por toda a parte, 25 anos depois da queda do Muro de Berlim, os cidadãos e as cidadãs que acreditaram na promessa da democracia, anunciada ao mundo como o fim da história, estão chegando à conclusão de que a democracia representativa liberal atingiu o seu grau zero, minada por dentro por forças antidemocráticas, velhas e novas oligarquias com poder econômico para capturar o sistema político e o Estado e os colocar a serviço dos seus interesses. Nunca como hoje se tornou tão evidente que vivemos em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas. A onda Podemos é uma metáfora para todas as iniciativas que tentam uma solução política progressista para o pântano em que nos encontramos, uma solução que não passe por rupturas políticas abruptas e potencialmente violentas.
Os EUA são neste momento um dos países do mundo onde o grau-zero da democracia é mais evidente. E certamente o país do mundo onde a retórica da governança democrática é mais grosseiramente desmentida pela realidade política plutocrática e cleptocrática. Depois que o Tribunal Supremo permitiu que as empresas financiassem os partidos e as campanhas como qualquer cidadão, e, portanto, anonimamente, a democracia recebeu o seu golpe final. As agendas das grandes empresas passaram a controlar totalmente a agenda política: da mercantilização total da vida ao fim dos poucos serviços públicos de qualidade; da eliminação da proteção do meio ambiente e dos consumidores à neutralização da oposição sindical; da transformação da universidade num espaço de aluguel para serviços empresariais à conversão dos professores em trabalhadores precários e dos estudantes em consumidores endividados para toda a vida; da submissão, nunca como hoje tão estrita, da política externa aos interesses do capital financeiro global à incessante promoção da guerra para alimentar o complexo industrial-securitário-militar. Em face disso, não surpreende que muitos dos norte-americanos inconformados com o status quo tenham começado a ler ou a reler Marx e Lênin.
Encontram nestes autores a explicação convincente do estado de coisas a que chegou a sociedade norte-americana. Não os seguem na busca de alternativas, de ideias para refundar a política democrática do país, pois conhecem os catastróficos resultados políticos da prática leninista (e trotskista, convém não esquecer).
Surpreendentemente, combinam essas leituras com a da Democracia na América de Alexis de Tocqueville e a sua apologia da democracia participativa e comunitária nos EUA das primeiras décadas do século XIX. É aí que vão buscar a inspiração para a refundação da democracia nos EUA, a partir da complementaridade intrínseca entre democracia representativa e democracia participativa. Sem o saberem, são portadores da energia política vital que a onda Podemos transporta.